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1.(ANTROP).historia.da.beleza.(VIGARELLO)

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Teorema

série especial

Esta obra foi publicada corn o apoio do Ministério da Cultura Francês - Centro Nacional do Livro

GEORGES VIGARELLO

História da Beleza

- O corpo e a arte de embelezar - Da renascença até aos nossos dias Tradução de Paula Reis

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Título original: Histoire de la Beauté Tradução: Paula Reis

Revisão: J. R. Sequeira Costa Capa: Fernando Mateus

Paginação: Rui Miguens Almeida

Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira Este livro foi impresso no mês de Outubro de 2005

ISBN: 972-695-644-7

Depósito legal n.° 232807/05 Todos os direitos reservados por: EDITORIAL TEOREMA, LDA.

Rua Padre Luís Aparício, 9 - 1° Frente 1150-148 Lisboa/Portugal

Telef.: 21 312 91 31-Fax: 21 3521480 email: mail@editorialteorema.pt

Introdução

Numa carta a Madame de Maintenon, Luís XIV descreve a princesa de Sabóia ao chegar a França - a futura Delfina -, que ele tinha ido receber a Montargis, no dia 4 de Novembro de 1696. A princesa é considerada «bela como se desejava 1». O rei alarga-se sobre o seu rosto, os olhos «muito belos», a boca «fortemente vermelha». Sublinha uma *«cinturaI muito bela», um «ar nobre e maneiras muito corteses», convencido de que a sua graça é feita «para encantar». Palavras de conveniência, é claro, também

repetitivas, que revelam já a dificuldade de evocar as características precisas da beleza, a de lhe citar os atractivos, as formas, os relevos. Revelam, antes de mais, o privilégio atribuído a certos traços sobre outros, aqui o rosto, mas também o ar, as maneiras,7 indispensável encenação da beleza no universo da corte. O corpo da futura Delfina, em contrapartida, pouco está presente nesta descrição, a não ser quando se alude à cintura («taille») revelando a elegância do busto, ou quando se alude à altura global «mais baixa do que alta para a sua idade». Nada mais do que as expectativas do mundo da nobreza do fim do século xvn. Um século mais tarde, as descrições diferirão muito, mostrando-se

sensíveis às aproximações à saúde, captando a desenvoltura do andar e dos movimentos, aventurando-se às singularidades das fisionomias. O que nos mostra Tilly, ao evocar Maria Antonieta no término do século XVIII: os olhos susceptíveis de «se apoderar de todos os caracteres», o peito «um pouco cheio demais», os ombros e o pescoço «admiráveis», o andar

duplamente ostentado: «um resoluto e um pouco apressado, o outro mole e mais balançado, eu diria mesmo acariciador,2 mas não inspirando, todavia, o olvido do respeito». O corpo ganhou em presença, tal como em

mobilidade. O observador também deslocou o seu olhar, varrendo as dinâmicas, as expressões. ar Donde o impacto duma história entre estas duas descrições: diferença dos códigos de beleza, sem dúvida, mas ainda das maneiras de as enunciar como de as olhar. E realmente esta história da beleza que se trata de voltar a traçar aqui, não a da arte, largamente explorada já , onde se matizam os modelos de escola, as suas referências académicas, mas aquela, mais social, onde se enunciam, nos gestos e palavras quotidianas, os critérios duma estética física directamente experimentada, os da atracção e do gosto. É realmente uma história que explora tanto as palavras como as imagens. As palavras, em especial, porque traduzem tomadas de consciência, os interesses discernidos, as sensibilidades reconhecidas e experimentadas. Esse terreno de acesso difícil que tão bem soube evocar8, no seu tempo e no que toca ao amor,

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encerram nas palavras.»

Essa história não está feita: é a duma beleza dita pelos actores, observada por eles, suas normas, seus perfis; também é a dos meios de embelezamento ou da manutenção, aqueles que dão sentido à atenção, os unguentos, os fards, os segredos. Essa história incide sobre o que agrada do corpo, ou não, numa cultura e numa época: aparências valorizadas, contornos sublinhados ou depreciados . Ela incide sobre a deslocação destas referências duma época para outra. Não se limita às formas,

evidentemente, mesmo que a sua importância domine. Abarca as referências expressivas: a atenção muito lenta prestada aos indícios vindos do

interior, os sinais da alma, a maneira como se manifestam nas posturas e nos movimentos . Ela incide sobre os imaginários que afloram à superfície corporal, os das tonicidades, dos ritmos, das mobilidades. Inclui, mais largamente, as referências do aspecto e do porte: as que os primeiros tratados de beleza modernos chamam «o ar», «a majestade», as que os

tratados da França clássica chamam, mais prosaicamente a «a atitude» ou a «boa admirável, mas pouco pensado, como se o fascínio que provoca fosse uma explicação suficiente ».

Adivinham-se linhas de mudança, uma vez evocados estes critérios e seus objectos. O enriquecimento das referências primeiro, como mostram as duas narrativas anteriores, no século xvn e no xvm: o matiz progressivo dos termos, a variedade progressiva das formas e objectos. As noções apuram-se, diversificam-apuram-se, os fins deslocam-se até à renovação de «alvos» designados. Os espaços, os volumes, a própria profundidade do corpo pormenorizam-se e ampliam-se corn os tempos. Uma lenta individualização destas referências constitui, aliás, uma segunda dinâmica temporal: os modelos permanecem absolutos por muito9 tempo, por exemplo, antes de serem relativizados, mais bem aceites na sua variedade. Insensível conquista das autonomias, as diferenças individuais não podem deixar de ecoar sobre a imagem da excelência física.

Dinâmicas temporais ainda, as que, ao deslocar as oposições sociais e culturais, inflectem os critérios da beleza, os seus efeitos

diferenciadores. As vagarosas mudanças do domínio exercido sobre as mulheres, por exemplo, têm realmente uma correspondência no universo estético: a exigência tradicional duma beleza sempre «pudica», virginal, vigiada, impôs-se por muito tempo antes que se afirmem as libertações decisivas repercutidas sobre formas e perfis, movimentos mais bem aceites, sorrisos mais rasgados, corpos mais desnudados. A história da beleza, para o dizer noutros termos, não será capaz de escapar à história dos modelos do género e das identidades.E possível, então, compreender melhor esta história como uma invenção. Até se podem distinguir três sentidos nesta maneira de inventar a beleza à medida que transcorre o tempo. O primeiro corresponde a um aumento da atenção. A originalidade da cultura europeia cerca dos fins do século xv reside na ascensão do

impacto conferido a uma presença: uma curiosidade estética nova

sublinhada nos rituais das entradas dos príncipes, nas práticas cortesãs, nos tratados. A novidade aqui faz questão duma vigilância realmente

especial incidindo sobre o belo e as impressões que este provoca. O segundo sentido da invenção é o duma importância estética inédita atribuída a uma parte exacta e singular do corpo: a insistência mais aguda posta, por exemplo, na figura, no século xvn - a cintura, o busto -, no papel fundamental conferido ao espartilho na sociedade distinta; ou na descoberta duma beleza do «baixo» corn os desvelamentos do fim do

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HISTÓRIA DA BELEZA

século XIX, as praias, os cafés-concerto, o uso de vestidos que moldam e são justos; ou as dinâmicas atravessando ainda as belezas de hoje, a música, os ritmos latentes sob a expressão e os movimentos. A história assemelha-se aqui ao efeito duma conquista, arrastando, insensivelmente, para o território da beleza um número cada vez maior de objectos.

O terceiro sentido é o duma invenção de qualidades ou formas, menos dos «sítios» novos que dos desenhos novos: o perfil privilegiado no século XIX, por exemplo, largamente reconstruído, corn ombros enchumaçados, peito sobrepujando um ventre apertado. Já não a parte de cima do corpo puxada para trás, marcando qualquer altivez aristocrática, mas sim o busto direito, reforçado, usando as verticalidades para evocar melhor qualquer determinação «burguesa». Um imaginário da arrogância, há muito inscrito no corpo, cede ao da eficácia, neste caso. A história da beleza é realmente a das formas, dos portes, das expressões, dos traços.

«Inventar» é realmente aqui «remodelar», «redesenhar». ; s

Outras tantas diferenças provocadas pelas mudanças de cultura, outras tantas diferenças que podem revelar, melhor do que outras, essas mesmas mudanças.

