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4.2 PROBLEMAS DECORRENTES DA PRECEDÊNCIA DA INVESTIGAÇÃO SIPAER

4.2.1 Acidente do Voo Air France 296

O Airbus A320 foi a primeira aeronave comercial do mundo a operar um sistema de comandos de voo fly-by-wire18 totalmente digital. A primeira unidade do modelo foi entregue em 26 de março de 1988, para a empresa Air France. O A320 era o pioneiro de uma nova geração de aeronaves altamente sofisticadas e computadorizadas, e introduzia inovações revolucionárias no âmbito da indústria aeronáutica. Na ocasião, ele colocava a Airbus anos à frente de seus competidores em termos de avanços tecnológicos e sistemas de proteção. Entretanto, diante de tamanha inovação, graves consequências recairiam sobre a fabricante Airbus caso fossem identificados problemas no sistema de comandos de voo fly-by-wire ou no computador de controle de motores totalmente automático e digital. O governo francês tinha

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Fly-by-wire é um sistema que substitui os comandos de voo convencionais de uma aeronave, operados via cabos mecânicos e polias, por uma interface eletrônica. Os movimentos realizados nos controles pelo piloto são convertidos em sinais transmitidos via cabos elétricos (e daí a origem do termo), e computadores dedicados determinam quanto devem mover-se os atuadores de cada uma das superfícies de comando, a fim de alcançar a resposta demandada. O sistema fly-by-wire também permite que comandos automáticos sejam enviados pelos computadores da aeronave sem a participação do piloto, possibilitando a implementação de funções que aumentam a estabilidade da aeronave, ou evitam a operação insegura da aeronave fora de seu envelope de voo (SPITZER, 2001, p. 12-3).

interesse direto no sucesso do projeto, tanto por ser o maior acionista individual da empresa, como pelo número de empregos gerados pela companhia em território francês.

Como parte dos esforços para promover a recém lançada aeronave, em 26 de junho de 1988, um Airbus A320 da Air France, operando como voo 296, participaria de um show aéreo na cidade de Habshiem, na França. A aeronave deveria realizar duas passagens sobre o aeroporto de Mulhouse-Habsheim, a primeira a baixa velocidade, com os trens de pouco baixados e a 100 pés de altura, e depois uma passagem em alta velocidade com os trens recolhidos. Quando a aeronave aproximava-se para a primeira passagem, o copiloto informou ao comandante que aeronave atingira a altura de 100 pés. Oito segundos depois, a aeronave alcançou 50 pés e, a seguir, a faixa de 30 a 35 pés. O comandante comandou potência total dos motores, mas pouco depois a aeronave tocou as árvores existentes ao final da pista, vindo a cair em meio à floresta. Três passageiros faleceram no acidente, e mais de 50 ficaram feridos (MICHAELIDES-MATEOU, 2010, p. 57). O comandante da aeronave saiu caminhando do acidente, prontamente alegando que os motores não aceleraram como deveriam (ROGER, 1998, p. 3).

No dia seguinte ao acidente, o ministro francês dos transportes, a empresa Air France e a fabricante Airbus declararam publicamente que a aeronave não apresentou problemas (ROGER, 1998, p. 3).

A investigação prevista no Anexo 13 da Convenção de Chicago foi conduzida pelo BEA (Bureau d'Enquêtes et d'Analyses pour la Sécurité de l'Aviation Civile), o órgão do governo francês responsável pela investigação de acidentes aeronáuticos. Os principais elementos utilizados foram os dados obtidos dos gravadores de voo, os depoimentos da tripulação, e um vídeo do acidente. As conclusões dessa investigação apontaram que as causas prováveis do acidente foram a altura muito baixa, a velocidade muito baixa, a potência do motor em neutro e a aplicação tardia de potência total dos motores, disso tudo resultando o impacto com as árvores ao final da pista. O relatório ainda concluiu que, caso a descida abaixo da altura de 100 pés não tenha sido deliberada, ela pode ter resultado da falha da tripulação em monitorar adequadamente as informações visuais e sonoras disponíveis (MICHAELIDES-MATEOU, 2010, p. 58). Por outro lado, o relatório final afirmou, inequivocamente, que nem a aeronave nem os motores contribuíram para o acidente. A autoridade certificadora aeronáutica francesa não determinou nenhuma modificação da aeronave, seus sistemas ou procedimentos operacionais em decorrência do acidente (AIRBUS, 1991, p. 10).

Analisando o relatório final do BEA, Michaelides-Mateou (2010, p. 58) constata que suas conclusões apontam, todas, para ações e omissões dos pilotos, indiretamente atribuindo culpa a um dos atores envolvidos, em detrimento do que dispõe a Convenção de Chicago.

Paralelamente à investigação do BEA, uma investigação judicial foi iniciada. A lei francesa determina que as autoridades judiciais têm total controle sobre os destroços e documentos relacionados, e que esses permanecem sob o controle da autoridade judiciária (ICAO, 2003, p. 12). Os gravadores de dados de voo, portanto, deveriam permanecer sob custódia do Poder Judiciário, para serem examinados pelos peritos. Entretanto, eles foram removidos da aeronave duas horas após o acidente, pela autoridade aeronáutica, permanecendo em sua custódia por dez dias, até que foram apreendidos por ordem judicial. Os gravadores apreendidos, entretanto, mostravam algumas características que puseram em questão sua autenticidade, levantando especulações quanto a possíveis adulterações ou mesmo a completa substituição dos gravadores (MICHAELIDES-MATEOU, 2010, p. 58).

Nesse sentido, o IPSC (Institut de Police Scientifique et de Criminologie) de Lausanne, na Suíça, analisou fotos tiradas no local do acidente, que mostram os gravadores de voo sendo transportados. A partir disso, concluiu que os gravadores apresentados à justiça não seriam os mesmos retirados da aeronave (MICHAELIDES-MATEOU, 2010, p. 59). A justiça francesa, face a outras evidências, decidiu que não teria ocorrido adulteração dos gravadores, indeferindo o pedido do comandante da aeronave para que os gravadores de voo fossem desconsiderados como prova. Ao final do processo, o comandante da aeronave foi considerado culpado e condenado a 10 meses de reclusão.

Tenha ou não ocorrido adulteração nos gravadores no caso do Air France 296, a ausência de uma cadeia de custódia verificável e legalmente válida certamente resultou em prejuízo para a apuração do caso. Essa conclusão levou a uma notável modificação no procedimento por parte dos órgãos franceses encarregados das investigações de acidentes aeronáuticos, tanto o BEA como a polícia judiciária.

Assim, quando os gravadores de voo da aeronave que realizava o voo Air France 447 foram retirados do fundo do Oceano Atlântico, um representante da autoridade judiciária francesa encontrava-se a bordo do navio para prontamente colocar os gravadores sob lacre judicial:

Em 7 de maio, o navio da marinha francesa La Capricieuse recolheu os gravadores de voo, que foram colocados sob lacre judicial por representantes das autoridades judiciárias francesas, e transportou-os tão rapidamente quanto possível para Cayenne, de onde foram levados por avião para Paris [...] (FRANÇA, 2012, p. 10, tradução nossa)

Cuidado similar foi tomado com os gravadores de voo da aeronave que realizava o voo Germanwings 4U9525:

O CVR foi enviado ao BEA em 25 de março sob lacre judicial (FRANÇA, 2015, p. 21, tradução nossa)

[…]

O FDR foi enviado ao BEA em 2 de abril, sob lacre judicial (FRANÇA, 2015, p. 22, tradução nossa)