• Nenhum resultado encontrado

Descrição

Nesta cena, sucede-se o som da coruja ao som do sino, que se transfigura timbristicamente em um som agudo, metálico e penetrante. Este som pontua as falas de Macbeth e da Lady, e seu ritmo prepara o das batidas no portão. Este som, por

sua vez, também se transforma em aguda percussão de madeira executada por um dos soldados.

Comentário

Trata-se aqui de verdadeira composição de Shakespeare, que conduz a dramaturgia através dos estímulos sonoros, valorizando o som como linguagem da noite por excelência. O som da coruja foi obtido percutindo-se uma ferramenta de metal simultaneamente a um sopro forte numa garrafa. As batidas do exército, à porta do castelo, seguem ritmicamente a seqüência da coruja, como ponto culminante.

Imediatamente o som da coruja dá continuidade ao do sino. Não estamos então no plano do real, como havíamos pensado? Novamente a ambigüidade timbrística nos coloca em posição de alerta. Não podemos confiar em nossos ouvidos, nossa percepção nos trai a cada instante. Os sons da noite nos apavoram – como queria Shakespeare.

Sino, coruja, batidas à porta: o chamamento do mundo externo e da natureza interfere continuamente no pensamento e, nesta cena, na ação de Macbeth e da Lady. Tomados por seu objetivo, eles se assustam e reagem a cada som, mas o aviso não tem o poder de demovê-los de suas intenções. O sino (signo de um plano religioso, da lei divina), o pio da coruja (signo da natureza, de uma ordem natural) e o exército (signo da lei humana e do poder do Estado) são, um a um, desafiados pela obstinação criminosa do general e de sua mulher.

Observa-se aqui um procedimento de desenvolvimento temático do material sonoro que, iniciando como som que reúne as características do metal e do sopro, “transforma-se” no som das batidas dos soldados no portão do palácio e tem uma finalização na cena seguinte, com o pequeno instrumento de madeira executado por um dos soldados.

Este tipo de procedimento opera através da permanência da estrutura rítmica que se escuta, enquanto o timbre se modifica no decorrer do tempo, acompanhando a passagem de cena e motivando o ator, pois este está na

verdade contracenando (também) com o som. Na medida em que este se transforma, o ator é obrigado a se posicionar frente a esta mudança.

É importante notar que podemos transformar a idéia sonora e sua execução em energia de ação para o ator. E mais: não apenas pela utilização da idéia em si e de sua força estrutural, mas pelo fato de esta se manifestar concretamente como som (intensidade, acento, matéria viva, ondas em movimento).

Mais uma vez, vemos como a música e a arte do ator estão intimamente ligadas; o som atua no mesmo espaço que o ator e atua no corpo do ator. Participa da construção de uma dinâmica própria, única, particular daquele momento; por vezes (muitas), cria ele mesmo esse momento.

No plano da composição, temos aqui uma seqüência cujo sentido vai sendo construído por um processo de transformação de um timbre em outro, numa relação rítmica direta com o tempo-ritmo dos atores. O elemento básico é o caráter percussivo das sonoridades, veiculado por um ataque de cada vez - portanto condensando a expressividade de cada toque, economizando recursos. As interferências da coruja se relacionam a pontos-chave do texto do diálogo entre as duas personagens; assim, acontece uma regulagem orgânica entre o crescendo da transformação timbrística e o do diálogo, que vai culminar nas batidas que os soldados dão à porta (executadas fora do palco pelos próprios atores), quando o som se torna ensurdecedor. Quando a porta se abre, porém, o que se vê é um dos soldados percutindo dois pequenos pedaços de madeira, ainda no tempo das batidas, mas com um timbre pequeno e delicado. Este procedimento de filtro sonoro novamente nos leva à quebra de um estado por outro. Algum desses sons era real, afinal? – é a sensação que perdura.

O que se pode ver aqui é o recurso da pontuação de uma cena pela percussão, adquirindo novos sentidos, integrado ao sentido estrutural dramatúrgico e abordado de um ponto de vista musical. Ou seja, trata-se o plano sonoro de forma que ele, em si mesmo, também seja portador de um sentido próprio, que se constitua como individualidade significativa, e não meramente como coadjuvante da estrutura da encenação.

O que dá esta característica diferenciada ao som produzido? Em primeiro lugar, o fato de ser um timbre criado a partir da mixagem de dois outros timbres. Após ouvirmos o sino do Porteiro na cena anterior, segue-se um som que participa de uma natureza timbrística também metálica, porém acrescido de um ataque pouco reconhecível, cuja natureza se aproxima do pio da coruja, e assim é criada uma espécie de ideograma sonoro com caráter sobrenatural.

Macbeth utiliza basicamente três tipos de relação de significação sonora. O primeiro são sons, por assim dizer, “naturalistas”, como o ruído de cavalos, que, ao ser revelados na cena, executados pelos atores, que assumem esses sons como representação, tornam-se parte integrante do jogo da convenção teatral e deixam de se propor como sons realistas, abandonam o jogo da ilusão, passam a ser aceitos pelo espectador como representação do som natural e a funcionar em dois níveis de significação:

1) O espectador compreende o artifício e o aceita como convenção, assumindo que está de fato ouvindo cavalos.

2) Cavalos reais não estão presentes em cena, e o som que ouvimos remete a outros sons, conceitos e experiências, de modo que o som supostamente real passa a superpor sentidos, passando assim a simbolizar.

O segundo tipo de relação de significação sonora parte de sons como o da coruja, representada por um som “fabricado” (a execução simultânea de dois sons: a percussão de uma pequena barra de ferro e um sopro de ataque forte em uma garrafa), que guarda certa semelhança com o som do animal (novamente uma convenção), ao mesmo tempo em que contém um som de natureza timbrística diversa. Ora, para o ouvinte, a percepção é de um som apenas, cuja fonte ele não pode definir com precisão. Não é, portanto, um som desconhecido, mas um som fora do comum, ainda que dê ao ouvinte pistas para o reconhecimento.

Quando este tipo de som se faz escutar, como parte de uma cena (um evento ou acontecimento cênico), é ressaltado um outro plano do discurso, subjacente ao do enredo: plano do mundo interior, do onírico, do subconsciente, que por vezes se revela em imagens de fantasia, como nas cenas das bruxas, por vezes durante cenas de cunho realista, como o banquete, ou a cena que acabamos de

descrever. Aqui o som se coloca declaradamente como estranho e sua força reside exatamente no fato de ele surgir como realidade tão presente quanto as sonoridades do cotidiano.

O terceiro tipo são os sons que, em princípio, não reconhecemos como signos, mas que no decorrer da encenação funcionam como um “fundo”, um contraponto de “não-significação” em relação aos tipos anteriores. Esses sons são os que nos dão a certeza de que ainda estamos no teatro, afinal: passos, ruídos das roupas, explicitação do concreto, do aqui-agora. Sem papel em branco, não é possível escrever poesia...

Cena III - Porteiro

Documentos relacionados