• Nenhum resultado encontrado

2 – O Acórdão de 29 de janeiro de 2021 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, proferido no Recurso Hierárquico Impróprio

No documento Processo n.º 4/2021 Demandante: (páginas 83-90)

DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

IV. 2 – O Acórdão de 29 de janeiro de 2021 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, proferido no Recurso Hierárquico Impróprio

n.º 19-20/21, confirmou a decisão disciplinar sumária sancionatória recorrida socorrendo-se essencialmente de fundamentação assente da denominada doutrina do terreno de jogo (field of play doctrine), sendo o Sumário que o acompanha particularmente eloquente quanto a essa fundamentação:

I – No domínio do direito disciplinar desportivo vigora a regra geral da presunção de veracidade dos factos materiais constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e no caso em apreço consta do relatório do árbitro, a propósito da factualidade em análise, «[c]ulpado de comportamento antidesportivo», uma vez que «[a]garrou um adversário anulando ataque prometedor».

II – Concomitantemente, vigora o princípio da proibição de afastamento das decisões proferidas pelos árbitros e relativas a situações ou condutas observadas e sancionadas pela equipa de arbitragem, com a exibição de cartão amarelo ou ordem de expulsão, nos termos previstos nas Leis do Jogo.

III – A “field of play doctrine” é, de forma pacífica, recebida no desporto em geral, no contexto do futebol, e a sua perceção é encontrada nas próprias Leis do Jogo, onde é elevada à categoria de princípio fundamental da própria regulação técnico desportiva (enquanto princípio da autoridade do árbitro).

IV – A field of play doctrine tem aplicação no caso vertente, na medida em que o árbitro principal afirmou nos autos que percecionou o lance em toda a sua extensão, ficando o Conselho de Disciplina “fora de jogo”.

V – Tendo o árbitro principal afirmado nos autos que “avaliou o lance em toda a sua extensão” e não havendo sequer indícios de uma atuação de má fé (por fraude, arbitrariedade ou corrupção) não pode o órgão decisório, nestas circunstâncias, decidir sobre a infração pela qual o jogador Recorrente foi punido com a exibição do amarelo.

VI – A field of play doctrine pretende preservar o sentido do próprio jogo e radica no entendimento de que o árbitro, sob a pressão própria de um jogo, tem de decidir e as suas decisões devem ser respeitadas; e por outro lado, pretende-se evitar que o jogo em campo continue por uma via decisória, como se o órgão disciplinar pudesse continuar a arbitrar. Acresce a circunstância de a própria estabilidade das competições beneficiar da circunstância de um determinado jogo ter o desenlace tal como definido no campo.

VII – As situações/“lances” de amarelo não são sequer suscetíveis, durante o jogo, de recurso ao Protocolo VAR, preservando-se a autoridade da decisão imediata do árbitro – e se a decisão não é sequer sindicável através do Protocolo VAR, muito menos poderia sê-lo, como regra, por um órgão disciplinar que, depois de o jogo ter terminado, desempenharia tal função, substituindo-se ao árbitro.

Não é, pois, de estranhar que o Acórdão comece por assentar em que a “questão jurídica de fundo que importa (...) apreciar e decidir é a seguinte: face à prova constante dos autos e na respetiva apreciação a fazer em sede de decisão em recurso, pode ser abalada a regra do

princípio da autoridade do árbitro e a sanção disciplinar inerente à respetiva advertência ser revogada?

E, neste ponto, o Acórdão socorre-se da identificação do thema decidendum feita no Recurso Hierárquico Impróprio n.º 9-20/21, cujos fundamentos decisórios se assume ir acompanhar muito de perto: “poderá o Conselho de Disciplina substituir-se ao juízo técnico do árbitro quando exibiu um cartão amarelo a um jogador ainda que retrospetivamente se possa concluir, com toda a margem de certeza, que tal exibição tenha sido injusta porquanto se conclui que o jogador não cometeu a referida infração? A resposta a tal questão encontrar-se-á no balanceamento e concordância prática entre o princípio da autoridade do árbitro (e da “field of play doctrine” a ele subjacente) com a exclusão do valor probatório reforçado de parte dos factos materiais percecionados pelo árbitro e constantes do seu relatório (os factos relativos à causa da infração em si).”

O Acórdão reconhece – ainda em sede motivação da matéria de facto considerada provada – que resulta dos esclarecimentos adicionais prestados, maxime pelo árbitro principal e pelo seu primeiro assistente, que, não obstante terem afirmado que avaliaram o lance em toda a sua extensão, também assumiram que a jogada não cumpre os critérios para ataque prometedor e que a ação disciplinar não foi adequada.

Mas logo conclui o Acórdão que, por terem avaliado o lance em toda a sua extensão, não pode considerar-se abalada a field of play doctrine. E mais reconhece o Acórdão que, como sublinhado pelo ora Demandante, a resposta do árbitro Fábio Veríssimo é a única que releva para os presentes autos, pois a decisão de mostrar o cartão amarelo em causa foi imediata e exclusivamente sua.

