As palavras que designam as formas globais, as suas flexões, o seu pormenor, enriquecem-se também corn o século xix. Uma referência
suplementar especifica a silhueta feminina: a cambrure, o arco que dá à «quebra dos rins» a sua forma «magnifica ». Esta palavra cambrure, totalmente nova, confirma a interminável afinação de expressões que decretam as elegâncias. Confirma igualmente a análise mais aprofundada das forças e dos equilíbrios do porte: a figura feminina deve estirar a parte inferior das costas para se desembaraçar melhor, deve-se arquear, dobrando e curvando os rins para aumentar a flexibilidade e a
verticalidade. Já não o vestido, que havia muito sublinhava a curvatura lombar, mas a flexão anatómica: a tensão especial das ancas, o seu jogo muscular e articular. A cambrure deve-se assim descrever e mostrar: Pode-se traduzir por ”arqueamento” ou ”curvatura”, por exemplo. Mas a linguagem da beleza e da moda é a francesa. É costume respeitar este dado. Contudo, algumas vezes usaremos ”quebra”, que também serve neste contexto, agora e até anteriormente. (N. da T.)
«Quanto mais o corpo da mulher é delicado, curvado, leve, mais facilmente o envolvemos nos braços ». A qualidade inteira da jovem por quem
Alexandre Dumas se apaixona na década de 1820: «dura de peito, arqueada de ancas, ardente de olhar ».
O tema banaliza-se até às metáforas de Balzac sublinhando a nova
precisão. O que valoriza o perfil de «A rapariga dos olhos de ouro»: «A figura arqueada, a figura bem lançada duma corveta construída para ’fazer o corso’ ». O que «salva» o perfil de La Filie d’ Éve: «Ela era de
estatura média, a obesidade ameaçava-a, mas bastante arqueada e bem feita ». A cambrure é ainda o que constitui a qualidade da valsista nessa nova dança onde, pela primeira vez, os parceiros se estreitam: «O meu braço enlaçava uma figura ressaltante, arqueada, movente ». Ela constitui, muito simplesmente, «a fisionomia da figura », segundo a expressão duma revista de modas no princípio do século xix.
A cambrure acha-se aqui no âmago da estética feminina. Ilustra-lhe a excelência tanto quanto a fragilidade: linha mais leve do que linha de força, beneficia a pose, a ornamentação, distante duma simplicidade directa do gesto. Imagem majestosa mas também afectada, ela associaria, no seu movimento de retenção, na sua forma cavada, a elegância e a impotência misturadas. Ela prolongaria as diferenças sexuais inventadas pelas Luzes, as da bacia feminina, em especial: ancas mais largas, perfil lombar mais marcado. Essa tal anatomia continua a ter claramente um fim consignando mais do que nunca a mulher à fecundidade: «A conformação [da bacia] no homem transmite a imagem da força, enquanto que na mulher indica o seu destino relativamente ao parto ». A imagem reforça-se, orientando o olhar do médico, do alfaiate, do viajante: Prichard acha as pescadoras desgraciosas porque possuem uma «conformação idêntica à dos homens70», d’Orbigny acha as mulheres
GEORGES VIGARELLO
chiquitesas igualmente desgraciosas porque conservam «o mesmo 71
diâmetro para toda a altura do tronco». Enquanto as europeias possuiriam uma indiscutível diferença e «amplidão de formas». O tema banalizou-se: «Essas partes [nas mulheres] são muito mais volumosas mais arredondadas e mais afastadas». A «figura soberba» enriqueceu-se em formas e em
palavras: cambrure, amplidão de ancas, estrei teza de cintura. PERFIS BURGUESES
Bem para lá da cambrure ou da suas descrições. Bem para lá das palavras, também foi a silhueta que oscilou corn o século xix: o seu equilíbrio e o seu desenho. O perfil recompôs-se. O que é decisivo. O modelo físico da aristocracia subverteu-se. O do homem, primeiro: já não o ventre
avançado, os ombros puxados atrás, evocando qualquer altivez «nobre», mas o tronco direito, densificado, a cintura retida e comprimida, evocando uma certa determinação burguesa. Já não a honra no perfil arqueado, mas o vigor num tronco reforçado: menos de arrogância, sem dúvida, e mais de eficácia. Porte declaradamente activo, a amplidão do busto exibe-se como sinal de força e de capacidade. Tudo mudou com o princípio do século, tudo separa o redingote novo, por exemplo, do gibão tradicional: os aprumos, as linhas, a verticalidade. Os ombros acolchoam-se em costas desmesuradas. O peito encima um ventre estrangulado. O cinto banaliza-se, esse tal «corn fivela» sobretudo, feito para melhor se graduar,
aconselhado pelo Dictionnaire dês ménages, em
1836. Contraste tão marcante que as abas das casacas são às vezes divi- Os Chiquitos são índios que vivem no alto Paraguai, ao pé dos Andes bolivianos. (N. da T.)
