• Nenhum resultado encontrado

Há uma passagem contumaz: uma inventividade de um Ser híbrido, (re)feito por retoques da pele que aparenta uma imagem corpórea à sentimentalidade 4 Essa dinâmica contemporânea elege a interpelação da observação em uma diegese (XAVIER, 2008), a qual convoca a imagem como sistema complexo, em que a transformação da imagem (fixa e/ou em movimento) (re)examina os mecanismos de rupturas. A manifestação de um objeto diante da ideia de diegese incorpora um devorar antropofágico, que emblematicamente digere como quem saboreia a cena, deliciando-se.

com que pulsam os órgãos internos. Tanto no cartaz do filme como na capa do livro, a imagem de uma máscara no rosto, em primeiro plano, permite a projeção do âmago da vítima _ como se o passado fosse apenas um disfarce singelo.

No calor das informações, percebe-se que A pele que habito mescla uma agudeza recorrente da sociedade entre sucesso e fracasso, em que a vítima de seu destino perfaz o estado de atenção do opressor. São situações distintas entre a vítima e o algoz que se comunicam, numa relação de interdependência, na ex- pectativa de tentar aniquilar as ameaças _ como grau imediato de sobrevivência. A máscara esconde algo secreto que deve conter uma enorme força: uma ocupação mister. Isso desdobra uma casca refinada ou uma película sofisticada, da qual o diretor se desfaz para personificar um “novo/outro” Ser polimorfo. Como construto simultâneo que (re)vela uma mensagem, qualquer máscara esconde e, ao mesmo tempo, exibe uma dimensão visual/gestual da face humana.

A sinopse de divulgação do filme enuncia:

Desde que sua esposa foi queimada em um acidente de carro, o Doutor Robert Ledgard, um iminente cirurgião plástico, interessou-se em criar uma nova pele com a qual ele poderia tê-la salvo. Depois de 12 anos, consegue criar uma pele que é um verdadeiro escudo contra qualquer forma de agressão. Além de anos de estudo e experimentação, Robert precisava de mais três coisas: nenhum escrúpulo, um cúmplice e uma cobaia humana. A falta de escrúpulos nunca foi um problema. Marília, a mulher que cuidou dele desde que nasceu, é sua mais fiel cúmplice. Mas a cobaia humana...

Nesse contexto fílmico, subversão e trangressão alternam-se pela própria maneira de apreciar o contrário, o antagônico, o negativo, o paradoxal, o invertido, o oposto, a disputa, a competição. Aquilo que enumera pelo avesso, no reverso firme de espelhamento e refração, quase barroco _ entre luz e sombra, alto e baixo, bem e mal.

Em uma sequência de planos (fragmentados e não lineares), Almodóvar propõe uma montagem labiríntica de cenas paralelas e paradoxais entre si. O conjunto narrativo, no entanto, está dividido em três partes pontuais. Nelas, o/a espectador/a tenta se acomodar na primeira parte com a introdução de personagens, contextualizada pela mansão, a empregada, o médico e a vítima, em uma história que acontece no ano de 2012, na cidade de Toledo, na Espanha.

Já na segunda parte, a narrativa estratégica cria um flashback _ e retoma seis anos atrás, ou seja, em torno de 2006 _, para explicitar algumas causas da situação. No cinema, flashback seria a interrupção de uma sequência crono- lógica (ou não) para trazer à tona uma derivação cênica ocorrida anterior ou posteriormente, cujo objetivo explica a parte fragmentada da ideia. Ou seja, é um acontecimento do passado ou, até mesmo, do futuro inserido em um momento atual da narrativa.

Sendo assim, essa passagem começa a demonstrar uma trama um pouco mais estranha, em que os fatos não se conectam tão facilmente, em um primeiro instante. Nesse momento, informações relevantes explanam algumas artima- nhas do enredo cinematográfico e faltam pedaços a serem preenchidos para que essa narrativa tática, em sua completude, possa dar vazão ao contexto.

