• Nenhum resultado encontrado

3. REPRODUÇÃO SOCIAL DAS FAMÍLIAS PESQUISADAS

3.2. O acesso a terra na região pesquisada

O antigo Distrito de Rincão dos Baguaes, atual município de Ca- pão Alto, era caracterizado pela existência de extensas fazendas destina-

24 Foram realizadas correções nas falas dos entrevistados, optando-se por não usar o linguajar coloquial dos entrevistados (designado informalmente na região como caboclês)

das a criação de cavalos e muares, além de terras devolutas. Nesta região o acesso a terra ocorria através de dois modos de apropriação: a proprie- dade comunitária ou individual.

O acesso à terra, através do sistema de posse de terras devolutas, representou uma importante estratégia de reprodução social de uma par- cela da população da região. Essas terras eram chamadas de “terra de comunhão”, utilizadas em comum por várias famílias que se apropria- vam destas áreas garantindo suas moradias e seus sistemas de produção. Muitos dos entrevistados se reportam a época dos seus bisavôs num período compreendido há aproximadamente cento e cinquenta anos a- trás. Embora existisse proprietários, os antepassados dos entrevistados já eram moradores destas áreas. “A maior parte da nossa gente é daqui, quem veio de fora era muito pouco, mais era crioulo daqui mesmo, nas- cido e criado aqui” (Agricultora aposentada, 94 anos).

Geralmente, ocupavam áreas de matas nativas e de topografia a- cidentada, pouco ocupada pelos fazendeiros da região para a produção de gado. A criação animal era realizada em toda a área por todos os pos- seiros. Nelas, os animais circulavam livremente, se alimentando de sub- produtos da floresta em especial de pinhão, enquanto os cultivos eram realizados em locais fechados. As delimitações dos espaços eram feitos através de marcos naturais, como rios, árvores, entre outros. “No tempo que nós nascemos não tinha essa cercaima, era tudo aberto, era só carrei- ro”. (Agricultor aposentado, 78 anos).

Porém o acesso e uso comum da terra tornaram-se mais precários à medida que novas relações socioeconômicas começam a se estabelecer nestas áreas. “A apropriação privada das terras, o cercamento, a coloni- zação e a exploração da madeira se fazem sentir, dando início à desa- gregação da prática do usufruto em comum da terra, o que passa a ocor- rer a partir das primeiras décadas do século XX” (BRANDT, 2004, p. 5).

Este fato se acentuou em Cerro Negro a partir da década de 1940, conforme relatos dos entrevistados. Embora, estas áreas de uso comum não fizessem parte diretamente do processo de colonização, elas sofre- ram seus reflexos em virtude dos deslocamentos ocasionados. As terras devolutas começam a ser apropriadas por pessoas de fora, por intermé- dio de ocupação ou da compra de determinadas áreas de posse de mora- dores locais, comercializadas por valores irrisórios. Mas a forma predo-

minante consistiu na apropriação por terceiros, utilizando-se o meca- nismo de usucapião25 como forma de obter o direito de propriedade.

Para muitos antigos ocupantes destas áreas restava à busca de ou- tros espaços para morar ou o consentimento do “novo” proprietário para continuar morando nas terras que já não mais lhes pertenciam:

Ali perto de casa como eu te mostrei, tem aquela fazenda grande do Moacir Baggio, ali ele com- prou muito pouca terra. O Osvaldo Branco (fa- zendeiro) também, ele já é falecido, eles compra- vam quatro alqueire e fechavam vinte, porque ali era tudo terra de comunhão, daí eles fechavam o terreno e faziam usucapião, então hoje eles são donos de muitos alqueires de terra, mas maioria eles não pagaram um tostão. Eles tiveram acesso da terra através da comunhão, existia a tal de co- munhão, que era uma terra de governo, eles fize- ram usucapião e hoje são dono. As terras são do- cumentadas e são donos. Quem era mais esperto fez isto, aquele que era mais simples... Isso tá fa- zendo aproximadamente 41 anos, estas terras não tinham dono. Essa terra do Umbú ia daqui até A- nita Garibaldi, tinha outra que ia de Monte Alegre até Campo Belo do Sul que não tinha dono. Na- quele tempo o pessoal era muito simples, eles era proprietário das terras e vendia a troco de nada, até a troco de um rádio. Daí eles vendiam, nove a dez alqueires de terra, então eles se desfizeram desta terra, essas pessoas que moram em cima do terreno, mas não são donos. Os fazendeiros reque- reram as comunhões... (Liderança, 59 anos). Percebe-se que em muitos casos havia a compra e venda do direi- to de posse da terra, sem que houvesse documentos que comprovasse

25 O Usucapião Especial Rural também conhecida como Usucapião Constitucional Rural possui fundamentação legal prevista na Constituição Federal, art. 191, na Lei 6969/81 e no Código Civil em seu artigo 1239. “Confere a propriedade a quem, não sendo proprietário de outro imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição do proprietário, área de terra em zona rural não superior a 50 hectares, desde que nela produza por seu trabalho ou de sua família e nela tenha sua moradia”, ou seja , cumpra a função social da propriedade ( GONÇALVES, 2003).

essas transações. Respeitava-se a posse da terra por intermédio da orali- dade, da “palavra”, onde se considerava como lei. “Se comprava a terra num fio de bigode” (Agricultor aposentado, 78 anos). Em algumas en- trevistas realizadas com pessoas idosas há, no entanto, indicações da existência de documentos que comprovavam a propriedade da terra por seus antepassados.