didas em duas partes e mesmo acolchoadas, «arredondadas em hemisférios fechados » para lhes acrescentar volume e firmeza, enquanto as cinturas são rigorosamente cingidas. O que simboliza o redingote: corn pinças na cintura, mas abrindo sobre o tronco. O que simboliza o espartilho, tornado «peça principal », sobreacentuando um busto que emerge 78
do fato: «Mostrem-me o colete dum homem e eu dir-lhes-ei quem é ». O peito domina, por exemplo, no Desdéban, de Ingres, no museu de Be- 79
sançon , corn o seu busto aberto que ilumina o trajo, como no Dumas, de Deveria, no museu Victor-Hugo, corn a sua gola desmesurada sobrepondo-se aos ombros e braços . A silhueta masculina transformou-se:
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peito exageradamente arredondado, ventre firmemente cingido .
Como se transformou a silhueta feminina: cintura comprimida sob um busto aumentado, vestidos cujas crinolinas reencontram a sua antiga amplidão, mangas de balão, para repartir melhor dois volumes coroo tados na
cintura, «saia em sino», linha média do corpo «em vespa ».
Os ombros, enfim, mais marcados, encimam ancas afogadas em pregas. A dezena de silhuetas femininas representada no Jornal dês jeunes
personnes, de 1835, confirma-o até ao extremo: os «vestidos de Verão» bem
como os «vestidos de Inverno». Pregas e gola dessa indumentária mascaram formas que a Revolução tinha tornado mais visíveis. Os costumes
reencontram aqui a sua tradição. A figura reencontra os seus
envolvimentos. O vestuário impõe-se aos contornos «traindo-os»: a parte de baixo do corpo perde-se nos forros, arcos e debruns, nesse «imenso bojo dos vestidos » perante o qual a própria revista La Mode se confessa «pasmada », enquanto o director das Belas-Artes vê aí uma linha
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«estética »jogando corn o engrandecimento e a dignidade. O resultado é realmente aumentar também o volume do busto: esse «plano dos ombros mais extenso», como em Madame de Hon, beldade reputada
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como «das mais belas mulheres de Paris », em 1839. Donde também
aquele «vestido de baixo em cambraia de linho escocesa * reproduzi do pelo Journal dês jeunes personnes, em Outubro de 1835, corn um corpinho acentuado em triângulo, cuja largura da parte superior ultrapassa em mais do dobro a largura da parte inferior. O busto abre-se para
cima: os ombros têm por pedestal uma cintura estrangulada.
É preciso insistir neste novo modo de sublinhar o peito: um aparelho muscular e respiratório parece dominar, ainda que as modistas não lhe teçam qualquer comentário quando o aplicam. Médicos e fisiologistas, em contrapartida, referem-se-lhe mais do que nunca apreciando lentamente os seus desafios após a descoberta do oxigénio e da sua fonte vital, no fim do século xviii: «Quanto mais o peito é largo, mais os pulmões têm
expansão e capacidade », mais o ar absorvido é importante, mais a vida parece reforçada. Os pulmões tornam-se bruscamente num «motor», princípio de fogo e de energia, como os sucessores de Lavoisier se dedicam a
mostrar: «O aparelho respiratório é o agente do calor animal». A
amplitude torácica focaliza bruscamente inquietações ou esperanças: os alarmes acumulam-se, no início do século XIX, sobre os peitos tísicos de formas «demasiado» restritas, condenados à «dificuldade
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respiratória e ao sufocamento ». Eles acumulam-se sobre a silhueta do ancião, o seu esgotamento específico interpretado como esgotamento respiratório: essa imagem dum afundamento do tórax cuja «dilatação transversal» é julgada «quase nula » nos mais idosos. Fazem-se novos cálculos para designar a fraqueza: o perímetro do peito, por exemplo, é fortemente reduzido nas crianças de fábrica sobre as quais Villermé, pela primeira vez, coloca uma linha aferidora nos seus inquéritos de 1840. A «mensuração», gesto simples que teria podido existir havia que tempos, foca bruscamente delineamentos do corpo e relevos.