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PRIMEIRA PARTE

A beleza revelada (Século XVI)

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«Pura e simples claridade donde procedem todas as outras », a beleza é o fulcro de inúmeros diálogos e discursos no alvor da modernidade. Uma certeza os acompanha: a duma perfeição instalada no coração do mundo. Essa beleza será também modelo único, conjunto acabado: «Marca das coisas celestiais2», «anjo descido do céu ». Outros tantos princípios teóricos, sem dúvida, aparentemente afastados de qualquer comportamento concreto. E, contudo, inflectem a maneira quotidiana de olhar o corpo,

privilegiando as suas partes «altas» - o busto, o rosto, os olhos e o seu fermento divino -, aquelas consideradas como manifestando a única e

verdadeira beleza, e também a mais perfeita, porque a mais «elevada». Outra consequência: era impossível que o absoluto aceitasse correcções, era impossível que a beleza fosse «trabalhada de novo». Por exemplo,

ofard não mente ao comprometer a perfeição revelada? Donde a inevitável

ambiguidade de embelezar o corpo, a interminável contestação a todo e qualquer artifício. Dificuldade proclamada à qual se juntam censuras surdas de dominação

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tando a primeira beleza moderna da beleza de hoje: a mulher, em especial, corn as «suas carnes tenras e a sua tez dum banco resplandecente », é constituída em modelo de beleza, nunca podendo escapar às estéticas da modéstia, as das silhuetas paralisadas no cenário e na imobilidade. Uma visão de perfeições, uma visão de diferença sexuadas misturam aqui, confusamente, a experiência da excelência extrema à certeza duma

sujeição. 16

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CAPITULO I

Corpo descrito, corpo hierarquizado

Uma descoberta decisiva impõe, antes de mais, essa tal beleza moderna. As personagens das cenas da Paixão representadas por Simone Martini, em 1340, corn os seus volumes atabafados em panejamentos , continuam a ser muito diferentes das personagens da Crucificação, pintada por Mantegna, em 1456, corn as suas figuras estruturadas e os seus

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relevos modulados . As segundas revelam uma «invenção do corpo ». A beleza ganhou bruscamente em consistência e em imediatismo. Ma-*

saccio, o primeiro , inventou, cerca de 1420, essa nova maneira de restituir a presença carnal , o jogo corn as massas físicas, a cor, a espessura das formas e as redondezas. A beleza entrou na modernidade. Já se fez

Tommaso di Ser Giovani di Simone Guidi, conhecido por «Masaccio» - «Tomás desastrado» -. nasceu em 1401 e morreu em 1428. É considerado o «criador da pintura». O autor refere-se-lhe como «o primeiro» porque há outro Masaccio, Filippino Lippi, que nasceu em 1457 e morreu em 1504, tendo sido este a acabar o quadro do «primeiro» designado por A resssurrreição

do filho de Teófdo. Este é considerado, a certa altura, como o «percursor

do barroco». (N. da T.) 17

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a história dessa «mutação do pensamento figurativo » na Renascença, esse brusco realismo das formas captadas pelos corpos pintadas na Toscânia do século xv, a maneira como as figuras se agudizam nos quadros. É

impossível ignorar, todavia, a hierarquia do visível e do corpo na vida quotidiana: o privilégio conferido às partes altas, o intenso

investimento no rosto, essa orientação muito focada do olhar que uma porção de constrangimentos conseguiram impor. :i-Kt <- o,«

A FORÇA DUMA PRESENÇA, O LIMITE DAS PALAVRAS

Há que insistir, antes de mais, no trabalho do pintor, ainda que essas novas diligências, entre o século xv e xvi, ultrapassem muito as empresas pictóricas. E nos seus estúdios que se acumulam, a partir dos fins do século xv, retratos de mulheres menos feitos pelo seu prestígio ou a sua classe social do que pela sua beleza. La Bella, ilustrada por Ticiano , releva desse género inédito. Uma personagem anónima mas «beleza

perfeita», essa mulher pintada por aquela razão exacta, a que leva o duque de Urbino a comprar o quadro: admirar uma «Beleza ideal ». O duque ignora até o nome da mulher que designa por «dama corn vestido azul», mas confessa experimentar um júbilo novo perante

a beldade conservada «só por esse interesse» . As colecções dos primeiros amadores de arte mudam de objecto, aliás: o seu fim já não é somente acumular grandes cenas religiosas, curiosidades, retratos de personagens particulares ou públicas, como aquela, excepcional, do florentino Paul Jove, por volta de 1520-1530 , incluindo intermináveis séries de rostos de imperadores, de sábios ou de reis, o seu fim é também ilustrar os próprios princípios da beleza.

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HISTÓRIA DA BELEZA

Essa «intensidade» de presença não poderia deixar de produzir efeito sobre as descrições corporais. As suas referências tornam caducas, bruscamente, as frases medievais e as suas alusões breves onde se opunham, sobre um fundo de brancura, a espessura dos seios à esbelteza dos flancos: «as ancas baixotas (afiladas) e estreitos os costados », na rapariga de Élie de Saint-Gilles, as «ancas baixotas11» ainda para

Branchefleur, no século xm, ou o «seio duro, branco de cor, claro o sem-12

blante », na Beatriz, de Raoul de Cambrai, no século xn. Existe uma beleza medieval, é indiscutível: semblante simétrico e branco, seios acentuados, cintura apertada. Os corpos evocados pelas palavras do século xvi, em troca, parecem revisitados : as carnes sublinham-se, os termos diversificam-se. O corpo feminino, em especial, ganha uma espessura e uma carnação que não possuía. A aparência torna-se mais polposa, a dilatação mais consistente. Uma sensualidade discreta evoca

«a seiva » aflorando à pele, sugerindo o «born suco», o «leite e o sangue14».

No mais fundo destas diligências está a importância do sensível que aumentou, é preciso dizê-lo, está um apego mais estreito e, sobretudo, mais aceite, à estética e ao prazer. São esses os valores mundanos que se impuseram mais, os das graças quotidianas, os da vida, do imediato:

aquela espessura das coisas que a Plêiade soube transpor em profundidade poética. As palavras tornam-se enfeitiçadoras, inevitavelmente: as

mulheres de Ronsard, em 1560, têm «seios brancos como alabastro », as de Louis lê Jars, em 1575, «uma larga fronte de marfim polido ». Substâncias preciosas, matérias depuradas dominam as abordagens: a «pérola do

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oriente», a «neve imaculada », o «lírio encerrado no cristal ».

Estas palavras têm igualmente os seus limites. Mostram, na fronteira da modernidade, todas as dificuldades em dizer a beleza do corpo.

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# Os estereótipos ameaçam essas descrições. A palavra embonpoint é

disso o melhor exemplo. Regularmente usada, no século xvi, para indicar o estado de equilíbrio entre «magreza» e «grossura» (ou «espessura) é

evidente agora que o termo, em si mesmo, tal como os seus adjectivos, sugerem mais do que evocam formas definidas: três belle et en bon point , é a mulher amada do «dominicano» na narração das

20 Cent Nouvelles nouvelles; três belle et en grand point , é a mulher das

estufas num outro texto; en meilleur poinct de «dia para dia» estaria a

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«jovem rapariga » alojada e «vestida» por um procurador na narração de Bonaventure dês Périers; feia, por fim, e em mauvais point é a «mulher já corn idade» descrita na quinta novela do «Heptameron». Graus hierárquicos pouco perceptíveis, sem dúvida, que vão do mau ao melhor, do menos ao mais, sem que exista um indício exacto a partir do qual uns e outros se possam distribuir.

São estas palavras, e as práticas que lhes correspondem, que se irão precisar corn o tempo: insensivelmente enriquecidas, insensivelmente referidas a objectos mais bem situados e mais bem definidos.

O TRIUNFO DO «ALTO»

Ainda é preciso acrescentar como a beleza social, a que nos interessa aqui, a dos espaços quotidianos, obedecia, no século xvi, a normas opres-«Em boa saúde» - era um termo relativo à nutrição. Dantes escrevia-se en

bon point, portanto, respectivamente: «muito bela e corn boa saúde»,

«muito bela e corn óptima saúde», «corn melhor saúde» e, ainda «corn melhor saúde», «corn má saúde», «corn pior saúde». O termo evoluiu e agora avoir de l ’enbonpoint é o correspondente a ser gordo, estar nutrido ou, até só, «ter uma barriguinha». Digamos que passou a ser depreciativo, senão mesmo pejorativo, numa época em que a moda é outra. Como se vê acima, havia variantes da própria expressão - por isso só a explicámos em rodapé. (N. da T.)

Garse ou garce era o faminino de garçon, rapaz, até cerca do século XVI.