Quando comprei não tinha escritura, não tinha na- da. A terra estava no nome do falecido meu sogro, ele comprou e pagou. Na hora dele receber a es- critura o homem velho que vendeu a terra morreu. Eram cinco alqueires mais ou menos. Os filhos moravam no terreno e o pessoal foi se chegando e foram se colocando. Eu comprei o direito dele, paguei três mil, tem um pedaço da desistência de- le, moeu, mais tá guardado. Só comprovante de compra, recibo. (Agricultor aposentado, 82 anos). Portanto, muitos donos de posses de terras acabaram por vendê- las, dificultando a reprodução da unidade produtiva.

Todos se referem a um “juiz de paz” que solicitava os documen- tos que aparentemente comprovavam a propriedade, prometendo legali- zar as áreas, mas que após o recolhimento da documentação não cum- priu com a palavra.

Os entrevistados se referem às suas posses através da herança e da ocupação destas áreas pelos descendentes e por muitos que não ti- nham onde morar. “Aqui na comunidade é tudo parente, irmão, filho, neto, daí tudo foi herdando os pedacinhos de terra. O terreno não tinha documento, daí tudo foi se mandando, fazendo casa, fizeram o seu loti- nho fizeram uma casa em cima do terreno...” (Arrendatário, 41 anos).

Os herdeiros diretos relatam possuírem documentos registrados no INCRA e contribuírem com o pagamento do imposto territorial rural (ITR) de seus lotes. “Essa terra já era uma herança dos nossos avôs, depois bem no tarde, eles foram fazendo aquela... INCRA, tirando nota” (Agricultora aposentada, 74 anos). No entanto, a maioria dos herdeiros não possui comprovação e a lógica da ocupação e venda de pequenas posses ainda se constitui uma realidade, principalmente, entre parentes. “Esse ali foi comprado, a minha, foi de parente. Aqui quase tudo é pa- rente” (Arrendatário, 46 anos). “Ninguém é dono com documentação não, sem documento tem um pedacinho... o meu ali dá duas quarta, um hectare e pouquinho” (Arrendatário, 57 anos).

A dificuldade de comprovação da propriedade da terra pode estar relacionada também com a forma de ocupação do solo da população que ocupava a região. Nossas entrevistas denotam que havia deslocamentos dentro da mesma região, nas proximidades, em busca de um lugar para ocupar e produzir, ou mesmo para morar. Alguns entrevistados mencio- nam que grande parte dos antigos moradores era oriundo do município de Capão Alto, distante aproximadamente a 40 Km do município de Cerro Negro. Assim, é possível que processos de migração interna oca- sionadas pelas ocupações das terras e a pressão de fazendeiros tenham levado esta população a ocupar áreas cada vez mais distantes.

Além disso, a história do movimento interno regional dos cabo- clos pode estar relacionada com o sistema de plantio através das roças de queimadas e a, conseqüente, busca de novas áreas para a sua realiza- ção, incluindo a exploração das matas principalmente para a colheita da erva mate. Diversos fatos como a Lei de Terras Devolutas de 1850, a Proclamação da República, a construção da estrada de ferro São Paulo Rio-Grande, a exploração intensiva da floresta de araucária a partir da década de 1940 podem ter contribuído para os deslocamentos da popu- lação estudada. “Essa gente foi se apossando das terras, foi se chegando, não tinha onde morar construía um ranchinho, que hoje eles têm casa, mas antes era só ranchinho. Quem conseguia fechar um pedaço maior fechava” (Agricultor aposentado, 82 anos).

A chegada de colonos italianos do Rio Grande do Sul e Sul de Santa Catarina levou ao surgimento de outra forma de acesso a terra na região do planalto catarinense: a posse individual. Estes colonos que migraram para esta região obtiveram as terras através da compra. “Meu pai e minha mãe compraram de diferentes pessoas, porque vieram do Rio Grande em busca de terra” (Futuro beneficiário do PNCF, 22 anos). Com o processo de migração e o cercamento das áreas adquiridas, as posses comunitárias se restringiram e gradativamente se extinguiram.

Portanto as diferentes formas de uso e acesso à terra se vincula- ram aos processos de desenvolvimento desencadeados, que por sua vez envolveram diferentes estratégias de ocupação por vários segmentos sociais brasileiros. Conforme as percepções historicamente construídas quanto ao uso da terra para estes segmentos de agricultores familiares, a terra é vista como um espaço de vida e lugar de trabalho, fundamental para a produção e reprodução social. No caso dos agricultores familiares caboclos esta relação se orientou mais para a produção de subsistência com pouca relação com o mercado. Sua dificuldade de acesso a terra e sua incipiente relação mercadológica impossibilitaram a compra ou o aumento de suas posses. Já para os descendentes de europeus, além do

auto-consumo ocorreu uma maior inserção com o mercado e acesso aos meios de produção mais eficientes, consequentemente conseguiram se estabelecer em áreas próprias.