A vida contrair-se-ia corn um afundamento do busto cujo efeito começa a ser medido. Em contrapartida, expandir-se-ia corn um aumento de volume torácico cujo papel parece mais bem sublinhado: ambição pelos bustos tornada explícita no século xix, mesmo quando os médicos a citam mais do que os alfaiates. A beleza suporia um busto desenvolvido.
Ciências e técnicas renovam então, no princípio do século xix, as precisões anatómicas, sempre continuando a ser um longínquo marco das práticas. Uma palavra inédita, a «estação » define a silhueta e as suas alavancas, objecto banalizado do fisiologista e do médico . Ela sugere forças: uma dinâmica de músculos e de tensões, um conjunto construído, ajustado, como as Luzes o haviam confusamente entrevisto. Ela evoca o corpo activo sujeito às exigências da eficácia motriz. Ela evoca ainda mais a preocupação de voltar a inserir o homem na sucessão animal: confrontar as espécies, fundir os «traços das suas conformações », estudar o princípio da «erecção» animal. O que inspira uma «morfologia» tornada «ciência das formas animadas ». O que esclarece um perfil imposto como uma «comprida alavanca oscilando sem cessar pela acção dos músculos ». Constituiu-se definitivamente um saber: a postura definida pela
actividade, a tensão dos apoios, o aperto da cintura, o endireitamento das costas, essa «importância dos
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músculos do abdómen e de todos aqueles que vêm da bacia » sublinhada por Cuvier para especificar melhor a verticalidade, ou essa anomalia do «ventre saliente» evocada por Richerand, para sublinhar me-
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lhor os obstáculos à «estação erecta ».
As efígies surgidas nos novos tratados de ginástica, no início do século xix, confirmam essa insistência mais instruída sobre a «esta-
0 que confere forças, dinâmica, etc. é ”estação”. Mas o autor pode falar em ”estação”, e não em ”posição”, porque, em francês, siation debout é ”posição erecta”, em português. Nós não lhe chamamos estação, mas respeitámos o autor da citação e a sua época. (N. da T.)
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cão» . A cultura gímnica, cuja eficácia se garante, atenta ao trabalho, sensível às indústrias, distingue, pela primeira vez, músculo após
músculo, as linhas dos movimentos e os seus efeitos. Distingue, também jj pela primeira vez, músculo após músculo, os exercícios localizados ré-1 putados de corrigir o porte da cabeça, o apoio das pernas, o
desenvolvimento do tronco. O que acrescenta aos critérios estéticos da silhueta f indícios de força e de tensão. Saber discreto, pouco
praticado, que se aventurou em alguns pensionatos para raparigas, cerca de 1840 , essa t ginástica a que Clias chama também «calistenia » - para lhe acentuar a referência estética - continua presente, todavia, nas gravuras e tratados de beleza do início do século. Saber discreto, faz também imaginar as premissas duma ginástica para o rosto: Charlemagne Defontenay inventa, na década de 1840, um laborioso dispositivo
permitindo mobilizar diferentes partes da cara graças a fios aderentes corn «tafetá aglutinador». Essas partes são depois estiradas para impor à carne e aos
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músculos as formas desejadas. Uma «caliplastia » seria assim possível, em paralelo corn a calistenia.
A PARISIENSE, MULHER «ACTIVA»
Outra mudança provoca, certamente, mais efeito sobre as posturas e as silhuetas no princípio do século xix: diz respeito à mulher, às suas liberdades «novas» ou supostas. Há uma figura que o mostra: a Parisiense, objecto de intermináveis comentários e reflexões. A personagem é nova, promovida a exemplo, entendida como «tipo civilizacional ». A
Parisiense sabe ser ligeira, segura de si, focalizando o ciúme provinciano e realçando o espelhamento duma cidade. Ela simboliza a 166
•iragem dum mundo: a capital já não domina a província devido à
propimidade do rei, já não encarna os olhos do soberano, nem sequer a sofciedade dos nobres, mas domina, em contrapartida, pela iniciativa política, a efervescência do poder . O que desloca os sonhos. Os de
lulien Sorel, convencido de que ia achar em Paris os derradeiros moiielos da beleza, devaneando «corn delícias que um dia seria apreseniado às jovens mulheres de Paris e lhes saberia atrair a atenção por qualwuer gesto brilhante ». A capital fabricaria seres mais inventivos,
mais atraentes, assegura também Balzac, enquanto o «tédio» da pró- 106
tvíncia faria «perder [à mulher] a sua beleza ». O horizonte cultural [oscilou a sério. A Paris do princípio do século xix, corn a sua
demografia exponencial, a sua vitória sobre a contra-revolução provinciana,
os seus reagrupamentos de todos os géneros, é ampliada, promovida a coração das decisões económicas e políticas, promovida a coração das influências estéticas e mentais: ela foca, por consequência, como «cidade-luz» », o exemplar e a beleza ».