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’HISTÓRIA DA BELEZA

soras que ditavam a aparência. O olhar é orientado: submetido a um código de moralidade. O que limita a beleza a esferas circunscritas do corpo. Sobretudo, vigora um critério: o do descoberto e do escondido. Não para sublinhar qualquer mistério do escondido, mas antes para sublinhar a sua abjecção: a existência de zonas envilecidas e de zonas enobrecidas. Esta lógica inteiramente virtuosa põe «em evidência os membros

hon-2

rosos» e põe «longe do olhar » os membros depreciados. Firenzuole, por exemplo, nos seus Discours sur Ia beauté dês dames, acentua a inutilidade das áreas inferiores para designar a beleza, embora tenha descrito

largamente o nu: «A natureza induz as mulheres e os homens a descobrir as partes altas e esconde as partes baixas, porque as primeiras como sede própria da beleza se devem ver, e corn as outras não é assim, sendo apenas o alicerce e o sustentáculo das superiores .» Ou ainda Jean

Liébault, no seu trabalho sobre o embelezamento, pretendendo «não se ater senão às partes descobertas», após ter explorado, todavia, o corpo no seu conjunto. O que agudiza este comentário, num diálogo entre mãe e filha, do fim do século xvi: «Que necessidade há de se preocupar corn as pernas 25

visto não ser uma coisa que seja preciso mostrar? »

Mais importante ainda: os vestidos do século xvi acrescentavam às suas formas revestidoras um intenso alargamento. Abaixo da cintura

expandem-se quase na horizontal, sustidos por «verdugadas » e suas

lâminas de ferro ou de madeira, transformando mais do que nunca a saia em pedestal do busto, acentuando mais do que nunca a importância do «alto». Não que o «baixo» seja absolutamente negligenciado. Pode até ser objecto de luxo, mas para melhor se lhe apagar a forma física, como nas gravuras de Vos de Galle, em 1595, onde os tecidos

burgue-0 mesmo que «anquinhas». Começou por se dizer «saias enverdugadas» e depois passou a «verdugadas». Em francês é vertugadin (em 1604, tendo a palavra vindo de vertu, que derivou do espanhol verdugado(\544).(N.daT.) 21

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sés se estendem e se enriquecem até ao chão, cada vez mais trabalhados. O «baixo» continua a ser, primeiro, o suporte, o soco quase imóvel do

«alto», como nas efígies das «damas inglesas» de Holbein ou das 28

patrícias italianas de Bronzino . Não há aqui mais do que o transvestir da linha anatómica: para melhor exibir, abaixo da cintura, uma base horizontal dilatada como apoio , efígie de escultor onde o busto se sobrepõe ao seu anónimo alicerce. O que revela ainda a imagem de

Firenzuole, no seu tratado sobre a beleza, projectando o alto do corpo em fina taça de faiança cuja dilatação ilustraria o tronco, corn o soco a figurar as pernas, as asas a figurar os braços .

Outra lógica ainda reforça esta visão hierarquizada: a ordem estética orientada pela ordem cósmica. A beleza do mundo, cujas regiões etéreas representariam a perfeição, serve aqui de modelo à beleza do corpo: o céu cósmico e o céu corporal correspondem-se no século xvi. O busto, o rosto, as mãos seriam os únicos sítios que apelavam para a estética física, destapando-se «principalmente numa parte, a saber, o alto que se vira para a luz do sol31». Têm uma «proximidade corn a natureza dos anjos32». Impõem-se pela sua única localização: aquela cuja eminência permite a cada

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um «contemplá-los melhor ». Donde aqueles comentários e aqueles retratos que jogam corn os penteados «nebulosos», os rostos solares, a sua «ordem geométrica » sublinhada. Referências idênticas, outra vez, no princípio do século xvn, onde a Art d’embellir, de Flurance Rivault, orquestra um aspecto físico hierarquizado mais do que nunca: partes baixas tornadas «alicerces», partes médias tornadas «gabinetes e cozinhas»,

par-Este busto andava apertado numa peça que se vestia por baixo do vestido e também por cima duma camisa fina, altamente enrijecido corn madeira, metal ou barbas de baleia - quando apareceram na Europa

- e que talvez se tenha chamado «corçw», o que explicaria perfeitamente que, mais tarde, Madame de Sévignée, Madame de Maintenon e Saint-Simon ainda lhe chamassem assim - corps - e não corset, que o autor - talvez para simplificar uma área da linguagem tão difícil como é aquela que se prende corn o vestuário através dos tempos - diz «ser outro nome para

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HISTÓRIA DA BELEZA

tes altas feitas para o olhar e o aparato, entregues só à beleza, oferecendo o rosto como um fruto », rematando uma expansão vinda da sombra. O que confirma a lógica do edifício cujas divisões efevadas seriam de longe as mais apuradas. O que confirma a visão moral: a anatomia é orientada ,

declinada desde o nobre ao menos nobre, do delicado ao grosseiro. E

impossível, por consequência, evocar a verticalidade sem designar a ascensão e a queda, a grandeza e a indignidade.

Essa escolha, muito moralizada, leva a retratos quase truncados. O

próprio Ronsard não cita do corpo senão as partes «elevadas». «Os olhos, a fronte, o colo, os lábios e os seios », cingem-se, na maioria das vezes, ao pescoço e cara:

Seio branco como alabastro E os teus olhos dois sóis Teus belos cabelos

38

Na encomenda versificada que o amoroso de Cassandra faz a a Jean Clouet para pintar a jovem mulher, 140 dos 170 versos incidem apenas

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no rosto . A marcação é ainda mais restrita em Maurice Scève, em

1544, onde das 450 dezenas de versos, consagrados por ele à alma e ao corpo «perfeitos » de Pernette du Guillet, mais de cem evocam os olhos enquanto nenhum, ou quase nenhum, descreve o corpo. A silhueta permanece apenas esboçada, como que apagada.

Desse olhar, muito focado, emerge um modelo formal, seja como for. Imagem tradicional para o rosto, reputado de misturar num oval a cor «da rosa e do lírio». Imagem mais acentuada para o busto, reputado de manter num «cesto» linhas fortemente afiladas em direcção à parte de baixo: «O conjunto do peito tem a forma duma pêra invertida mas um pouco

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comprimida^ cujo cone é estreito e redondo na secção inferior ». A

simetria e a leveza vencem. Não que a forma seja nova, como é mais do que evidente, mas dá nas vistas devido à largura dos ombros, à inflexão das ilhargas, à esbelteza dos flancos. A estreitura marca a modernidade. A cintura torna-se tanto mais importante quanto a sua «deselegância» define instantaneamente a imagem: as «pesadas de cintura» das Cent Nouvelles

nouvelles, no século xv, são as inábeis, as tolas, seja qual for o seu

aspecto físico, o que reforça ainda o sentido da palavra. A mulher do cavaleiro do Haynau é, aliás, qualificada «de um pouco deselegante na cintura», muito simplesmente porque não era «a mais sagaz do mundo» . A mão e o braço participam também desse prestígio do «alto», objectos dum olhar às vezes fascinado, tão intenso até que é capaz de fazer admirar o leitor actual. São inúmeros os estudos acerca disto nos cartões dos

desenhos do século xvi. Inumeráveis são as repetições nas descrições literárias. É preciso uma mão comprida, branca, leve. Brantôme atarda-se aí evocando Maria Stuart e «o alaúde que tocava tão lindamente corn aquela mão branca e os belos dedos, dedos tão bem feitos que não deviam nada aos da Aurora ». Atarda-se aí ao evocar Catarina de Médicis,

estudando as parecenças entre as mãos da rainha e a do filho . Henrique VIII atarda-se mais ainda aí, encarregando muitos emissários de avaliar a beleza da duquesa de Nápoles, que quer desposar: «Verão a sua mão nua, e notarão muito exactamente como é feita, se é espessa ou delgada, se é gorda ou magra, comprida ou curta. Repararão nos seus dedos, se são compridos ou curtos, grossos ou delgados, largos ou estreitos na ponta .» A mão, como a cara, permanece um objecto principal da beleza do século xvi. É por ser parte do «alto», sem dúvida. É também por revelar um estado do corpo mantido oculto pelo revestimento do trajo. Ela sugere, ela desvela, como o fazem as mangas repuxadas de Isota, a rica

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HISTÓRIA DA BELEZA

fazendeira duma obra de Straparole «descobrindo os braços tenros, roliços e brancos como neve ». Dos emissários de Henrique VIII não se enganam os que sublinham a mão «doce ao tacto» da princesa napolitana e duma

«redondez muito atraente» . Indício, ou até promessa, a mão diz realmente aqui o que não se vê, revelando de passagem toda a ambiguidade ao não evocar, explicitamente, senão o «alto».