Quanto aos precedentes invocados pelo ora Demandante – referentes, como se viu, aos Processos do Conselho de Disciplina da Demandada com os n.ºs 55-17/18, 21-18/19, 19- 19/20 e 05-20/21 –, afirma o Acórdão que, já posteriormente, veio o Conselho de Disciplina a

“inverter este sentido decisório”, atendendo à field of play doctrine ínsita no princípio da autoridade do árbitro, consagrado na antes transcrita alínea g) do artigo 13.º do RDLPFP.

E, procurando demonstrar uma tal “inversão de sentido decisório”, o Acórdão cita o que se escreveu nas decisões dos Recursos Hierárquicos Impróprios n.ºs 21-19/20 e 29-19/20. E, incidindo particularmente no Recurso Hierárquico Impróprio n.º 21-19/20, retoma-se deste a citação de Pedro Coelho Simões sobre a field of play doctrine:

Na verdade e em termos gerais, no desporto (em qualquer que seja a modalidade), existe um princípio geral (não escrito, mas universalmente reconhecido) segundo o qual os órgãos disciplinares (ou de recurso) «não revogam decisões tomadas no terreno de jogo [no original, playing field] por juízes, árbitros, fiscais ou outros oficiais encarregados de aplicar as regras do jogo, a não ser que haja prova de que a regra foi aplicada de forma arbitrária ou de má fé».

Este princípio, que tem vindo a ser jurisprudencialmente desenvolvido e reafirmado pelo CAS (naquela que é designada de “field of play doctrine”), assenta no facto de que «cada desporto tem regras ou leis que determinam e regulamentam como aquele desporto é jogado e arbitrado».

(…)

Por assim ser, nos termos afirmados pelo CAS, os membros dos órgãos disciplinares ou de recurso «não são especialmente treinados nas regras (...) dos desportos e não têm a vantagem de estar presentes para observar o evento. Seria desleal para um decisor [v.g., árbitro], bem como para os atletas, que se interferisse nas decisões tomadas pelos oficiais do jogo, que são, em tais circunstâncias, peritos».

(…)

Ora, (...) se a afirmação da “field of play doctrine” é, de forma pacífica, recebida no desporto em geral, no contexto do futebol a sua perceção é encontrada nas próprias Leis do Jogo, onde é elevada à categoria de princípio fundamental da própria regulação técnico desportiva (enquanto princípio da autoridade do árbitro). Com efeito, é este princípio que a Lei 5 estabelece quando afirma que (i) o jogo se disputa

sob o controlo de um árbitro que dispõe de toda a autoridade necessária para velar pela aplicação das Leis do Jogo, no encontro para que tenha sido nomeado e que (ii) as decisões do árbitro sobre factos relacionados com o jogo, incluindo o facto de um golo ser ou não validado e o resultado do jogo, não têm apelo.

E é também aquele princípio que o Código Disciplinar da FIFA (...) estabelece nos seus artigos 72, 77 e 98, nos termos dos quais as decisões dos árbitros (que são definitivas nos termos definidos pela referida Lei 5) apenas podem ser, para efeitos disciplinares, desconsideradas pelo Comité Disciplinar em casos de “infrações graves que tenham escapado à atenção dos árbitros” e “correção de erros óbvios nas decisões dos árbitros”.

Note-se, neste particular, que ter “escapado à atenção dos árbitros” não significa que, como requisito prévio à intervenção do Comité Disciplinar da FIFA, se imponha que a infração tenha ocorrido fora do campo de visão dos árbitros da partida (...). O que se exige é, em bom rigor, que os árbitros não tenham percebido o lance em que a infração ocorreu (em toda a sua amplitude), de tal modo que a conduta do agente não foi, na realidade, observada, e que, caso tal tivesse ocorrido, a decisão da equipa de arbitragem teria sido outra.

(...)

Tudo quanto se afirmou representa que as decisões dos árbitros, no contexto do jogo (field of play), são decisões técnicas, de natureza essencialmente pericial, nas quais o jurista se não deve imiscuir” (...).

(…)

A premissa base desta posição (que corresponde, no essencial, à “field of play doctrine”), que o órgão disciplinar tem de respeitar, corresponde ao reconhecimento aos oficiais do jogo de um «espaço de autonomia dentro do qual eles são livres de errar enquanto seres humanos» e em virtude do qual as suas decisões são soberanas, exceto em casos de «fraude, arbitrariedade ou corrupção».

Assim, por tudo quanto se trouxe, atenta a factualidade apurada, provado como está que o lance do jogo, de cariz eminentemente técnico, foi observado e avaliado pelos agentes de arbitragem, reiterada tal avaliação em esclarecimentos prestados ulteriormente, não poderá́ este Conselho de Disciplina sobrepor-se a este juízo, considerando que o jogo se disputa sob o controlo do árbitro que dispõe de toda a autoridade necessária para cumprir e fazer cumprir a aplicação das Leis do Jogo no quadro da competição que é chamado a dirigir (...).