Por último, verifica-se a volta ao presente. Um retorno necessário ao desfecho. O agora faz valer o ponto alto da trama na catarse, e o desfecho torna-se inevitável, inovador e surpreendente com a perspectiva de atualizar, porque o público recupera as informações e consegue acompanhar a narrativa.

Afastada do centro da cidade, a mansão El Cigarral ambienta o desenrolar da trama, em que Robert Ledgard _ interpretado por ator Antonio Banderas, que assume esse personagem com maestria, afinal a direção do filme legitima com vivacidade a potencialidade dramática do ator _ utiliza como moradia, labora- tório e clínica. Nela, o médico-cientista abriga, em segredo, seus experimentos envolvendo manipulações genéticas, bem como esconde a sua prisioneira e cobaia, com a cumplicidade de Marília.

Como vilão dessa saga, Robert Ledgard é um médico de cirurgia plástica. Ganancioso, experimenta as idiossincrasias de um protagonista perspicaz, ao (re)velar a ideia meticulosa de sentir enorme e exagerada superioridade sobre a humanidade. Seu propósito o coloca em busca de justiça. Mas cuidador es- pectador/a, pois seria apenas uma sensação de poder e de justiça!

Sua cúmplice direta é a elegante governanta Marília (Marisa Paredes _ uma estrela coadjuvante), que o criou desde cedo. Motivada por ajudar Robert, essa figura materna projeta uma primordial função em consonância com as atrocidades criminosas cometidas pelo cirurgião. Em paralelo, Marília vive essa delicada situação de apoiar os experimentos biotecnológicos.

A antagonista Vera Cruz (a atriz Elena Anaya) surge pela vulnerabilidade de uma cobaia _ vítima de atrocidades científicas e vingativas. Alguém desapa- recido para a família a viver trancada no quarto, a que somente o médico tem

acesso com a chave da porta. Uma mulher de misteriosa identidade, que se encontra prisioneira em uma espécie de clausura vigiada. Isso posto, percebe- se a expectativa de domínio/controle sobre o outro, seguindo alguns vestígios insólitos e, ao mesmo tempo, reflexivos.

Fascinado pelos afazeres científicos, Robert realiza experimentos curiosos, pois lhe interessa a produção de uma epiderme artificial, capaz de substituir e até superar a pele humana. Está prestes a concluir uma invenção revolucioná- ria sobre a epiderme: algo raro, resistente a queimaduras e picadas de insetos. Todavia, a esfera da ciência toma conta da cena, cujo avanço da medicina depende da ousadia desse pesquisador, que está transtornado em criar uma pele artificial, ou seja, encontrar um novo tipo molecular.

Seria a condição biotecnológica de uma pele que pudesse ter sido capaz de salvar a vida da amada. Isso seria algo que transcende a materialidade biológica em uma explosão tecnológica. Em decorrência dos avanços científi- cos, o discurso da biotecnologia aqui perpassa descaminhos plausíveis, cujas personagens se sobressaltam com seus interesses, vontades e desejos. A bio- tecnológica, nesse caso, ajusta alguns fragmentos do enredo fílmico, em que o corpo da antagonista se mostra repleto de pequenos desenhos anatômicos, na recuperação de uma pele humana carbonizada. Há a pele exposta em tecido, no formato de um manequim retilíneo e uniforme de design.

De fato, Robert está obcecado pela transformação do corpo humano, ao re- lacionar traços identitários em trânsito, por isso não poupa energias para atingir resultados satisfatórios; mesmo que sejam inescrupulosos _ quase como um cientista maluco ou demente. Os motivos disso se encontram no acidente que a ex-esposa sofreu com fortes queimaduras no corpo inteiro, até chegar ao suicídio, e, por assim dizer, na angústia dessa tragédia que se abateu sobre Norma (Bianca Suárez), a filha do casal que ficou enlouquecida com a situação angustiante.