O EMPILHAMENTO DAS PARTES

Esta anatomia moralizada e hierarquizada pelos tratados de beleza do século xvi influencia ainda a visão do elo entre as partes: o corpo é apresentado como junção de elementos «empilhados» sobrepujado pelo conjunto. A evocação das pernas como simples colunas sustentadoras não conduz à exaltação das curvas da bacia, dos arqueamentos e das flexões das costas. O alargamento da saia, apresentada como simples soco, não leva a privilegiar as continuidades possíveis entre o alto e o baixo. A única imagem glorificada torna-se a do agregado, a única referência, a do empilhamento. A aparência da beleza no dia-a-dia, o mesmo é repeti-lo, identificar-se-ia a uma fachada e seus suportes: «magnífico edifício » ou, até, «ornamento esculpido», vaso ou estátua, onde as pernas e as coxas seriam a única base ou o pedestal. Donde a

49

figura sempre retomada da colunata, a do edifício e seus alicerces: Ventre elevado sobre duas colunas

De mármore branco potentes e úteis

50 25

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Este tema do edifício tem por resultado impor o triunfo da estática sobre a dinâmica. Apaga qualquer combinação de força e de tensão: os níveis só teriam de se juntar, as partes de se empilhar, as duas «colunas que sustém o belo edifício 1» sendo muito intuitivamente paralelas e direitas, onde até o conjunto do corpo não era, ele próprio, a não ser 52

uma «coluna direita » sobre a qual «o todo é colocado». O que confirmam, de passagem, os anatomistas do século xvi, silenciosos sobre a

obliquidade das coxas femininas, alusivos quanto ao dispositivo da bacia. André Vésale descreve as ancas, mais largas na mulher do que no homem, sem mencionar as forças em jogo, Ambroise Pare atém-se às linhas gerais dos ossos «dos ílios e do ísqueo 3» sem os distinguir. O papel da

curvatura lombar não é considerado, nem o dos ajustes da bacia. O porte do corpo limita-se a ajustamentos verticais: dito de outra maneira, o esqueleto garantiria a direitura devido ao alinhamento dos ossos, mais nada.

A verdade dessa primeira beleza moderna, evocada no século xvi, residiria numa associação de partes: uma contiguidade de objectos compondo a

perfeição.

O PODER SINGULAR DOS OLHOS

Última consequência do privilégio atribuído às partes altas: o papel decisivo dos olhos. Não são eles a luz do corpo ? Relâmpagos ou labaredas, incarnam os astros, o sol, a cintilação do céu: claridade ofuscantemente copiosa55». Aproximações tanto mais repetidas quanto o olho em si mesmo é concebido como um fogo pelos anatomistas do sé-56

culo xvi: «lanterna » activa projectando a sua chama, segundo a an-26

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HISTORIA DA BELEZA

tiga imagem de Plínio, e não espelho passivo reflectindo raios, consoante a imagem mais moderna de Laurent ou Kepler . Os olhos têm um poder

próprio, uma claridade luzente como a dos gatos ou dos lobos. Não passam dum «farol» reputado de «conduzir um navio ». Baldassare Castiglione lança-se numa longa dissertação sobre as partículas de fogo «emitidas pelos olhos», susceptíveis de atingir o espectador até o paralisar, «vapores muito subtis feitos da parte do sangue mais clara

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e mais pura» . Fracastoro conta ainda, em 1550, que «os Tessálios e certas famílias de Creta estão habituadas a lançar mau-olhado e que ao olhar crianças as põem doentes ». Os textos em que ele se inspira evocam mesmo as «exalações perniciosas que saem do olho » duma pessoa contagiada para penetrar no do observador e o contagiar, por sua vez. Os anatomistas contam igualmente a anedota que vão buscar a Galeno, a do «soldado que se ia tornando cego pouco a pouco e sentindo que, todos os dias, lhe saía dos olhos como que uma luz que o abandonava ». Châtelard pode jogar então corn esta aproximação, num dia de 1561, e poetizá-la. O homem que

acompanhava Maria Stuart pela Escócia apoia o elogio da rainha fazendo-lhe dos olhos a melhor defesa contra o espesso nevoeiro da Mancha: «Não seria mais necessário farol nem chama para nos alumiar no mar, porque os olhos desta rainha são bastante cintilantes e bastariam para aclarar, corn as suas belas labaredas, todo o mar, até para o abrasar em caso de necessidade ». O dardo e o fogo, dito doutra maneira, misturam as suas imagens para fazer da beleza uma radiação específica a atravessar espaço e espectador:

O s teus olhares fulminantes perfurando-me corn suas setas A pele, o corpo, o coração, como pontas de setas .

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A nobreza dos olhos dependeria então da troca luminosa interminável que torna possível a sua proximidade do céu, «olhando na sua direcção como num espelho ». A poesia de Maurice Scève é característica, neste aspecto, corn esses tais olhos omnipotentes, transportando consigo «flechas», «setas», «raios», «veneno», «chicotes»; semelhantes ao «sol», às

«estrelas celestes», às «estrelas cintilantes», às «safiras radiosas»; as próprias sobrancelhas imitando «arcos de estrutura sem par em beleza» , transportando relâmpagos e flechas aceradas, enquanto as outras partes do corpo continuam para o poeta, há que o repetir, grandemente apagadas. A pintura do século XVI explora, aliás, esses olhares conduzidos como alvos para escavar a profundeza dos quadros, essas «linhas de tensão

introduzidas pela direcção dos olhos »: jactos sempre projectados,

dirigidos, entrecruzados, onde o espaço acha o seu volume e o espectador o seu lugar, directamente interpelado por esses raios conduzidos.

Evocar a beleza física corresponde primeiro, aqui, a evocar a fisionomia, ou, no limite, a força dum olhar: o negro, sobretudo, brilhante,

que obriga, perante ele, «a baixar os olhos ». Trata-se dum fascínio

primário, duma focalização que o tempo poderá tornar apenas mais complexa conferindo às outras partes do corpo uma importância de que não

dispunham. 28

(23)

CAPITULO 2

O «sexo» da beleza

Essa primeira beleza moderna apenas se define noassociando, como era inevitável, fraqueza e perfeição, agudizando

ain-1 2

da a sua especificidade: «Divina corpulência », «gestos deliciosos », «oloroso hálito ». Outros tantos sinais que promovem essa estética até ao «deslumbramento ». Outros tantos sinais que orientam as cornparações, valorizando um «esplendor que escolheu incarnar-se nas mulheres mais do que nos homens e de as cumular superabundante mente ». A beleza valoriza o género feminino ao ponto de aparecer nele como o remate. O que

aprofunda a nova ascendência do sensível e do gosto. O que confirma uma alteração de cultura: o reforço do estatuto da mulher na modernidade, ainda que esse reforço não possa suplantar a obscura e reiterante certeza duma inferioridade.

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O SÍMBOLO DA BELEZA FEMININA

Primeiro, as palavras são as do ideal: «Ela é o espectáculo mais admirável, a maravilha mais rara e, a menos que se seja cego, cada um confessará que Deus congregou na mulher o que o universo possui de belo .» As imagens confirmam as palavras, multiplicando as Vénus de formas fluidas e espiritualizadas, de atitudes nobres, interiorizadas: «Vénus substituiu a Virgem » na pintura renascentista, afirma Pierre Francastel. A mulher, aliás, instalou-se no coração de triunfos muito estudados desde meados do século xvi. Joana de Aragão, por exemplo, cujo retrato Francisco I quis adquirir, julgada tão bela que era objecto de muitas «apoteoses poéticas», tão excellentissima que a academia veneziana de Dubbiosi redige um decreto para lhe dedicar um templo, em

15518, honra absolutamente especial feita ao seu esplendor e virtude. Jacomo Ruscelli faz dela, num longo poema de 1552, o exemplo arquetípico, o criterium sacrae , aquela a que todas as outras beldades se deveriam comparar, ao ponto de fascinar Bayle, um século depois . Templo de palavras, sem dúvida, não de pedras, mas que mostra quanto variam os elogios feitos a esta beleza deliberadamente feminizada. Joana «parece saída duma raça divina e não dum tronco humano », «revelação» dum belo vindo de alhures.

O importante atém-se a essa promoção pela estética, pelo menos no escol: «corn a Europa da Renascença, o segundo sexo torna-se o belo sexo1 ». Pela primeira vez, a mulher é vizinha da perfeição, parcialmente imune a uma tradição que a diabolizava. O prestígio de Vénus na iconografia, o prestígio da «corte das damas» nos que privam corn os príncipes, a

dominância da beleza feminina nos tratados de beleza, parece-se corn uma reabilitação. Nada mais do que a primeira forma

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HISTÓRIA DA BELEZA

moderna dum reconhecimento social. Donde o início de novas certezas: a importância atribuída ao casamento, por exemplo, o elogio insistente que lhe faz Erasmo, nos seus colóquios, ou o de La Boétie, assimilando 13

a sua mulher à sua «semelhança », embora o cristianismo medieval

exaltasse a existência contemplativa. Ou o gosto até ao desconhecido pela «irmã de aliança», essa relação toda sublime que ata Montaigne a Marie de Gournay antes do primeiro fazer da segunda sua herdeira espiritual,

editora das suas obras, em 1595 . Os comentários sobre a donna di

po.Haiz.Oy na literatura do Cortesão, ilustram o todo destas renovações:

ela é «a alegria e o esplendor das cortes », conferindo «graça» ao diálogo e «doçura» às coisas; ela confirma a mudança das relações entre os sexos, o advento duma arte da conversa, o desenvolvimento dum júbilo esteticizado. É preciso esse novo privilégio da beleza feminina para acentuar, sem dúvida nenhuma, o da feminilidade.