Posto isto, confluiu o Acórdão para a situação sub judice, afirmando e concluindo o seguinte: Resta, portanto, retirar as ilações desta doutrina ínsita no princípio da autoridade do árbitro plasmado no artigo 13.º, alínea g) do RDLPFP no caso em apreço.

Poderá́ este órgão disciplinar substituir-se ao árbitro retirando o amarelo exibido pelo mesmo ao jogador Recorrente porque a causa de tal amarelo não ficou provada? A resposta, avança-se desde já, é negativa. E isto por uma razão: não existindo nenhuma das situações de exceção à “field of play doctrine”, a saber, fraude, arbitrariedade ou corrupção, e sendo aplicável tal doutrina por via do princípio da autoridade do árbitro, ainda que a decisão do árbitro de exibir o amarelo tenha sido fundada em erro, o órgão disciplinar não dispõe de poderes de cognição sobre tal materialidade subjacente fora dos casos previstos expressamente (v.g., na situação prevista no artigo 258.º, n.º 8, do RDLPFP, que manifestamente não se aplica).

Não é certamente por acaso que os lances de amarelo (como o presente) não são suscetíveis de recurso ao Protocolo VAR/AVAR. Não o são para preservar, mesmo em campo, a autoridade da decisão imediata do árbitro sobre tal amarelo. E se assim não é para o Protocolo VAR/AVAR, muito menos poderia sê-lo para um órgão disciplinar que retrospetivamente desempenharia tal função.

E os esclarecimentos prestados pelos Senhores Árbitros não afastam a aplicação da “field of play doctrine” uma vez que as respostas, e aqui essencialmente a do árbitro principal, reitera que tomou a decisão que no seu entender lhe pareceu, face ao posicionamento no momento da jogada, que o jogador do Boavista se encontrava

liberto de opositores e preparado para rematar à baliza quando foi empurrado pelo jogador n.º 6 do Sporting e como tal o levou a agir disciplinarmente.

Claro que, hoje, após visionar o lance, reconhece que errou (...). Porém, é precisamente este erro que, desde que não revele má-fé (por fraude, arbitrariedade ou corrupção), está a coberto daquela doutrina e tem amparo regulamentar como princípio fundamental no artigo 13.º, alínea g) do RDLPFP.

O que vale por dizer que o Conselho de Disciplina não pode decidir sobre a questão de fundo porque tal decisão está-lhe vedada pelo princípio da autoridade do árbitro (plasmado no artigo 13.º, alínea g) do RDLPFP) salvo nos casos previstos (artigo 258.º, n.º 8, do RDLPFP), nos exatos termos da “field of play doctrine” e dos seus limites/exceções (fraude, arbitrariedade ou corrupção).

Não havendo indícios de uma atuação de má fé (por fraude, arbitrariedade ou corrupção) não pode o órgão decisório, nestas circunstâncias, decidir sobre a infração pela qual o jogador Recorrente foi punido com a exibição do amarelo.

(...)

Quando se refere que a arbitragem percecionou o lance em toda a sua extensão – tal como é o caso que aqui se discute – isso implica concluir que se aplica em pleno a “field of play doctrine”, ficando, pois, o Conselho de Disciplina “fora de jogo”.

O mesmo é dizer que, caso a equipa de arbitragem tivesse respondido que “não”, estaria, naturalmente, afastada a “field of play” e bem assim o princípio plasmado no artigo 13.º, alínea g), do RDLPFP e, claro, a decisão seria exatamente a inversa. Ou seja, estaria aberto o caminho para que este Conselho decidisse sem qualquer limitação dos seus poderes de cognição. Este Conselho de Disciplina, “iria, nesse caso, a jogo”.

Resulta de forma cristalina dos presentes autos que não foi invocada pelo árbitro principal a ocorrência de uma qualquer circunstância que o tenha impossibilitado de visualizar ou percecionar o lance em apreço em toda a sua extensão. Ao invés, o árbitro viu o lance em toda a sua extensão. Houve sim, o admitir de erro no ajuizamento que foi feito no terreno de jogo, tendo sido apontado pelo árbitro

principal apenas que “[d]evido ao meu posicionamento no momento da jogada, levou-me a agir disciplinarmente por ter considerado que o jogador do Boavista se encontrava liberto de opositores e preparado para rematar à baliza quando foi empurrado pelo jogador n.º 6 do Sporting.” Isto é, para o erro cometido foram apontadas circunstâncias inerentes a qualquer jogo como sejam a sua rapidez, movimento e perspetiva. Mas, nunca o árbitro declarou que não tivesse percecionado o lance em toda a sua extensão. Pelo contrário: reafirmou-o mais do que uma vez nestes autos.

Ora, mais não se trata do que admitir que aos elementos de equipa de arbitragem é concedido, naturalmente, um espaço de autonomia dentro do qual existe a possibilidade de errar enquanto seres humanos que são, o que não invalida que as suas decisões tomadas em jogo sejam, por regra, soberanas e definitivas, exceto naturalmente nos casos de fraude, arbitrariedade ou corrupção já citados.

IV.3 – Considerando as características do procedimento sancionatório sub judice, foram

No documento Processo n.º 4/2021 Demandante: (páginas 83-90)