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CAPÍTULO 4 CONSTITUCIONALISMO ANTIQUÁRIO OU REPUBLICANISMO

4.4 A LEI DE RUI BARBOSA

Diferentes aspectos da Lei podem muito bem ser apreendidas a partir de um exemplo. A tragédia de Antígona demonstra com exatidão como a Lei pode ter uma característica polissêmica, uma interpretação que sustenta a ideia de que Rui não comunica apenas uma Lei no seu sentido jurídico, mas também na sua expressão moral e religiosa. A peça de Antígona, de Sófocles, guarda bem essa distinção. Para efeito ilustrativo, vale a pena retomá-la brevemente.

A peça de Sófocles narra a história de uma maldição de família que recaí sobre os Labdácidas. Conforme Alves (2008), o pensamento religioso tem um peso muito grande sobre as ações dos indivíduos e até coletividades de indivíduos na cultura grega. Essa maldição iniciou com um crime cometido por Laio, filho de Lábdaco, rei de Tebas e neto de Cadmo. Conta a narrativa, que Laio, à morte de seu pai, foge de usurpadores do trono de Tebas e encontra asilo na corte do rei Pélops, na Élida. Porém, lá ele trai as regras da hospitalidade ao raptar o filho do rei, Crisipo, ao apaixonar-se. Diante do rapto, Pélops lança uma maldição contra Laio que retorna a cidade de Tebas para tornar- se rei (Alves, 2008).

Ao retorno, casa-se com Jocasta. Ambos tentam ter um filho, porém não conseguem. Ao consultar o lendário Oráculo do Templo de Delfos, escutam a célebre advertência que comunica se tivessem um filho, ele mataria o pai e se casaria com a mãe. Mesmo assim, o casal teve um filho. Ao primeiro contato com a criança, a advertência profética voltou a atemorizar o casal. Assustados, eles entregaram a criança a pastores para que o matassem. Apiedados, os pastores o salvam e levam-no a cidade de Corinto, onde a criança foi adotada pelo rei. Trata-se de Édipo. Somente aos vinte e um anos, Édipo descobre que é adotado, e assustado, visita o Oráculo de Delfos que diz:

Para evitar a profecia, Édipo foge de Corinto e, como já sabemos, cumpre a profecia, uma a uma: mata o pai, sem o saber, numa estrada, e casa-se com a mãe ao decifrar o enigma da Esfinge e tornar-se rei de Tebas. Muito mais tarde, ao descobrir todas as suas faltas, Édipo se exila de Tebas e faculta, assim, o exercício do poder aos filhos, Polinices e Etéocles. A peça de Antígona é justamente a história contada a partir do exílio de Édipo e da reconfiguração do poder em Tebas. A princípio, Polinices e Etéocles haviam combinada que o poder seria exercido num sistema de rodízio anual. Iniciando por Etéocles, findo o primeiro ano de governo, ele se recusa a entregar o poder a Polinices. Repleto de amargura, Polinices busca vingança na cidade de Argos, inimiga de Tebas. Consegue convencer Argos a fazer a guerra contra Tebas – sua cidade natal – e uma terrível batalha se estabelece entre as duas póleis. Na guerra, Polinices e Etéocles morrem um pela mão do outro: irmão mata irmão. Com a morte dos meninos, Creonte, irmão de Jocasta, assume o trono.

A peça inicia nesse ponto, em que Creonte assume o governo e, ato contínuo, decreta uma lei que proíbe o enterro de Polinices. O cadáver jaz insepulto, sem ritos fúnebres, nas portas da cidade. A justificativa de Creonte é que ele havia cometido traição e sacrilégio, graves delitos públicos, ao fazer a guerra contra sua cidade natal. Porém, não dar sepultura a um morto, ao mesmo tempo, é um delito, pois infringe um costume sagrado entre os gregos. Do ponto de vista da dimensão moral e religiosa, é negar aos deuses ínferos uma alma, descumprimento uma ordem natural.