As consequências físicas são notáveis: um contraste oporia primeiro leveza e peso, vivacidade e torpor. A Parisiense impor-se-ia por um
sentido de movimento e de facilidade, completamente diferente de qualquer indolência provinciana: «O primor e a flexibilidade, eis as duas
primeiras das suas vantagens ». O andar seria logo a característica dominante , sugerindo as formas, agitando as rendas, provocando uma «ondulação graciosa que se move sobre a comprida capa de seda preta ». Característica eminentemente parisiense, o «génio do andar112» seria até «único,113», mobilizando um mundo. A Parisiense manifestar-se-ia, como jamais, pela arte de assentar o pé. Ela «tem orgulho na perna, como o soldado na espada ». Ela reagiria por um
É uma capa, como a dos bispos e arcebispos; sem mangas e presa à frente.
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acréscimo de fluidez a um espaço urbano julgado mais movimentado
transpondo o seu passo num acto de ascendência: sinal dum estilo glo- r bal, maneira buliçosa e industriosa de exibir a beleza. <•
No entanto, esse porte sugere mais. É sobre o tema da igualdade que« a Parisiense por excelência - a de 1830, a «leoa» - pretende alicerçar! uma beleza activa, movimentada, ávida de exercício e de azáfama. Ma-B dame Dureynel, a «leoa» descrita em Lês Français peints par eux-mlm mês, não reclama, por exemplo, todos os direitos e privilégios que as I leis e os costumes reservaram ao homem115», mas, em contrapartida, l reclama a partilha de actividades geralmente proibidas ao seu sexo, l aquelas que revelam uma liberdade do gesto, uma desenvoltura do torn: «os prazeres, os usos, as maneiras, as fadigas, os aspectos, as bizarrias, l os
ridículos e as graças do homem elegante ». Ela lança-se numa cen-1 tena de práticas novas: o tiro, a esgrima, as corridas no bosque, a natação na escola de natação, a leitura para além do âmbito geralmente J reservado ao feminino, esperando dos seus exercícios «um passatempo l benéfico à graça dos movimentos e à beleza ». f
Actividades largamente fictícias, sem dúvida. São mais sonhadas do que executadas, mais sugeridas do que realizadas. Prolongando a imagem duma feminilidade ostentadora, «improdutiva», estão ao serviço duma afirmação: uma revisão cultural posta em perspectiva, a espera obscura duma mudança de estatuto, enquanto os factos e a Lei mantêm a mulher invencivelmente dominada «pela única razão do seu sexo», colocada «sob o poder do
marido», reconhecida como «inapta em mui- 118
tos compromissos e funções ». Victor Amab, desafiado para um duelo por uma dessas «leoas», no romance de Frédéric Soulié, conta perfeitamente a novidade. Victor é seduzido pela atitude «ousada» da sua «adversária», a sua vontade de ser «igual», a sua temeridade. Vê nela
até um acréscimo de beleza física, uma estranha segurança de traços. Vê nisso, também, em contrapartida, um vigor dominado, uma inevitável fraqueza, confessando sentir ele próprio «uma terna piedade pelo 119
ser frágil cuja coragem ultrapassou a força ». Novidade evidente dessa «actividade», novidade limitada.
É preciso acrescentar que algumas dessas «leoas» inquietam cada vez mais: entendidas como transgressoras, acusadas de «desdenhar das graças
femininas» como de «não querer nem agradar pela beleza, nem encantar pelo espírito, mas sim surpreender e espantar pela audá-
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cia ». O seu defeito seria adoptar demasiado visivelmente os valores masculinos: servir-se de fatos de homens, abandonar o aspecto do seu sexo, esquecer pudor ou modéstia. George Sand, considerada «detes- 121
tável e declamatória » por Barbey d’ Aurevilly, pôde encarnar, durante um tempo, essa figura escarnecida, sinal duma tomada de consciência em
direcção à igualdade que os costumes tendem então largamente a recusar
Ao que se junta uma curiosidade por uma outra variedade, então, a das pertenças e dos estatutos: a tentativa de ultrapassar a «fusão dos níveis », o «nivelamento das desigualdades », essas interferências sociais que uma Revolução provedora de anonimato teria trazido. Inquietação
derrisória, sem dúvida, se não revelasse um esforço inigualado, até aí, para reavaliar as fronteiras sociais, reformular as disparidades. Uma nova maneira de olhar, essa de perseguir o oculto para melhor o penetrar: o alcance de distâncias redefinidas, reconstruídas, já inscritas no
corpo, apesar do «repique a defuntos da alta socieda- 125
de ».
