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O ACONTECIMENTO COMO MARCO TEMPORAL

No documento O tempo presente na obra de Eric Hobsbawm (páginas 157-161)

CAPÍTULO III: DO PRESENTE AO CONTINUUM

3. O ACONTECIMENTO COMO MARCO TEMPORAL

Uma das problemáticas mais persistentes para o historiador, e conseqüentemente, para a história é a do acontecimento. Antes de embarcarmos nesta trilha dentro dos mananciais da obra de Hobsbawm, se faz necessária uma breve discussão sobre a natureza do acontecimento.

Num artigo intitulado “A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”, contido no livro A Escrita da História: Novas Perspectivas, Peter Burke destaca que assim como no “nosso tempo”, o próprio Iluminismo “já atava a hipótese de que a história escrita deveria ser uma narrativa dos acontecimentos”, e nesse sentido, a “chamada

‘Revolução Copérnica’ liderada na historiografia por Leopold von Ranke no início do século XIX, parece muito mais uma contra-revolução, no sentido de que trouxe os acontecimentos de volta ao centro do palco” (BURKE, 1992, pp. 347-348).

Um segundo ataque à história acontecimento, comenta Burke, ocorre no inicio do século XX quando Lewis Namier e RH. Tawney, na Inglaterra, sugeriram que o historiador, em vez de narrar pura e simplesmente os acontecimentos, deveria analisar as estruturas subjacentes a sociedade.

Paul Ricoeur, salienta Burke, já declarava que toda a história escrita, incluindo a chamada história “estrutural” necessariamente assume algum tipo de narrativa. Nesse sentido, o problema não é saber se a narrativa faz parte ou não da maleta de instrumentos do ferreiro da história, mas como essa narrativa aparece hoje em dia como um instrumento não meramente descritivo. Além do mais, é preciso entender a própria natureza do acontecimento narrado pelo historiador.

O acontecimento, assim como o fato histórico, repousa numa decisão a priori do historiador. Eles não possuem existência autônoma, não falam por si só. Segundo Edward H. Carr, “os fatos falam apenas quando o historiador os aborda: é ele quem decide quais os fatos que vêm à cena e em que ordem ou contexto” (CARR, 1989, p. 14). A própria idéia de acontecimento histórico se forma desse princípio, ou seja, é o historiador que transformará um fato num acontecimento histórico.

É preciso destacar, que o próprio historiador mesmo com uma documentação em mãos, acaba tendo de processar as informações contidas neste ou naquele documento. Isso sem contar que “os fatos da história nunca chegam a nós ‘puros’, desde que eles não existem nem podem existir numa forma pura: eles são sempre retratados através da mente do registrador” (ibid, p. 23). Nesse sentido o fato se constitui a partir de um processo de interação

entre o historiador e os acontecimentos, um diálogo entre o presente (afinal somos fruto do meio no qual interagimos) e o passado.

Como o fato é uma construção do historiador, ele sempre será fruto das indagações de um determinado tempo e espaço, tornando a questão da verdade histórica algo extremamente relativo, pois dependerá da época em que se encontra o historiador. É este sacerdote da casa de Clio o responsável pela “construção” da história, pelo menos enquanto campo de conhecimento sistematizado.

Hobsbawm ao eleger 1789 como início do século XIX (ou melhor, do Longo Século XIX) está não só datando o seu corte cronológico, como também determinando um fato como marco de ruptura que separa o século XVIII e o XIX. O acontecimento não é narrado, mas sim analisado como ponto chave de ruptura; como um momento de transformação drástica, para não usarmos a palavra cara aos marxistas, revolucionária. A revolução não precisa ser descrita, e o livro A Era das Revoluções “não pretende ser uma narrativa minuciosa, mas sim uma interpretação” (HOBSBAWM, 1996b, p. 15), nem para o leitor leigo, como para o leitor especialista, pois todos devem perceber o momento de ruptura.

