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Descrição

O som da espada de um soldado ferido abre a cena, literalmente cortando o espaço sonoro. Entram Duncan e seus soldados: suas roupas, botas e bastões ressoam no chão e por toda a caixa do palco – são sons de pancadas, apetrechos de metal, armas, ranger do couro dos uniformes. A cena se fecha com um toque de tambores, que realiza uma transição de tipo cinematográfico para a cena seguinte. Estes tambores são na verdade originalmente tambores de óleo adaptados e percutidos com baquetas de tímpano. O som do metal foi pensado para participar do timbre geral da cena. Macbeth é um espetáculo de militares.

Comentário

A entrada de Duncan com o exército inaugura um novo contexto sonoro, que percorrerá todo o espetáculo como um motivo sonoro estrutural (formante de ruídos), que aos poucos irá se carregando de sentido até culminar nas cenas da consulta às bruxas e da batalha final. Toda esta sonoridade foi surgindo ao longo dos laboratórios realizados nos ensaios e se estruturou definitivamente com o uso consciente e eficiente do figurino.

Nesta cena, apresenta-se o material sonoro que estará presente durante todo o espetáculo como uma espécie de fundo: é criada uma paisagem sonora a que nos acostumaremos, a qual nos introduz no tempo, na vida e no espaço dessas personagens. Essa paisagem nos seduz, pois como espectadores ali estamos para isso – e aceitamos com tranqüilidade esse poder de sedução do som e da música que vêm do palco.

A introdução repentina da sonoridade do exército traz um novo material sonoro. A novidade nos obriga a um brevíssimo instante de introspecção, a fim de nos

apropriarmos dessa nova estrutura e relacioná-la com o contexto anterior. Esta nova sonoridade é um formante estrutural que percorrerá todo o espetáculo; trata- se de um motivo temático baseado no timbre do som de botas, sons vindos de pequenos adereços metálicos e das armas dos soldados. Esse motivo se caracteriza como um bloco de ruídos de durações livres. A esses ruídos outros se agregarão, sem que os blocos percam sua unidade de sentido. O fato de que esses blocos sejam sempre produzidos pela massa de soldados, a qual terá a função de coro durante todo o espetáculo, permite também que esses blocos sofram variações sem obscurecer sua função específica em cada intervenção. A duração de cada bloco é imprevisível; isto contribui para que se mantenha viva a expectativa no tempo. É criada então uma paisagem sonoro-visual, composta pela apresentação simultânea de dois acontecimentos: um visual (atores em figurinos que sugerem vestimentas militares antigas, movimentando-se em um ritmo determinado), e um sonoro (o referido bloco, cuja sonoridade também remete à memória do ruído de exército existente no repertório do espectador). Essa nova paisagem caracteriza-se por um impulso energético particular, contrastante com o da seqüência sonoro-visual da cena anterior, causando, através de um corte (parada súbita do vento e das vozes) um efeito físico de surpresa e a sensação de volta à realidade (no plano dos personagens e também no plano do espectador). Percebemos então que, entre os significados veiculados pela cena anterior, estava o de acharmo-nos em um ambiente onírico, ou sobrenatural. O discurso cênico, neste ponto, já estabeleceu a presença (a existência fictícia) de dois planos de significação, um do “real” cotidiano e outro do sobrenatural, que se entrelaçarão no decorrer da encenação.

A passagem desta cena para a seguinte merece atenção, sob vários pontos de vista. Com relação ao material sonoro, deve-se notar o uso de tambores de metal (tambores de óleo), na busca de uma correspondência timbrística com o som geral da cena, além da relação clara com o instrumento militar.

A forma como este som é introduzido acusa uma utilização do som emprestada à linguagem cinematográfica; o som assume a função de corte súbito. Este tipo de uso do tambor revela também o recurso à tradição teatral: o instrumento, além de

ter função referencial, pelo timbre e ritmo militar, funciona como marcador explícito do ritmo cênico, além de incitar e estimular o ator na sustentação de sua energia em cena.

O aspecto narrativo também deve ser destacado. Quem narra aqui? O fato de este som surgir do lado de fora do espaço cênico pode nos sugerir que a narração é do encenador, neste momento; mas, como o tambor soa como uma espécie de síntese da sonoridade geral do exército, aqui se configura também a existência de dois planos de narração (o da fábula e o do encenador). Os solilóquios também terão função narrativa, além do Porteiro, que nesta montagem é um narrador explícito.

A multiplicidade de funções do som cria uma rede de significações que se torna caráter da linguagem do espetáculo. O diretor musical atua como compositor em conjunto com o elenco, observando, percebendo, intuindo, escutando, lendo, re- lendo e interpretando todo acontecimento sonoro como fato musical e alertando o ator para o uso consciente do som inserido na linguagem sonora do espetáculo como plano de significação no qual se pode interferir.

Todo o discurso da cena, como concebido pelo encenador, vai aos poucos definindo sentidos, vai explicitando um estilo, que pode ser identificado com alguma forma anterior. Ele é, de alguma forma, tributário de formas históricas de discurso, a primeira das quais é o próprio texto de Shakespeare, a partir do qual se operam leituras e transformações.

Cena III – Na charneca

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