;-O H;-OMEM, MAIS «TERRÍVEL» D;-O QUE BEL;-O

Faz-se aqui uma divisão, todavia, orientando os géneros na direcção de duas qualidades opostas, nitidamente e por muito tempo: a força para o homem, a beleza para a mulher; para um, «o trabalho da cidade

17 18

e dos campos », para a outra, «o abrigo da casa ». Fronteiras decisivas entre os papéis, fronteiras decisivas entre as aspectos. O homem não poderia estar «curioso quanto à sua tez » - teria de enfrentar «labores e intempéries» - , a mulher, em contrapartida, deve vigiar essa

20

tez para melhor «recrear e deleitar o homem fatigado e lasso ». Não que ele seja privado de beleza em si mesmo: a imagem da majestade

21

divina já «reluz nele, incompreensível ao espírito humano ». Ele é a 31

(26)

réplica exacta disso, ao ponto de ser também um modelo dominante: 22

«mais perfeito do que qualquer outro animal ». A retoma de narrações anteriores ao século xvi confirma, por si só, uma atenção evidente

prestada à beleza masculina: Demétrio, por exemplo, o filho de Antígona, que nenhum pintor ou escultor «ousou retratar» de tal modo era «bela a sua representação ».

Mas Demétrio acrescentava precisamente a essa beleza a diferença que constitui toda a especificidade masculina no mundo moderno: «Tinha em si uma graça e um terror juntos, associados a uma mansidão e uma

grandiosidade que parecia nascido para se fazer amar e venerar no mesmo instante ». O homem deve ser dominador, «terrível e belo», diz Romei, «a fim de que, ao combater corn furor, seja terrível para os

25

inimigos ». Tem de impressionar mais do que seduzir, «engendrar o

terror » mais do que o amor; a «graça», sem dúvida, como no cortesão, mas também a austeridade e até a dureza. O que leva a opor as qualidades masculinas e femininas acentuando no homem outros imperativos que não os do belo: «Os homens têm o corpo robusto feito de potência, o queixo e grande parte das faces guarnecidos de pêlos, a pele áspera e espessa porque os costumes e condições do homem são acompanhados de gravidade, de severidade, de audácia e

maturida-27

de ». A galeria dos capitães, descrita por Brantôme, sugere bastante 27

de ». A galeria dos capitães, descrita por Brantôme, sugere bastante bem essa mescla de requinte novo e de rudeza, de «elegância natural» e de robustez onde «as maneiras absolutamente marciais » de Cosme acr de Médicis se apontam como modelo. doO que transtorna também os pontos de referência medievais ligando, bér há muito, valores estéticos e virtudes cavalheirescas. Froissart, por exemplo, podia-se atardar na estética do conde de Foix, em «o seu rosto belo,

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HISTORIA DA BELEZA

Guy de Borgonha, no romance medievo, podia acentuar os traços masculinos como modelo de beleza, a sua «carne [sendo] mais branca do que prata e cristal ». Outras divisões, em contrapartida, vencem corn a modernidade, acentuando até ao desafio, às vezes, o rosto dum homem «hirsuto e marcial ». Liébault oferece deste uma imagem derradeira, senão caricatural,

nitidamente oposta ao critério do belo: «O homem, horrível de pêlos na cara e em todo o corpo, tem um rosto soberbo, carrancudo

e inumano ». A excelência da estética física feminizou-se definitivamente: força e beleza dissociaram-se.

A ORDEM DOS TEMPERAMENTOS

Tudo qualidades talhadas pela diferença dos temperamentos e

reinterpretados segundo as especificidades definitivas da força masculina e da beleza feminina. As mulheres são frias e húmidas: a frieza torna-as débeis, a humidade, ternas. Os homens são quentes e secos: o calor torna-os vigortorna-ostorna-os, a secura, consistentes. As primeiras são «mais

gordi-50

nhãs e mais moles ». Os segundos são mais firmes e mais «sólidos». Umas vivem no repouso, os outros têm de «aguentar o trabalho e a dor corn uma coragem invencível ». A frieza impede nelas o aparecimento de pêlos, acentuando-lhes a delicadeza, polindo-lhes a pele; o calor acrescenta neles o brotar dos pêlos, acentuando-lhes a dureza, hirsutando-lhes a pele. Os humores discriminam os corpos. E discriminam também a beleza, tornando a fragilidade graciosa como nunca.

Cores e formas vêm ainda daqueles líquidos que os corpos fabricam. As raparigas ruivas, por exemplo, são suspeitas de humores viciados, enquanto as loiras são suspeitas de humores demasiado pálidos, mesmo 33

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que agradem, incontestavelmente, multiplicando «madeixas flamejantes» ou «raios de sol ». As primeiras são más, as segundas são fracas. li

Em contrapartida, as morenas seriam mais fortes, de «melhor calor do que as loiras para cozer e digerir os alimentos », para «aquecer» os

filhos, também. Teriam a fecundidade das terras acobreadas.

Ainda é preciso matizar a aparente novidade propagada pelos médicos que lêem Aristóteles e Galeno. A visão destes temperamentos morais tem um longo passado onde se hierarquizam as qualidades, assimilando à moleza uma enfermidade: a fêmea é mais imperfeita, por ta

37

«uma razão principal, a saber, porque é mais fria ». A temperatura medíocre provocaria a indigência, a incompletude, bem ilustrada pela implantação dos órgãos sexuais, «visíveis» nos homens, «invisíveis» nas mulheres, anatomia ditada pelo destino dos humores: «O calor dilata e alarga todas as coisas e o frio detém-nas e fecha-as ». Donde essa disparidade possível entre a «imbecilidade» feminina e as qualidades «da 39

alma e do corpo das quais [o homem] está ornado planturosamente », an certeza que se adentra na modernidade acompanhando o imaginário sei dos humores. É a superabundância aquosa ainda que tornaria as coxas das

mulheres mais grossas e mais pesadas do que as dos homens, pela quantidade de humores que pesam descendentemente.

A cultura do século xvi ultrapassa, todavia, esse tema das fragili- A dades para transpor «delicadeza e melindre » em perfeição de beleza. Os humores desenvolveriam o aspecto da mulher. A sua ternura atravessar-lhe-ia o corpo até lhe transfigurar os olhos: esse «sangue dura zac gracioso e indizível licor cujo lustro aproximando-se por vezes da me- do nina do olho e mortificando, vivifica todo o coração a amar dispôs- do to41». A sua brancura também, ligada à frieza, impregnar-lhes-ia a pele: as i «A sua carne das mais tenras, o seu rosto dum branco

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resplandecen-HISTORIA DA BELEZA

te ». O velho tema da imperfeição feminina perde em «evidência».

Inevitável se torna a certeza de La Primaudaye, em 1580, contestando a opinião dos «físicos» para quem «a geração da mulher seria uma

enfermidade e imperfeição da natureza ». Inevitável se torna a

dificuldade em «admitir a imperfeição da mulher sem pôr em causa a obra do criador ». Uma questão de medicina moralista, sem dúvida, ou da letrada, mas que inicia, no entanto, uma ruptura mental, mesmo que a resposta dada em nada conteste as hierarquias tradicionais: «Porque tanto é perfeita uma formiguinha na sua espécie, que é a menor de todas as bestiagas, como um elefante na sua, que é das maiores ». A mais pequena, até a mais débil, não seria menos «perfeita». As qualidades femininas, dizendo-o doutro modo, são excelentes e subordinadas, em simultâneo. A mulher permanece inexoravelmente «inferior », tanto mais dominada quanto a sua beleza é feita para «alegrar» o homem, ou, melhor ainda, para o «servir». Criada para uma coisa diferente, ela continua a ser pensada para ele: promovida, sem dúvida, mas mais na literatura do que na sociedade .

47

A ORDEM DAS MORALIDADES

Essa moralidade é ainda mais profunda, mesmo sendo ela

escravizada, e sempre também mais específica: a imagem totalmente divina do belo não declina um espectro de perfeições? A visão hierarquizada do universo, a distância imaginária entre as regiões cósmicas etéreas e as regiões terrestres degradadas tem uma forte consequência: a de ligar surdamente entre si os sinais do absoluto. A excelência das feições su-35

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põe então a das virtudes: as zonas celestes supõem correspondência e unidade.

Essa equivalência que o Cortesão pretende de origem quase sobrenatural: «Eu diria que a beleza vem de Deus, e que ela é como um circulo do qual a bondade é o centro [...]. Também é raro que uma alma má habite um corpo belo, e é por isso que a beleza exterior é o autêntico

48

sinal da beleza interior .» A beleza não pode escapar então às velhas hierarquias espirituais dispondo em camadas sobrepostas terra e céu, sombra e luz, profano e sagrado. Uma maneira de substituir a via dos grandes místicos, essa exigência mais moderna dum absoluto alicerçado na estética e no saber. Uma maneira também de transpor as formas

inteligíveis de Platão, a Beleza, a Verdade, o Bem, para as do paraíso 49

cristão: esse neoplatonismo do século xvi cem vezes estudado . Miguel Angelo evoca-o como uma descoberta progressiva e luminosa num dos seus poemas mais espiritualizados: «Os meus olhos enamorados de coisas belas e a minha alma enamorada da sua salvação não têm qualquer outro meio de se elevar ao céu a não ser pela contemplação de todas estas belezas ».

