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CAPÍTULO 1 A CONFERÊNCIA DE BUENOS AIRES (1916)

1.5 AD FUTURUM

De volta ao Rio de Janeiro, Rui Barbosa é recebido pelos amigos. Em casa, no dia 29 de julho, recebe uma homenagem no salão de sua biblioteca em São Clemente. O deputado João Mangabeira profere um discurso de saudação e entrega a Rui um presente. As passagens iniciais do discurso são uma nota elogiosa sobre a vida de Rui Barbosa, ao estilo da época. O ponto importante, porém, é que a saudação descreve, logo de início, uma alegoria, uma imagem que é um lugar comum, um topos largamente utilizado durante a conferência de Buenos Aires: a imagem do foco de luz,

um desses marcos de luz que assinalam aos mareantes a rota perdida e aos povos a estrela dos seus destinos, iluminando-lhe os rumos ainda enoitados do seu futuro (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 259).

“O mundo é trevas, mas há um clarão”: essa alegoria costuma remeter à imagem de um foco que ilumina, por um lapso de tempo, um cenário, uma circunstância. Para Mangabeira, a conferência reflete uma luz que rompe a opacidade do mundo. Por essa razão, Rui não é identificado por Mangabeira como o embaixador do Brasil, nem o juiz de Haia (como observou Clemenceau), mas sim, um “sacerdote”, isto é, uma figura eminentemente moral. É como se Rui não falasse nem como embaixador nem juiz. Na interpretação de Mangabeira, Rui não é um nem outro por que

para vos fazerdes maior despistes a farda de embaixador que vos ligava a uma nação, e cingistes a túnica do vosso sacerdócio que vos prende à humanidade (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 261).

A reflexão de Mangabeira sugere uma reflexão. De fato, a farda dos antigos embaixadores da República exalta o orgulho, é pesado e seu tecido é bordado a fio de ouro. Trata-se de um casacão duro, impenetrável, não maleável. Em cada trama, está o nó, o pesponto, o particularismo, a impenetrabilidade, a altivez. A túnica, pelo contrário, é leve e alva; inconsútil, não apresenta particularismos, nem pontos, tramas e nós – o sujeito está diluído. Envolvente, a túnica não amarra, protege, mas não sufoca, esconde, mas não deixa de sugerir o desamparo e a fragilidade da condição humana. A partir de Mangabeira, estamos tratando de uma espantosa transfiguração: Rui não representa o Brasil, nem a Europa. Sua conferência é a fala de um sujeito desprendido, diluído numa visão de conjunto, na humanidade. Mangabeira insiste:

Já não sois apenas do Brasil; passais a pertencer à humanidade. A vossa oração vos incorporou na sua História. Não sois mais tão-somente o guieiro de uma nação, o sineiro da liberdade de um povo. Sois um desses luzeiros inapagáveis, que a largos espaços dominam as nuvens dos séculos, ensinando aos povos, às nações, ao homem, a prática dos princípios imortais que os deve guiar para os seus remotos destinos ignorados (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 261).

A conferência é uma peça relevante, então, porque anuncia algum princípio imortal, oferece uma referência, indica um ponto focal. Nessa direção, Mangabeira vê

Rui como sacerdote. Qual a mensagem do “sacerdote”? Que princípio imortal ele revelou?

Figura 7 – Joaquim Nabuco com a farda de Embaixador da República

Fonte: Museu histórico nacional

Naturalmente, Rui falou sobre o Direito e a Justiça, mas, sobretudo, falou sobre

espécie de anunciação: “é o sermão de montanha” (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 261), complementa. Zeballos, aliás, havia feito uma compreensão semelhante, apesar de usar termos mais objetivos e racionais. Zeballos e Mangabeira, respectivamente, interpretam Rui como um anunciador de ideias-guia, de um princípio imortal que ensina os povos, as nações, os homens e mulheres em geral práticas que guiam a destinos ignorados (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 261; Zeballos In: 1916, Vol. XLIII: 247).