Ciente da lei moral, Antígona, irmã de Polinices e Etéocles, busca executar as honras fúnebres contrariando, desse modo, a lei jurídico-política de Creonte. Sua certeza recai sobre uma convicção do certo, daquilo que deve ser feito. Aqui, se trata de uma noção de dever e respeito a uma ordem natural. O teor da “lei de Antígona” não é a mesma em que se pauta a “lei de Creonte”. A heroína reconhece, antes da expressão jurídico-política da Lei, o seu conteúdo moral e religioso. Assim, movida por ideias e sentimentos de piedade e amor fraternal, ela desobedece a Creonte, pelo que é presa, e condenada a lapidação. As consequências e o desfecho constituem a tragédia e convidamos o leitor a ler a peça no original e um comentador. 71

O que é importante aqui é lembrar que a Lei tem várias expressões. Antígona é justamente o exemplo de um caso que explicita essa condição pela tensão existente entre a moral religiosa e a lei estatal. Para Antígona, Creonte é louco, insensato e

71 Remetemos o leitor ao notável estudo de Marcelo Alves, Antígona e o Direito e a peça original traduzida por Mário de Gama Kury (Ver Alves, 2008 e Sófocles, 2002: 199-262).

desmedido por contrariar a vontade dos deuses. Para Creonte, Antígona é perigosa, desobediente e inimiga pública por desacatar uma lei política. Aquilo que o exemplo demonstra é que uma Lei, uma regra ou uma norma tem dimensões variadas. Não são apenas as convenções, os decretos e a leis elaboradas na forma positiva sua principal expressão, mas também os aspectos socioculturais, os costumes, a vontade dos deuses legados aos homens.

Em Antigona há essa mensagem que contrapõe convenções aos valores mais essenciais, intrínsecos a sociabilidade humana, como por exemplo, o sentimento de piedade e amor fraternal pelos quais a heroína é movida. Sem dúvida, Antígona não gostaria de desobedecer ao rei Creonte, aliás, seu tio. Porém, seu exemplo demonstra outras dimensões de Lei menosprezadas por Creonte, o que faz do seu decreto, uma lei injusta ou imperfeita. Há mais a atender, como a sensibilidade humana, a comiseração, o sentimento natural de perda e reverência na morte. Trata-se aqui da experiência subjetiva, e não apenas da experiência objetiva. Isso mostra que o direito também tem ou deveria apresentar esse caráter universal fundamentado na fé, no sentimento humano e na razão.

Conforme descreve Marcelo Alves, o que está se apresentando são as várias dimensões de justiça. A tensão aqui é entre a justiça natural e a justiça legal. Alves lembra que Aristóteles, na Ética a Nicômaco e na Arte Retórica elabora essa distinção. Para Aristóteles, “da justiça política, uma parte é natural e outra, legal: natural, aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão dos homens pensarem deste ou daquele modo; legal, a que de início é indiferente, mas deixa de ser depois de definida” (Aristóteles apud Alves, 2008: 67). Isso quer dizer que a lei ou a justiça tem uma expressão natural, ao se referir àqueles valores igualmente compartilhados pela comunidade humana. Do outro lado, a lei ou a justiça também pode se expressar na forma política ou em leis particulares, que são as regras e os valores que variam segundo os povos, a conveniência e a necessidade.

Ao fim, fica evidente em Antígona que a justiça pode se revestir de muitos aspectos: de uma ação estritamente política, relacionada com o poder estatal, de um sentimento de religiosidade, como o ato de piedade e comiseração, do aspecto jurídico, ao lutar por justiça, da dimensão afetiva, ao ser movida por sentimentos fraternais e da dimensão moral, ao defender uma norma divina que orienta a ação dos homens pela vontade dos deuses. Esse exemplo serve muito bem para deixar a sugestão de que Rui em sua conferência reflete uma dimensão da lei muito além daquela que geralmente se

viu no seu pensamento, de teor estritamente político e jurídico, mas que se move também em outras esferas, como dos sentimentos humanos piedosos, de comiseração e amor ao próximo. É uma hipótese que pode ajudar a explicar como a dimensão moral e religiosa de Rui pode ter aparecido naquelas circunstâncias, isto é, no seu pensamento sobre política internacional e relações internacionais.