O que conduz, ainda mais fundamente, a hierarquizar as belezas segundo critérios de moralidade: precisar a perfeição estética ligando-a ao Bem. Donde esta interrogação inevitável: que dizer das figuras «belas»,

todavia, mas animadas de desígnios malévolos? Que dizer das presenças todavia sedutoras mas pertencendo a seres malignos? É preciso que

indícios referenciáveis traiam a imoralidade na beleza. É preciso que o mal se inscreva nas feições. É preciso que o belo, o rosto, os olhos se hierarquizem a partir de valores morais rematados. Gabriel de Minuit arrisca-se a responder numa tentativa laboriosa de classificação: as belezas não morais seriam falsas

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bele-HISTÓRIA DA BELEZA

zás. Donde essas três categorias longamente evocadas, a «sediciosa»,

a «melindrosa», a religiosa», distinguidas da mais vil à mais nobre: essa estética cujos efeitos sobre os contornos do corpo se adivinham tanto mais quanto não são precisados.

A primeira dessas figuras, a «beleza sediciosa», é a do escândalo e da sedução, a que revelaria a amante e a rameira. Gabriel de Minuit,

alimentado pela literatura antiga e pela literatura religiosa, ilustra-a corn a imagem da filha de Herodíade no Novo Testamento , dançando à frente do rei «incrustada de todas as sortes defards», juntando gestos «impudicos» e atitudes lascivas para que o príncipe pudesse «tirar [daí] 52

prazer ». Intenções viciosas e movimentos «dissolutos» alterariam os contornos do corpo. A vontade de seduzir desqualificaria essa beleza feita para «prender ao cordame» e reter os homens, tornados em simples «animais terrenos» .

Mais inocente, sem dúvida, mas surdamente comprometida na sedução, ela própria ultrapassada pelos seus impulsos e movimentos, seria a «beleza melindrosa», a que «por um olho vivo e faceto [...] por um andar meio grave meio buliçoso atrai as pessoas ao engodo do amor ». «Perigosa» também, porque presa à armadilha da aparência, arriscar-se-ia «a ofender Deus» sem cessar. Uma e outra dessas beldades são surdamente

cúmplices do mal. Uma e outra inflectiriam inexoravelmente a aparência, as feições, as maneiras de ser e de se mostrar.

Terceira figura, a «beleza religiosa», a que «se acha tanto ou mais bela por dentro como por fora55». Nada mais do que as qualidades morais

esperadas da mulher do século xvi: «Toda humildade, toda modéstia, toda simplicidade, sageza, santidade, castidade e prudência ». Paule,

promovida a fulcro do tratado de Gabriel de Minuit, em 1587, é o objecto cabalmente simbólico dum «Templo de Glória», como

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na de Aragão o foi na sua época57. Obscura mescla de divino e de humano, ela pode receber os favores dos homens porque tem «os favores dos céus». Ela entremeia, até os confundir, os critérios da estética e da virtude: imagem de excelência física tanto quando de excelência moral,

58

senão de submissão. Essa beleza seria «religiosa » no sentido duma estética moralizada : a impossibilidade de «ver uma pessoa bela que sem embargo seja viciosa ». Donde a consequência sobre as feições: o rosto sempre oval e «sereno», a fronte lisa e «alta», a boca «pequena», «cheia de pérolas », mas raramente entreaberta, o pescoço «delicado, branco como a neve», a «voz e a fala doces », os gestos, enfim, discretos e medidos. Um símbolo: a boca, delgada, estreita, fechada, para melhor mascarar tudo o que pudesse sugerir qualquer «interior», na verdade, qualquer

«impudor».

AS MANEIRAS, O AR, A GRAÇA

O sentido das atitudes e das maneiras revela quanto a beleza feminizada é necessariamente uma beleza submissa ou, pelo menos, muito controlada. O que reforça ainda o prestígio do alto: pouco movimento, «extrema

dignidade do gesto », rigoroso recato da «forma da face », um soco quase imóvel, uma parte alta discretamente «luminosa». É realmente o triunfo duma trilogia sistematicamente relembrada no tratado da beleza de Liébault, «modéstia, humildade, castidade », o «riso», sobretudo, deve ser limitado e «moderado », para testemunhar melhor «do esplendor e da serenidade da alma », ou do «comedimento» ainda severamente recomendado por Leonard da

Vinci na «pintura das mulheres» . Cada deslocação tem de sugerir

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HISTORIA DA BELEZA

pudor e fragilidade. O conjunto da dinâmica corporal deve-se mostrar dominado para garantir a beleza. É precisamente a vigilância do aspecto de Louise de Lorraine, nos Estados Gerais de 1576, sublinhada por um comissário inglês: «Ela possui na verdade uma atitude feminina e modesta ». As palavras reaparecem, aliás, novas, indefinidamente esquadrinhadas nos tratados, o ar, a nobreza, as maneiras, a graça, todas evocando a estabilidade arquitectónica das formas, todas contribuindo tanto para a definição do belo como para a sua dificuldade: «Sem graça não se pode chamar beleza perfeita ». A «graça», para Vasari, por exemplo,

singularizaria os retratos de Rafael71: beleza totalmente espiritual consistindo nas «virtudes da alma», enformando a matéria para lhe

conferir «todas as perfeições que aí se acham ». Ela categorizaria também o sorriso de Gioconda «tão agradável que esta pintura é mais uma obra divina do que humana ». As categorias expressivas da modernidade

inventam-se nos indícios novos, balbuciantes sem dúvida, mas levando a beleza bem além do único enunciado das feições.

As cores ainda, para serem belas, devem revelar outra coisa que não elas mesmas. É preciso um rosado nas faces «no momento em que o pudor aí se instalar », um encarnado súbito, «véu natural da vergonha inocente ». É preciso uma brancura intensa, em contrapartida, a duma «palidez frágil » feita para revelar uma igual brancura de alma. Cores e formas convergem para magnificar «uma beleza cujo sentido seria ser sujeita à pujança masculina . Henrique VIII confirma-o, no início do século xvi, na

mensagem aos seus embaixadores que inquirem sobre a beleza da duquesa de Nápoles em vistas dum possível futuro casamento: «Eles notarão [...] se ela tem a fisionomia animada e amável, ou se, pelo contrário,

desagradável e melancólica; se é pesada ou ligei-39

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ra; se tem um ar desavergonhado, ou se, pelo contrário, o pudor lhe põe

uma tinta no rosto »A desvergonha, sobretudo, desqualifica a beleza, a

das rameiras, por exemplo, sistematicamente denunciadas por Vecel-79

lio nos seus Costumes anciens et modernes, de 1590 , enquanto a qualidade das mulheres de Ferrara depende de saberem «cobrir o rosto

dum véu logo que se apercebem que alguém as olha », e a das mugi lheres

inglesas depende da «graça e da modéstia » que sabem mostrar constantemente.

Sendo «acabada», imóvel e fechada, a mulher é perfeição para adorno: «suficiente em si mesma », é também inteiramente «dada». Enquanto o «homem é o que se torna », excedência, empreendimento, na verdade,

afrontamento. Outras tantas diferenças fundamentando a visão dos géneros na modernidade.

O SOCIAL E A DESELEGÂNCIA

Nas maneiras também se traduz uma distância social, hierarquia diferente e igualmente importante. A liberdade do rosto e dos gestos, entre outras, é socialmente depreciada, condenando às belezas populares: como aquelas «atitudes características da sua condição» que fariam perder todas as suas «vantagens» à jovem «puta de Verona», apesar da

84

sua «cara miúda», numa obra de Bandello . Enquanto a «nobreza de maneiras», em Giulia, rapariga de «baixa condição», lhe conferiria, em

troca, «uma beleza maravilhosa» .

Mais obscuramente, a diferença social imprimir-se-ia nas formas mal dissimuladas, no deselegante, no trajo mal controlado. O que Diirer86 ilustra ao distinguir a «aldeã», de contornos arredondados,

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indí-HISTÓRIA DA BELEZA

cios de abandono do povo, e a mulher «delicada», de contornos delgados, indícios de refinamento: a carne abatida, dum lado, do outro, a carne comedida. O que Brueghel também ilustra nas suas danças aldeãs, nas suas segas do feno, nas suas ceifas, nos seus folguedos : camponesas de ombros redondos, caras avermelhadas, pesadas nos seus tecidos amplos, enquanto a «mulher adúltera», dum quadro de Londres, de origem mais nobre, tem uma cintura rigorosamente estrangulada poruma faixa . Uma diferença marcante incide na cintura e sua contenção. Ambroise Pare sistematiza essas

distâncias evocando as mulheres aldeãs mendigando em Paris, na segunda metade do século xvi: «essa madraça gorda, papuda e cuzuda pedindo esmola à porta dum templo», em 1565, ou essa outra «gorda, papuda e labrega», ou essa outra ainda

«gorda rapariga cuzuda, papuda e de boa saúde, corn trinta anos ou cer-89

ca disso, e que dizia ser da Normandia ». O cirurgião parisiense confirma duplamente a norma: definir a aldeã pelo seu físico, estigmatizá-la pela sua deselegância. Diferença tornada decisiva num momento em que a

disparidade entre uma cultura popular e uma cultura refinada se cavou em definitivo . O que confirmariam ainda os antigos provérbios, mesmo que seja difícil achar a expressão directa do gosto dos mais humildes: «Larga e grossa me fez Deus, branca e rosa me farei eu91».

