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A actividade de arrumador – a vida na “mina”

Capítulo IV Apresentação e discussão dos resultados

4.2. Os primeiros anos

4.3.3. A actividade de arrumador – a vida na “mina”

Esteve no parque automóvel cerca de um ano escolar, até que um conhecido seu lhe mostrou as potencialidades de outro local, o Hospital São João, que era, na altura, considerado “uma mina”, isto é, um dos locais da cidade onde os arrumadores de automóveis conseguiam angariar mais dinheiro.

“foi uma pessoa que arrumava lá também carros que me disse: “Pá, vai para ali que aquilo está sempre... a entrar e a sair pessoal... e aquilo ali é uma mina.”

Segundo Rafa, na altura, já existiam dezenas de arrumadores de automóveis naquele local, mas aos poucos foi ganhando o seu espaço. Começou por “ir aproveitar as deixas

dos outros”, aproveitando as horas de consumos dos outros arrumadores, para tomar os seus lugares e aproveitar o tempo em que estes estavam ausentes. Assim, conseguia “angariar trinta euros, trinta e cinco por dia... seis contos... a fazer as deixas dos

outros”. Isto durou cerca de um ano, até que a sua grande oportunidade chegou quando um dos arrumadores foi detido pela Polícia e Rafa tomou imediatamente o seu lugar:

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“E eu, como andava ali [...] nas traseiras do Hospital, aquele lugar foi logo para mim, que eu não deixei logo... “Não, este é meu!”

Os lucros rapidamente aumentaram e Rafa conseguia angariar bastante dinheiro, por dia:

“Ali no Hospital ganhava sessenta euros por dia, setenta... era conforme.”

Rafa deslocava-se todos os dias da semana para o Hospital de São João, onde permanecia da parte da manhã, à tarde, mas com a crescente necessidade de consumir, acrescentou “horas extra” ao seu já prolongado horário, deslocando-se para uma Marisqueira situada nas imediações, no horário de almoço e jantar e aos fins-de-semana, afim de conseguir colectar ainda mais dinheiro, zelando pelas viaturas dos clientes do restaurante.

Mas tudo o que ganhava era gasto na compra de heroína, no Bairro São João de Deus, um dos grandes bairros sociais da cidade do Porto e o maior “supermercado” de droga da cidade:

“Tinha manhãs de chegar ali às sete da manhã, às nove horas estar a ir-me embora com trinta euros.... para o São João de Deus... [...] Era chapa ganha, chapa batida! [...] Todo na droga... todo!

Olhando para o seu passando, considera que as grandes desvantagens do seu estilo de vida na altura, eram “o dinheiro que era ganho, era todo mal gasto”, a sua saúde que se deteriorava a cada consumo e o facto de estar a enriquecer os traficantes.

Não só as suas rotinas diárias como toda a sua vida eram estabelecidas pelas necessidades de consumo, a sua grande prioridade na altura:

“O meu dia... a minha vida moldava-se àquilo... era... eu vivia para aquilo, simplesmente... sem... sem hipótese

Os seus horário diários eram rigorosos, pois as necessidades de consumo assim o ditavam:

“ (...) punha-me a pé às sete da manhã, dava um caldo, ia para o meu posto de trabalho, estava lá até aquilo encher, aquilo enchia, ia consumir ao Bairro... vinha... ficava ali a fazer as vagas... chegava por volta da hora do almoço... onze e meia, mais ou menos, ia lá novamente, vinha outra vez para o restaurante, ficava no restaurante, ia outra vez, vinha ao fim da tarde... ia

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outra vez para o restaurante... e à noite, ia outra vez... e era esse... era assim o meu dia-a-dia! Chegava à meia-noite e vinha para casa, para a cama.”.

Com a crescente necessidade de aumentar a quantidade de consumo, por vezes as refeições eram ignoradas e Rafa “muitas vezes, nem comia... andava lá fora, fazia uma

sandes e... comia uma sandes, bebia uma cerveja e andava... o dia todo”. Apenas o jantar estava garantido, pois quando se encontrava no parque da Marisqueira, os funcionários forneciam-lhe a refeição, numa embalagem de alumínio. Assim era a atarefada rotina diária de um jovem arrumador de automóveis, marcado pela toxicodependência.

Resignado a uma vida de toxicodependência confessa que, por vezes, tinha que enveredar por actividades ilícitas quando o dinheiro escasseava e a ressaca começava a tomar conta do seu corpo e da sua mente. Aborda a situação como se a sua vida dependesse do dinheiro para o consumo, e não possuía outra alternativa, era uma força superior que se apoderava dele:

“Não sou nenhum santo... também cometi os meus pecados [...] Eu foi mesmo em algumas necessidades, em algumas horas de aperto [...] foram poucas, muito poucas... mas cheguei a cometer algumas...