A própria subdivisão da obra em duas partes Evolução e Resultados, e seus capítulos iniciais (“O Mundo na Década de 1780”, “A Revolução Industrial” e a “A Revolução Francesa”) compõem ou têm a intenção de compor um quadro analítico da ruptura provocada pelos acontecimentos destacados, que nesse caso, foram a Revolução Francesa e a Inglesa.

Esse princípio, que Hobsbawm adotou na Era das Revoluções, é recolocado nas outras obras. A Era do Capital inicia-se justamente com a segunda fase revolucionária datada de 1848,

não fosse sua ocorrência e o medo de sua recorrência, a história da Europa nos 25 anos seguintes teria sido muito diferente. Mil oitocentos e quarenta e oito estava bem longe de ser ‘o ponto crítico

quando a Europa falhou em mudar’. A Europa não conseguiu mudar de uma forma revolucionária. Já que tal não ocorreu, o ano das revoluções permanece sozinho, uma abertura mas não a ópera principal, um portal cujo estilo arquitetônico não leva a esperar o que se encontra após atravessá- lo. (HOBSBAWM, 1996c, p. 29)

Mesmo não sendo o ator principal, 1848 marca sua interpretação, pois consolida o modo de vida burguês; e, nesse sentido, rompe definitivamente com os laços do antigo regime.

A Era dos Impérios rompe com o período anterior ao colocar uma nova forma de

exploração capitalista, o imperialismo. Aquela sociedade burguesa que na fase anterior estava se consolidando, agora está plenamente formada tentando, e conseguindo, transmitir seus valores sociais, políticos, culturais e econômicos as outras regiões do globo que não passaram diretamente pela dupla revolução (Revolução Francesa e Inglesa). Nesse caso, não houve um acontecimento de ruptura como nas obras anteriores. O acontecimento é o próprio período, a década de 1870, em que se começa a expansão e a criação de impérios “modernos”. Entretanto, o final do período é um acontecimento forte, a Primeira Guerra Mundial.

É com a eclosão da Primeira parte da Guerra de trinta e um anos (a Primeira e Segunda Guerra Mundial) que se inicia A Era dos Extremos, última parte de uma quadrilogia que inicialmente seria uma trilogia. O século XX é visto pelo autor como curto já que termina num outro acontecimento de ruptura: a queda do muro de Berlim e o fim do socialismo real.

Os acontecimentos são selecionados na tentativa de estabelecer uma trama, no sentido atribuído por Paul Veyne, no já clássico Como se escreve a história. Para ele, “é preciso haver uma escolha em história, para evitar dispersão de singularidades e uma indiferença em que tudo teria o mesmo valor” (1998, p. 41). A história continua o autor, não se interessa pela originalidade dos acontecimentos, mas pela sua especificidade. Os

acontecimentos selecionados por Hobsbawm são específicos porque são marcos de separação entre o que era e o que passou a ser.

Segundo Veyne, “os fatos têm uma organização natural, que o historiador encontra pronta, uma vez escolhido o assunto que é inalterável; o esforço do trabalho histórico consiste, justamente, em reencontrar essa organização” (ibid, p. 41). Os fatos destacados pelos autores são justamente aqueles que se encaixam na trama escolhida. Como os historiadores narram tramas, “nenhum historiador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido e não pode passar por toda parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a História” (ibid, p. 45). Nesse sentido, os acontecimentos como ruptura fazem parte da trama escolhida por Hobsbawm que é a de demonstrar a totalidade do século XIX e como este foi longo em suas características e, por outro lado, demonstrar o curto século XX.

Entretanto, é preciso relembrar, como visto acima, que a trama se estabelece tendo como atores tanto o autor, como o seu leitor. É este ultimo, o grande responsável pela solução ou complicação da trama, através dos exemplos dados pelo autor do que acontece na atualidade mais que se assemelha com o que já aconteceu no passado.

No documento O tempo presente na obra de Eric Hobsbawm (páginas 157-161)

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