A prioridade dada à parte alta do corpo não pode ser dissociada assim duma outra atenção mais ampla: a prestada ao aspecto do conjunto, à ligeireza e à deselegância.

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Uma só beleza

A escolha fulcral das perfeições, a interminável referência às origens divinas, a alusão repetida aos indícios quase sobrenaturais têm outra consequência na visão da «estética» física no século xvi: a de tornar essa beleza exclusiva. A sua descrição deve ilustrar um absoluto. Donde a tensão constante entre a evidência de traços variáveis na vida quotidiana e a vontade mais abstracta de evocar traços definitivos: privilégio

temível, a beleza teria de se impor em parâmetro «revelado» tanto quanto em indiscutido arquétipo, sempre idêntico, sempre ideal. Donde também a dificuldade de dizer essa perfeição, aquela da qual tudo mostra que vem de Deus. O que instaura um dispositivo fundamental, orientando o sentido do espectáculo, a sua implacável direcção e a dificuldade de ajuizar, as suas palavras balbuciadas.

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HISTÓRIA DA BELEZA A INEXPLICÁVEL RADIAÇÃO

É preciso atardar-se sobre essa visão duma beleza única, modelo imposto ao espectador sem que ele participe no assunto. A cena inicia quase praticamente a modernidade. Beleza vinda de alhures, ela seria matéria incandescente, força viva, fonte de fogo, «a qual faz cintilar os olhos que a vêem reluzir e aquelas que dela são dotadas . Ela desposará os recursos mais misteriosos dos elementos. Nada mais a não ser o princípio dos poderes obscuros evocados pelos sábios nos finais da Idade Média: «E uma atracção, uma virtude latente, uma força mais do que elementar, um quinto céu, bastião de íman e electro que atrai a si. A beleza existiria, por consequência, na própria textura do corpo, objecto «tão bem

incorporado em nós em todas as partes ». Ela impor-se-ia àquele que

observa, habitando-o, mesmo que não quisesse: luz «divina agarrando-se às coisas e atravessando os corpos corn o seu reflexo ». Nada que dependa do espectador. A beleza existiria como o «verdadeiro», acertando naquele que «vê» para o captar e o vencer: absoluto que ninguém poderia contestar. A cena é de sentido único. O juízo não era para ser trabalhado, invalidando o recurso a qualquer pensamento estético. Espectáculo e encanto

equivalem-se . Nada poderia contestar essa beleza fechada em si mesma, sempre acabada, revelada como o poderia ser o divino.

Esse arrebatamento, em contrapartida, tem consequências: o seu conteúdo é intraduzível. Ele desafia precisões e palavras. Ele choca, ele ofusca. Exemplo duma promoção da estética física, essa primeira beleza moderna é também o exemplo dum obstáculo muito específico: o duma impotência

linguística confrontada corn a ideia duma forma absoluta. Ainda que essa beleza exista por si mesma, convencendo o espectador e impondo-se-lhe, ainda que o não queira.

Ouro branco da Gália. (N. da T.) 43

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OS «SITOS» DA BELEZA

Existem tentativas, seja como for, para definir esse absoluto, dirigindo, entre outras coisas, intermináveis jogos literários centrados nos

indícios físicos do belo. Jogos formais de facto, onde a verdade é primeiro que tudo absolutamente retórica: nenhuma tentativa de prova concreta aqui. Trata-se de arcaicos jogos medievais sobre os «pontos de beleza» que esses textos do século xvi perseguem sistematizando-os. Aos nove pontos de Jacobo Alighieri , por exemplo, discutidos no século Xiv («juventude, pele branca, cabelo loiro, braços e pernas bem

desenhados...») substitui-os Jean Névizain por trinta, revelando de passagem o crescimento quantitativo da exigência, da qual toda a verdade residiria na lógica aparente dos números e no equilíbrio aparente das categorias. São estes os trinta «sitos» retomados por Cholières ou Brantôme:

Aquela que se pretende ser das belezas a mais bela,

estas dez vezes três belezas, três longas, três curtas, três brancas, três vermelhas, e três negras, três pequenos e três grandes,

três delgadas e três espessas, três miúdas tem nela .

A «lista dos cânones multiplicou-se8» reconhecia Marie-Claire Phan na sua descrição da beleza na Renascença. «Longos», por

exem-#

pio serão o talhe , o cabelo e a mão, «curtos» a orelha, o pé e os dentes;

i

Vê-se, pela grafia e pelo tipo de poesia, que se trata dum texto muito antigo, onde a «cintura» não podia ser «longa» ou «comprida» - ou, então, seria grossa -, mas sim o «talhe», o «busto», ou seja, a altura do

tronco, que se foi tornando mais alto, mais comprido, de modo que, a certa altura se faz troça das mulheres que ficam «quase sem saia», tal era o prolongamento artificial da parte superior do vestido. Brantôme nasceu cerca de 1538 e morreu em 1614. É o Pierre de Bourdeille que vem nas notas de fim como «senhor de Brantôme». (N. da T.)

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HISTÓRIA DA BELEZA

«vermelhos», as unhas, os lábios e as faces, «estreitas», a virilha, a boca e o flanco, ou «pequenos», a testa, o nariz e o mamilo...». Dez qualidades, para dizer doutro modo, observadas em três locais anatómicos diferentes para que a dama obedeça ao «molde da perfeição ».

Decerto que é impossível obter dimensões nítidas a partir destas abordagens formais. Traduzem impressões gerais, o restringimento das ancas, a pequenez dos seios. Traduzem, sobretudo, a vontade de enunciar fórmulas definitivas: captar as harmonias numa linguagem aparentemente exclusiva e numérica.

O CÂNONE E O IDEAL

Uma versão mais concreta do número existe também nessa busca:

a do cânone que traduza o ideal num código. O perfeito existiria na «proporção divina10», nas regras do corpo11», naqueles rostos submetidos ao desenho geométrico de Piero delia Francesca, naquelas especulações sobre as linhas cujos cálculos de Leonardo e Diirer parecem prolongar, na retoma do número de ouro antigo, o de Vitrúvio ou de Fídias. O objectivo é realmente atingir um número como um cômputo: a vontade de relacionar cada dimensão parcial do corpo corn a sua dimensão total, a de decretar fracções ideais. A altura da cabeça, por exemplo, «deve» ser sempre equivalente a um oitavo da altura total, ou a unidade da cara (entre a fronte e o queixo) «deve» sempre

correspon-12

der a três unidades no tronco, duas nas coxas, duas na perna . Donde, então, algumas notáveis igualdades: o corpo humano imortalizado por Leonardo inscreve-se num círculo, como num quadrado, cujo centro coincide sempre corn o umbigo . Não que esses números tenham bro-45

(40)

tado da experiência: o perfeito jamais poderia vir dos sentidos, mas sim da ideia, o modelo impor-se-ia mais na reflexão do que no

comporta-mento. Só o mundo do inteligível, no século x vi, é reputado de permitir aceder a essa beleza «revelada».