Rafa relata que efectuou alguns furtos a viaturas, residências e estabelecimentos comerciais, e que estas actividades eram sempre praticadas com um parceiro de crime:

“Um espia, o outro faz o trabalho”

Mas o medo da prisão sempre estava presente e nunca optou pelo caminho da criminalidade, “como outras pessoas que fizeram depois daquilo uma prática... de

vida”.

Analisando a actividade de arrumador de automóveis, Rafa refere que a sua relação com os seus colegas arrumadores era pacífica, mas que chegou a assistir a situações de confronto provocadas por usurpações de espaço destinadas a outros arrumadores:

“ (...) soube de alguns casos de... terem que.. andar à pedrada para... para conquistar o lugar... para terem o lugar deles, porque... por vezes, vinham gajos de fora que... que sabiam que aquilo que dava... e que também queriam”.

Não existiam estruturas de poder ou hierarquias entre arrumadores de automóveis porque os espaços destinados a cada arrumador estavam bem definidos, e “cada um

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fazia a sua vida”. Só a tentativa de ocupação de um lugar indevido por outro arrumador poderia gerar algum tipo de quezília.

A sua relação com os automobilistas que frequentavam aquele espaço era ambígua, pois tanto era abordado por pessoas que compreendiam a sua situação e concordavam com a actividade, como por outras que o insultavam e recusavam-se a dar-lhe qualquer tipo de gratificação:

“ (...) chegaram-me a dizer que éramos um mal necessário... chegaram-me a dizer que mais valia aquilo do que andar a roubar... [...] Tenho outros que [diziam que] era uma praga... aquilo... a Polícia não devia deixar arrumar [...] era uma praga, era uma chaga da sociedade.” Confessa que também em certas alturas sofreu um preconceito vincado contra si e contra a sua actividade:

“ (...) cheguei a ter situações... de me mandarem trabalhar, de... chamarem-me “chulo”” Mas a maioria das pessoas “dava, e dava boas gorjetas porque só vão ali uma vez por

ano.... um exame de rotina”. Rafa acredita que a gratificação não era dada pelo tipo de serviço prestado, mas sim porque os automobilistas “tinham medo que lhes fizesse

alguma coisa ao carro”.

Assim, Rafa tinha uma relação de distanciamento e indiferença com os automobilistas, pois apenas pretendia que estes lhe oferecessem uma gratificação, e à luz de alguns conflitos afirma:

“ (...) para mim era-me indiferente... desde que não me faltassem ao respeito... estava-me a “cagar” para eles.”.

Por outro lado, a relação com os funcionários da marisqueira onde, por vezes, se encontrava a arrumar automóveis, situava-se no pólo oposto. Começou a desenvolver-se uma relação de confiança entre as duas partes, em que os funcionários pediam a Rafa para este lhes fazer alguns favores, nomeadamente “ir buscar moedas”, enquanto que o gratificavam com uma refeição à noite, para o seu jantar. Esta relação de confiança tornou-se ainda mais favorável para Rafa, pois eram os próprios donos do restaurante que pretendiam que ele ali permanecesse no horário das refeições, “para o parque estar

seguro, para os clientes continuarem a lá ir... e saberem que não havia problema com o carro... que ali também havia muitos assaltos”.

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A relação com as forças de autoridade, porém, eram bastante conflituosas. Como se tratava de uma zona da cidade com grande afluência de pessoas, também era uma zona com grande visibilidade de arrumadores e toxicodependentes. Assim, e com directivas instruídas pela Câmara Municipal, esta zona foi numa das quais a presença policial se tornou mais constante e repressiva para os arrumadores, no sentido de os dispersar e fazer desistir de exercerem ali a sua actividade.

“Levavam-nos para a esquadra, tiravam-nos o dinheiro, confiscava o dinheiro... davam-nos lá “secas” de seis horas... ao fim de seis horas, mandavam-nos embora.”.

Segundo relata Rafa, na esquadra policial, eram despojados de todo o dinheiro que tinham colectado a arrumar automóveis e obrigados a doá-lo à Igreja, depositando-o na caixa de esmolas pertencente a uma capela em frente à esquadra, ou mesmo forçados a comprar bolachas ou chocolates nas máquinas de venda automática da esquadra, para se alimentarem:

“ (...) eles tinham máquinas de chocolates e de cappuccinos e de... e tiravam chocolates e bolachas e davam-nos para a gente comer: “Come, anda lá, ao menos comes!””.

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