Donde esse nascimento duma literatura «pré-sociológica», a partir de 1830, a dum sonho de representar por imagens: uma vontade de or-
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denar estéticas e condições. Uma porção de figuras femininas diferentes se acumula, por exemplo, no Livre dês cent et un, reputado de representar a Paris de 1830, tal como se acumula em Lês Français pernis por eux-
mêmes, em 1840, ou em La Grande ville, Lê nouveau tablewf
1
de Paris, em 1842 . Os tipos humanos multiplicam-se, emergindo, desses
textos literários como emergem as espécies animais das análises l dos novos naturalistas, ou as tribos longínquas das narrativas dos novos l viajantes. O observador faz-se explorador, o escritor faz-se classifica-1 dor, mimando até à linguagem os novos descobridores. «Esta belaesJ pécie [’a mulher como deve ser’] ama as latitudes mais quentes, as lonlj
gitudes mais adequadas de Paris. Encontrá-la-eis entre a arcada décima l e a centésima décima da rue de Rivoli: na linha dos Boulevards, depois I 127
do Equateur dês Panoramas até ao Cap de Ia Madeleine ». Enquanto l 128
a «griseta galante » seria mais «comum», mesmo que o seu ar «airoso» a identifique como «flor indígena não crescendo senão em Pa-
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ris ». Claro que nessa interminável recensão não existe qualquer
princípio de classificação, a não ser o de evocar riqueza e pobreza, do mesmo modo que Janin diferenciava, segundo o estatuto das suas amantes, as qualidades das criadas que iam buscar o leite às ruas de Paris: a sua tez, o seu «pé miúdo», a sua «frescura» . A vontade de multiplicar os esboços sociais impõe-se, como se impõe uma brusca diversidade de perfis diferentes nos desenhos dos gravadores: «burguesas», «proprietárias», «mulheres de vida equívoca», «actrizes», «sílfides», «meninas»,
«boémias», «desgraçadas», «gentes do mercado» . Às quais se acrescenta a camponesa, da qual os viajantes não podem cornpreender, de modo algum, os critérios estéticos. Na baixa Bretanha, por exemplo: «É uma beleza ter a pele vermelha e animada. Em certas lo-
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calidades, as raparigas coquetes engorduram a testa para que luza ». 170
Raríssimas, em contrapartida, são as vozes rurais susceptíveis de comentar essas características.
As ilustrações cada vez se misturam mais corn o texto, formando um novo género literário do qual o melhor exemplo é o Museum parisien, em 1841 : «leoas», «tigrezas» ou «panteras» figuram como outras tantas personagens acentuadas pela caricatura e pela habilidade do gravador. O sucesso já vulgarizado do livro corn gravuras cria, aliás, um universo: um acúmulo de silhuetas, uma arte do quadro e do panorama . O que é facilitado pelas novidades técnicas das gravuras sobre madeira, as de Jean Ginoux ou de Tony Johannot, entre outras1 , as de Gavarni, de Daumier, flexibilizando insensivelmente as linhas, avivando as figuras, os portes, dando ao «género romântico» aquela ternura e aquela profusão que são tão suas. Um género cuja «mecanização» do livro e da prensa mecânica aumenta ainda a difusão . Os desenhos de Gavarni multiplicam aí os exemplos de modelos sociais traduzidos em modelos estéticos, enquanto Daumier acrescenta ironia e sarcasmo, não sem alguma misoginia, às «mulheres socialistas», às«divorciadas» ou às bas-bleus
A novidade da sociedade democrática residiria aí realmente: uma consciência mais aguda de tipos diferentes corn as suas regiões geográficas, as suas pertenças, os seus trajos. O contrário dum conformismo. Uma maneira nova de evocar as figuras e as belezas. A Parisiense, seja
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como for, «pertenceria a todas as classes sociais ». Ela determina uma liberdade inédita, referência mais imaginada do que realizada, sem dúvida, mas reputada de agir sobre a estética e a atracção.