Porém, Diirer ou da Vinci constatam sem tardar a dificuldade de alcançar proporções unívocas. Os números de Leonardo revelam-se co- no

piosos, contraditórios . Os de Diirer revelam-se igualmente diversos, apresentados em tipos «característicos», indo da «mulher aldeã» à

«mulher delicada», todas formas diferentes mas «belas» à sua maneira, porque bem proporcionadas. Diirer tenta até pôr em números os deslizes das proporções que permitam passar «do mais espesso ao mais delicado », inserindo, de passagem, no mesmo plano, as proporções do homem e as da mulher, o que é decisivo. Em contrapartida, as proporções continuam múltiplas: cinco tipos no livro I, treze tipos no livro II, 18

aos quais se acrescentam outras variáveis ainda. Unidade impossível, para o dizer doutra forma, que não rouba nada ao postulado duma beleza ideal. É mais a imperfeição humana que explicaria tais resultados dispersos: «Só Deus detém um tal saber, e a quem ele o revelasse, possuí-lo-ia também1 ». Diirer diz mesmo ver, algumas vezes, a existência duma beleza

surpreendente e extrema na natureza, exemplo tão perfeito que o pintor não o pode pretender reproduzir: «Encontra-se em certas criaturas

visíveis uma beleza que ultrapassa de tal modo o nosso entendimento que nenhum entre nós a consegue transmitir inteiramente

70

à sua obra ». A nova experiência da beleza instala claramente a da

perfeição, corn a intransponível dificuldade de a fornecer na totalidade. Esses tais números captados primeiro pelo pintor sem dúvida carecem de impacto na percepção social da beleza. Evocam uma realidade anatómica ausente das avaliações quotidianas, estudam pouco os

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HISTÓRIA DA BELEZA

mês concretos, as suas circunferências: privilegiam os indícios verticais sobre os laterais. Os seus objectos permanecem sobretudo obra de

desenhadores, não contando corn o peso do corpo, nem corn os efeitos de contornos fisicamente experimentados. Enfim, hierarquizam pouco o «alto» e o «baixo», embora essa disparidade continue a ser fulcral no quotidiano dos vestidos e da elegância. Em troca, confirmam a certeza de que o

cânone ideal seria a incarnação da harmonia celeste. Correspondência cósmica cuja teoria das proporções vai buscar ao século

21 XVI o seu «prestígio inaudito »: ela revelaria, nas regras matemáticas

da beleza física, o princípio do gesto divino aglutinado por completo num número absoluto. Essa beleza, mesmo que fosse parcial, incarnaria

perfeitamente um modelo tão único quanto exclusivo, mesmo que a dúvida sobre a sua impossível tangibilidade se instalasse nos próprios pintores: «A medida não tem o lugar perfeito no corpo humano porque, do seu

princípio ao seu fim, ele é móvel [ao contrário da arquitectura] 22

e não comporta, portanto, uma proporção estável ». 47

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O fogo do rosto e os humores

O empilhamento orienta a visão do belo, a perfeição constrange-a ainda mais, mantendo uma relação ambígua corn o artifício. Essa perfeição seria independente dos cuidados. Existiria mesmo sem «ajuda», fechada e

concluída para toda a eternidade. Donde essa desconfiança do artifício, essa suspeita acerca do recurso ao cosmético, à tez trabalhada: só uma beleza natural se poderia afirmar. •

Todavia existem precauções, astúcias, opondo o seu realismo ao tema dessa perfeição revelada. Essa existência sugere, aliás, o que conta na beleza, as atenções de que é objecto. O rosto, as mãos, o busto surgem ainda aqui como primeiras preocupações. Outras práticas, no entanto, retocando a silhueta, procurando a esbelteza, mostram como a visão focada no alto do corpo supõe já matizes e acrescentos. O modelo intangível, natural, limitado às partes altas, torna-se certamente mais complexo e mais extenso no tratamento quotidiano do belo.

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HISTÓRIA DA BELEZA

O ARTiFÍCIO E A DÚVIDA ,

Seja como for, muito textos recusam primeiro qualquer transgressão do natural, rejeitando ofard, contestando o artifício. No seu tratado sobre os trajos, Vecellio troça das prostitutas que «pintam a cara e o peito de branco »; Ben Jonson troça, em La Femme silencieuse, de 1609, da esposa do capitão Otter, cujo «rosto abominável armado como um relógio

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alemão» é recomposto por «fards corn mercúrio» e cabelos fabricados. A modernidade prolonga, à sua maneira, as velhas críticas religiosas que associam maciçamente ofard , à impureza: as de São Jerónimo e de

Tertuliano, entre outras, distinguindo a estética natural, «obra de Deus», e a estética artificial, «obra do Diabo»3. Os tratados de beleza do século xvi, as memórias, as narrações, repercutem de facto a recusa religiosa, muito antiga, quanto a cosméticos, pós e óleos sublimados. A beleza não pode ser «procurada» porque é «dada» por Deus.

corn alterações, todavia, em relação às certezas medievais: já não é a mulher que é denunciada em primeiríssimo lugar, tornando-se, há que o repetir, um exemplo valorizado da beleza; já não são os artifícios também que se denunciam de parte a parte, mas o seu uso, o seu abuso

indiscriminado. Benedito, no fim do século xvi, não vê senão «pecado venial» no comportamento da mulher, ou da rapariga, «que se pinta somente para parecer mais bela ». Jean Liébault vai mais longe,

insistin-Aqui, «armado» é o termo técnico para designar um mecanismo que é posto de novo a funcionar. (N. da T.) Temos estado a usarfard . É sempre um produto artificial, de várias cores e não líquido, sendo às vezes seco - como o pó -, e outras vezes cremoso. Optámos por manter fard t fards nos sítios em que o autor também resolveu usar estas palavras. O objectivo foi só respeitar o pensamento do autor. Ainda hoje, muita gente chama assim ao blush, ao rouge, ao eye-linner, etc., ou seja, a tudo aquilo que dá cor e procura melhorar o aspecto. Porém, usámos «cosméticos» nos

sítios onde o autor também usou. Cremos que em portugês se chamou «rebiquelhe», na Idade Média. (N. da T.)

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do na importância, até mesmo na necessidade, de estratagemas para compensar «qualquer deformidade muitíssimo desagradável no corpo ».

Legitima também o recurso ao/ara?, se a «procura dum marido for corn isso facilitada, no que toca a reconhecer a «beleza» da rapariga. Teólogos e confessores concordam, duma vez por todas, quanto ao mesmo diferendo, distinguindo uma expectativa «honesta» e uma expectativa «desonesta»: «A que se veste ou se atavia para parecer bela a qualquer um, e para ser amada carnalmente, peca mortalmente; mas se é para ser amada honestamente ainda que carnalmente, peca venialmente; se é para ser amada para um fim honesto ou para se casar, ela não peca ». Olivier de Serres, regulando a ordem das tarefas rurais, no fim do século xvi, teima, aliás, na

necessidade da dama da sua «casa rústica» ter a «cara branqueada e a tez bem conservada », misturando, nas suas fórmulas de pomadas e unguentos, o fermento, a clara de ovo, as flores de «nenúfar», o leite de cabra ou a farinha de arroz, e recomendando que, corn isso, se «esfregue a cara à noite e de manhã ». Enquanto a maior parte dos manuais de saúde do século xvi junta aos seus

conselhos médicos outros «para embelezar a cara ». , Seja como for, difunde-se na Renascença o uso de cosméticos, apesar das resistências e das recusas. Os tratados de beleza, as grandes recolhas de segredos

enxameiam a partir de Itália, berço da estética «renascente», segundo uma repartição em breve «muito igual entre os diferentes países ». Os

inventários post-mortem dos mais afortunados multiplicam os exemplos de «frasquinhos», «boiõezinhos», «tacinhas» , que servem para o perfume, o pó ou o alvaiade. O inventário de Anne de Lavai abrange mesmo, em 1553, «uma caixa de prata para pôr pó na qual há uma

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colherzinha de prata ». Novas referências, também, aos modelos: Vénus, nas histórias e narrações, é mais do que anteriormente descrita como 50

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HISTÓRIA DA BELEZA

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ataviada, perfumada, pintada . Esse uso atravessa as barreiras sociais: não há uma mulher de Siena, assegura Piccolomini « que não se sirva de qualquer fard, seja o mais fino, seja o mais grosseiro ». É para um consumo no dia-a-dia que a comadre duma novela de Nelli gaba os seus produtos, garantindo que sabe «preparar diferentes loções, tão claras como o cristal: daquelas que conservam uma cara bela e fresca como a vossa, daquelas que fazem brilhar como marfim, daquelas que esticam outra vez a pele ». As diferenças de preço ainda dividem as práticas: essas hierarquias, observadas pelos mercadores de «segredos», entre a cera «fina» e a cera «vulgar», o «pó subtil» e o «pó de arroz», o «litargírio de ouro» e o «litargírio de chumbo ». O «brilho», enfim, sobressai nos critérios valorizados, transpondo para o próprio produto o prestígio duma beleza luminosa difundindo esplendores e raios.

Uma crítica sapiente impõe-se corn a modernidade, em contrapartida: a dos produtos que incluem a cerusa, ou, por outras palavras, o carbonato de chumbo, o sublimado, ou, por outras palavras, o bicloreto de mercúrio, o bismuto, ou, por outras palavras, o subnitrato de bismuto, compostos que, todos eles, garantem o branco mas que atacam a pele . O efeito nocivo do chumbo que entra na cerusa, o do mercúrio que entra no sublimado, o do azotato que entra no bismuto são nitidamente denunciados, mesmo que a sua composição química permaneça ignota. O sublimado torna «o hálito

fedorento, os dentes negros e no

fim fá-los cair17. O chumbo enruga a pele, desidrata-a, enegrece-a. Estes factos são verificados bem para além do que dizem os médicos.

Franco, cujo diário nos oferece o quotidiano das cortesãs de meados do século xvi, di-lo corn despeito ao evocar a cara das suas amigas:

Que era o protóxido de chumbo cristalizado. (N. da T.) Nessa altura chamavam-lhes «físicos». (N. da T.)

Referências

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