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Famílias como Sistema Vivo e falante — “Cada família tem seu corcunda”

II. Fundamentação teórico-epistemológica

2.2 Famílias como Sistema Vivo e falante — “Cada família tem seu corcunda”

A literatura aponta (Esteves de Vasconcelos, 2002; Nichols & Schwartz, 2007;Hoffman, 1981; Minuchin & Fishman,1990) que universalmente todas as famílias têm problemas, no sentido de que nem todas as vivencias ou empreendimentos são bem sucedidos. A complexidade do campo da família mostra que esta é uma prática que prioriza sempre o contextual, o relacional e o psicossocial. O estudo da família foi orientado tradicionalmente para a cura dos sintomas e solução dos problemas. No entendimento da família, apenas um de seus membros tinha problemas, o que levava à segregação e sobrecarga de um deles. Com o desenvolvimento desses estudos, constatou-se que os membros da família têm uma longa e intensa história conjunta e futuro juntos, constituindo-se como um sistema vivo, um todo orgânico, que se move através de suas interações. Passou-se a entender o comportamento das pessoas no seu contexto, sobressaltando o que Bateson (1972) apontava como sendo o contexto que determina o significado. Portanto, quando se começou a considerar a pessoa no contexto da família, seu

comportamento pareceu menos estranho, deixando de ser considerado o corcunda da família. Outros estudiosos apontam que compreender a família como um organismo vivo vai além da Epistemologia de Bateson (1972) avançando para a “Ontologia da Realidade” de Maturana (1997), que define o organismo vivo implicado todo o tempo por meio das distinções que faz do vivido. A realidade emerge com base nas distinções, naquilo que é vivido e significado para cada um. A linguagem é constitutiva da existência dos seres humanos – unidades autopoiéticas determinadas estruturalmente, que operam em relação ao seu meio. O domínio linguístico emerge dessa ou daquela descrição, dessa ou daquela crença ou teoria. Portanto, o intercâmbio da linguagem constrói realidades. Geram-se conhecimentos e crenças a partir da linguagem. A pessoa transforma-se com as histórias que conta de si mesma. São verdades narrativas que passam a ter mais influência que a verdade histórica. Neste sentido, a família passa a ser não só um sistema vivo, mas também um sistema falante (Bateson, 1972; Esteves de Vasconcelos, 2002; Gergen, 1996a, 2006a; Maturana, 1997; Nichols & Schwartz, 2007).

Nas últimas décadas surgiu um novo direcionamento para compreender como esses sistemas vivos e falantes se organizam em torno da linguagem. Uma proposta de construção da realidade, que entende que a família não é independente e nem está lá fora, mas é construída a partir de uma produção coletiva de significados. A família vivida atualmente tende a propostas e modelos menos rígidos e preestabelecidos. Todos os membros da família estão envolvidos na construção de um compromisso social de mudança, com cultura própria, com sua marca especial de comunicação e interpretação de regras e ritos marcados pelas relações de classe, de etnias e de gênero. Assim sendo, cada membro é diferenciado por sua identidade plural no sentido dos contextos sociais e culturais a que pertence (Carrijo & Rasera, 2010; Féres-Carneiro, 2007, 2011;

Fruggeri, 1998; Fonseca, 2005; Maturana, 2001, 2002; McNamee & Gergen, 1998; Sluzki, 1997).

O grupo familiar é visto como uma prática discursiva, uma vez que o discurso produz realidades, contendo sempre uma dimensão social e histórica (Carrijo & Rasera, 2010). O foco está na linguagem que é construída e com a qual se constrói o mundo, transformando a linguagem performática gerada pelo discurso dominante em uma linguagem viva em contexto, em interação. À medida que os discursos vão se modificando no contexto social, modificam também a vida individual e familiar, permitindo às famílias reescreverem suas histórias. Essa “escrita narrativa” ou o re-narrar ou recontar as vivências e experiências de caráter polifônico, como estruturas escritas, como um posicionamento crítico e reflexivo, promove a reconstrução, por ter uma multiplicidade de vozes e apresentar uma possibilidade de problematização da experiência. É como se estivessem escrevendo um novo texto naquele contexto em que estão mergulhados (Carrijo & Rasera, 2010; Gergen, 1985; Spink & Frezza, 1999).

Por ser um sistema em interação e em construção na linguagem e pela linguagem, o movimento da família amplia suas possibilidades e permite sua evolução e adaptação às novas demandas que se lhe apresentam, não sucumbindo em suas contradições. Esses ganhos qualitativos promovem novas organizações sistêmicas pela auto-organização e auto- referenciação, permitindo conhecer então suas reais possibilidades. É preciso retirar o foco do indivíduo e transpô-lo para o contexto em que as relações ocorrem. Os sistemas humanos são sistemas fluidos e evolutivos de comunicação que existem na linguagem. São sistemas de organização e de dissolução de problemas, entidades complexas compostas de indivíduos que pensam, interpretam, entendem e compartilham significados construídos, como construção social (Anderson, 2010). Assim, a família é compreendida como uma unidade relacional.

O Construcionismo Social reconhece que o conceito de família é uma invenção social. Esta abordagem inspira uma atitude co-criativa e reflexiva, não com ênfase nos fracassos, mas nas novas possibilidades, buscando metáforas mais positivas para compreender os processos vividos pelas famílias (Anderson, 2010; Anderson & Goolishian, 1988; Hoffman, 1981; Minuchin & Fishman, 1990; Nichols & Schwartz, 2007; Omer, 1997, 2011).

A violência sexual contra crianças e adolescentes abordada por esta tese é marcada pelas formas linguísticas (nomes, expressões, palavras, ditos populares e metáforas) que narram e descrevem o mundo e as experiências das pessoas. “É por meio da linguagem como prática social que significamos e organizamos as nossas relações” (Carrijo & Rasera, 2010, p.127). Essa linguagem em ação tem um caráter eminentemente dialógico, ou seja, é produzida no interstício entre o eu e o outro (Bakhtin, 1981, 1986). As famílias irão contar e narrar aquilo que selecionaram como sendo importante para reconstrução de suas histórias e expressão de seus valores. O processo conversacional entre os membros da família propicia um deslocamento do comportamento para o significado. Este processo culmina na modificação de sentidos expressos e vividos por essas famílias. Assim, pode-se considerar que o conhecimento produzido na construção narrativa com famílias tem a função de organizar o mundo experiencial do sujeito.

Embora a família seja considerada no senso comum, por muitos, um mal necessário - ora negligenciado por alguns, ora enaltecida por outros – é entendida como mediadora das relações entre seus membros e a coletividade. O indivíduo torna-se sujeito no espaço da família e insere- se na diversidade de formas e arranjos familiares. A família compartilha do processo de construção da realidade que se faz nas vivencias de rotina, das interações e trocas sociais, ao longo do ciclo de vida da família e de muitas gerações. A família necessita ser considerada e

entendida como a família de cada um e vista como especial e específica ao tomá-la como objeto de nossa prática.

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