Para o/a espectador/a, a tentativa de violação sofrida pela jovem Norma, ocorrida em um jardim das delícias numa linda noite festiva, sugere uma paródia fantasmática da história Bela Adormecida. Dessa situação violenta, surge a drástica reação defensiva do pai _ o médico Robert Ledgard. A vingança contra o agressor (interpretado por Jan Cornet) torna-se a resposta violenta quase que imediata aos elementos mais drásticos desse roteiro. Tal revanche seria uma correspondência à altura da interferência percebida no corpo da filha, em convalescência. Isso, no filme, gera uma desforra conflitante, mediante o inexorável movimento entre crime e castigo.

A sede de vingança de Robert provoca frisson para quem assiste a essa ficção, pois o carrasco deseja a presa, ao traduzir o fetiche que se acomoda, afetivamente, pela subjetividade entre paixão, desejo erótico, amor e sexo. O médico proclama uma vingança brutal contra o (presumido) estuprador, visto que o rapaz deve passar por uma cirurgia de vaginoplastia. Isso lhe reserva, ironicamente, outro destino. Ou seja, invertem-se os órgãos genitais com a troca de sexo forçada, o que radicaliza um segmento bizarro de transexualidade, sem consentimento. Nesse caso, Robert parece perder os limites da ética e da moral quando castra, literalmente, a liberdade de Vera, a qual foi bastante moldada, do ponto de vista físico-anatômico, a partir de Vicente. Ela é retrabalhada na cirurgia à exaustão.

Porém, o ódio ressalta o amor, o que dosa diferentes nuances no decorrer da trama, ainda que Robert possa ser visto como homem vingativo, um psicopata. Em Vera, o cirurgião implanta traços semelhantes aos da ex-esposa, já falecida. Surge, a partir disso, uma mulher idealizada que atravessou a margem do rio. Efetiva-se um corpo esbelto trabalhado de maneira cirúrgica para (re)compensar a perda. Vera tenta corresponder ao ideário de uma imagem perdida em um viés sintomático _ a(di)cionado por um toque dilacerante de perversidade.

O que parece aterrorizar sequências cênicas tão ousadas são, praticamente, as condições adaptativas irretocáveis pelos danos causados ao outro – de modo imposto _, ou seja, uma troca de papéis sexuais/identitários. Para além de um culto polêmico entre o médico e o monstro _ como o personagem do doutor Frankenstein, de Mary Shelley _, o que impressiona é o espelhamento desse tom cruel nas relações humanas.

Ainda como parâmetro de um eixo cinematográfico que instiga o pen- samento reflexivo ao adentrar os enlaces da pulsão humana e pretende fazer eco no corpo, Vicente trabalhava na loja de roupas e presentes da mãe. No cativeiro, sua persona (Vera) confecciona pequenas esculturas de bustos feitos com pedaços _ destroços, sobras, restos _ de tecidos sobrepostos, tendo como citação dos objetos escultóricos de Louise Bourgeois. São dóceis corpos

morcelés que servem para ocupar o tempo ocioso. Também, acumulam-se

escritos a lápis nas paredes como anotações poéticas (plásticas, pictóricas) de uma vida, em registro, documentada na prisão. Essa produção, talvez, evoca a libido interrompida pela impossibilidade do gozo, sem plenitude.

Na película, constata a diversidade sexual atrelada à biotecnologia, quiçá às tecnologias emergentes como parâmetro da cultura digital. Essa condição

desestabiliza alguns referentes formais em uma atitude ácida, uma vez que registra a manipulação de seres vivos. Na verdade, faltam parâmetros para dissecar a noção de corpo contemporâneo, em que os gêneros e os papéis sexuais são (re)vistos/(re)lidos em uma absurda ressignificação emblemático- simbólica. Uma passagem peculiar enunciada pela lógica da discursividade dessa diversidade sexual, no cinema atual, coloca em xeque a sociedade con- temporânea quanto à ideia de corpo, identidade e gênero. E, logo, urge uma poética...