Na tentativa de evidenciar o princípio imortal indicado por Rui, Mangabeira se vale da obra A vida de Jesus, de Ernest Renan, uma obra e um autor muito apreciados pela geração.

Quando lia, absorto, a conferência maravilhosa, vinha-me, como um perfume, ao espírito a lembrança de uma das páginas mais altas, límpidas e imaculadas do espírito humano: a de Renan sobre a conversa do Senhor com a Samaritana, junto ao poço de Jacó (Mangabeira In: 1916, Vol. XLIII: 261).19

A intenção de Mangabeira é evidente. Ele interpreta a conferência de Rui como uma doutrina espiritual. Se no pensamento de Rui Barbosa sobre política internacional há uma expressão de fé e esperança é simplesmente porque Rui redimensiona a política. Ao deslocar os negócios internacionais da diplomacia – do plano político-jurídico – Rui apresenta uma esfera diferenciada, outra instância de elaboração da ação política ou até mesmo da política externa. Nesse sentido, não há boa prática de política internacional sem a expressão imortal da consciência humana fundamentada na moralidade: a conferência de Buenos Aires é um texto religioso, um ato de fé.

19 Abaixo, transcrevemos a página mencionada da obra A vida de Jesus, de Renan: “A estrada de Jerusalém para Galileia, passa perto de Siquém, a distância de meia hora, por diante da abertura do vale dominado pelos montes Ebal e Garizim. Essa estrada em geral não era trilhada pelos peregrinos judeus, que antes queriam dar uma longa volta pela Pereia do que exporem-se às afrontes dos Samaritanos, ou terem de pedir-lhes alguma coisa. Era proibido comer ou beber com eles; era axioma de certos casuístas que ‘um bocado de pão dos Samaritanos é carne de porco’. Quem seguia, portanto, aquele caminho, fazia as suas provisões antecipadamente; e ainda assim poucas vezes evitava rixas e maus tratos. Jesus nem tinha esses escrúpulos nem esses receios. Chegando ao ponto da estrada onde se abre do lado esquerdo o vale de Siquém, sentou-se fatigado e parou ao pé de um poço. Os Samaritanos tinham então, como ainda hoje, o costume de dar a todas as localidades do seu vale nomes tirados da história dos patriarcas; pensavam que esse poço fora dado por Jacob a José. Era provavelmente aquele que ainda hoje se chama

Bir-Iakub. Os discípulos entraram no vale e foram à cidade comprar mantimentos; Jesus assentou-se à beira do poço, voltado para o Garizim. Era cerca do meio-dia. Uma mulher de Siquém foi tirar água. Jesus pediu-lhe de beber, o que moveu nela grande espanto, porque os Judeus se furtavam ordinariamente a todas as relações com os Samaritanos. Levada pela conversação de Jesus, a mulher reconheceu nele um profeta, e, esperando já censuras ao seu culto, foi ela que começou assim: ‘Senhor, nossos pais adoraram sobre esta montanha, ao passo que vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar. – Mulher, respondeu-lhe Jesus, em verdade te digo que chegou o momento em que ninguém há-de adorar sobre esta montanha, nem em Jerusalém, mas em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade’”(RENAN, s/d: 212-14).

Como dito anteriormente, nesse dia Rui Barbosa recebeu um presente dos amigos e o presente é uma interessante evidência: trata-se de uma estátua de bronze. Na imagem, a expressão de uma mensageira alada, trazendo inscrito numa tabuleta “Ad Futurum” (para o futuro). Apesar do debate em torno da neutralidade avançar anos após o fim da guerra, não pode ser assumida como a maior expressão da conferência de Buenos Aires. A tese moral, sim; é o que está aberto como possibilidade. Pelo menos, é o que o presente dos amigos, associado ao discurso de Mangabeira, parece propor ao intérprete.

Figura 8 – Estátua em bronze “Ad Futurum”