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O abuso sexual — "A criança é para ser vista e não para ser ouvida"

II. Fundamentação teórico-epistemológica

2.3 O abuso sexual — "A criança é para ser vista e não para ser ouvida"

Crianças e adolescentes são afetados de maneira contundente por diferentes manifestações de violência dentro e fora de suas casas. Inúmeros teóricos de diferentes áreas das ciências humanas, sociais e saúde, debruçam-se sobre o tema do abuso sexual em diferentes contextos, propondo ações na promoção da diminuição dos impactos nos modos de existência dessas crianças e adolescentes e de suas famílias (Habigzang et al., 2012; Penso, Conceição, Costa, & Carreteiro, 2011; Costa, Penso, Rufini, Mendes, & Borba, 2007; Sanderson, 2005; Santos, Costa, & Silva, 2011; White, 2002).

No contexto das famílias com interações violentas estão presentes fatores como preconceito, as relações de poder entre adultos e crianças, homens e mulheres, branco e negro. O abuso sexual tem ocorrido predominantemente dentro das famílias, caracterizando-se por longa duração, com intervalo médio de um ano entre o primeiro abuso e a revelação. Alterações ocorrem na vida das crianças, adolescentes e suas famílias, que são acometidas pelo abuso sexual, passando a viver em situação de extrema vulnerabilidade em função de novas demandas que passam a existir e do descaso das instituições de ordem social e legal (Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005). Estes autores falam também de uma interrupção e fragmentação na rede de proteção à criança e ao adolescente em virtude dessa banalização e postergação da aplicação de medidas de proteção. Percebe-se que o dito popular aqui ganha força e, em sua transposição e decodificação, mostra a criança desconsiderada em todas as suas áreas do desenvolvimento, afirmando, ainda, que a criança deva apenas ser vista e não ouvida e nem

cuidada, confirmando assim grandes lacunas no funcionamento da rede de proteção (Costa, 2003; Costa et al., 2009; Esber, 2005, 2009; Minuchin, Colapinto, & Minuchin, 2000).

O abuso sexual é um fenômeno determinado por diversos fatores que combina aspectos culturais, socioeconômicos, individuais e familiares. Abuso sexual tal como definido por Azevedo e Guerra (1995) é denotado como:

Ato ou jogo sexual, relação hétero ou homossexual entre um ou mais adultos (parentes de sangue ou afinidade e/ou responsáveis) e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente uma criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou outra pessoa (p. 37).

O abuso sexual inclui tanto atividades com contato físico quanto manipulação de genitais e intercurso sexual, situações de exibicionismo e voyeurismo, em que não há contato físico direto. Geralmente a criança e ou adolescente vítimas de abuso sexual experimentam também negligência, abuso emocional e abuso físico (Habigzang & Caminha, 2004; Penso et al., 2011). As definições de outros autores incluem atos e jogos sexuais, relações hétero ou homossexuais, sendo o ofensor sempre com maior idade que o abusado. Nesta caracterização, se presentificam relações de poder e consequentemente a não compreensão e o não consentimento por parte da vítima (Habigzang & Caminha, 2004; Costa et al., 2007).

Outros aspectos caracterizam a dependência e vulnerabilidade das vítimas de violência associadas ao abuso sexual: o ciclo repetitivo e intencional; a estimulação e o controle da sexualidade da criança ou adolescente; e a compreensão e a gratificação acerca do ato abusivo. Tanto o ofensor em particular quanto a família em geral, ultrapassam regras sociais e familiares, atuam os estereótipos de gênero e mitos presentes na cultura local e estabelecem relações de poder com a vítima. O abuso sexual, além de ser uma forma de coerção e violência, é também

uma quebra de regras sociais, de consensos éticos e de valores e condutas humana (Moura et al., 2008). É considerado um ato criminoso segundo o ECA (MS, 2006).

Quando a família vivencia uma violência sexual, ela passa por situações de confusão dos papéis, estresse, tensão, distanciamentos e separações. Essas mudanças resultam em desequilíbrios de diferentes dimensões, como pessoais, relacionais e sociais. Todas essas contingências irão modificar o curso de vidas dessas famílias. Há uma inversão na hierarquia entre pais e filhos: o pai passa a ser marido, a mulher aceita perder a função de esposa e de mãe e a filha exerce a função de esposa e mãe de seus irmãos (Furniss, 2002; Santos, Pelisoli, & Dell’Aglio, 2012). As famílias em situação de abuso sexual apresentam relações interpessoais assimétricas e hierárquicas, vivenciadas nas desigualdades e nas relações de subordinação. As crianças que vivem em ambientes em que a violência familiar está presente geralmente fazem dela um aprendizado e a reproduzem posteriormente em suas vidas, contribuindo para a banalização da violência nas relações familiares e os impactos dessa violência nas relações interpessoais.

Os episódios de abuso sexual das famílias atendidas pela rede de proteção nos convida a buscar junto daqueles que sofreram violência sexual uma mudança de perspectiva para suas vidas, através da desconstrução de suas justificativas ante às condutas abusivas para novas e potenciais narrativas de futuro. Propõe-se revisar e avaliar os argumentos a partir da aproximação Construcionista Social dos significados e da construção de narrativas e postular um desenvolvimento situado sócio historicamente, que dê relevância ao contexto sociolinguístico e ênfase na narrativa ou forma de relato do significado (Rasera & Japur, 2007). Vê-se aí que o Construcionismo Social postula um ouvir para a criança e o adolescente, não os deixando fora dos processos de mudanças.

Nessa compreensão, o abuso sexual é visto como parte de um discurso dominante da família e que a denúncia vai provocar uma ruptura do equilíbrio doméstico. O significado daquilo que se fala está na interação entre as pessoas e não se apresenta nem nas estruturas do texto nem no sistema de linguagem. De acordo com o Construcionismo Social “como a linguagem é um subproduto da interação, seu principal significado deriva do modo em que está imerso nos padrões de relação” (Gergen, 1996a, p. 166). As construções das famílias estão estreitamente ligadas a seus padrões sociais e a sua forma de vida. Pode-se denominar de jogo relacional ou jogos de linguagem em que o uso faz o significado. Os sentidos estão sempre conectados aos contextos.

III- MÉTODO

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