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4 EXPERIÊNCIA, MEMÓRIA E NARRATIVA 4.1 CONDIÇÕES DA EXPERIÊNCIA

5 ALGUMAS HISTÓRIAS E SENTIDOS DA EXPERIÊNCIA DE FAZER “OLHOS VENDADOS”

5.4 ADAPTAR (N)A TRAMA

A adaptação de outra fonte para um filme – como um livro ou uma história real – pode inicialmente parecer simples. Mas, na prática, trata-se de um desafio que demanda tanto trabalho quanto a criação de uma obra original (HOWARD E MABLEY, 2002). Os autores citados, para exemplificar tamanho desafio da adaptação, lembram que algumas histórias de vida, fatos e literatura não foram bem sucedidas no cinema.

Os autores de Teoria e Prática do Roteiro falam da licença poética do roteirista, justificando que a estrutura de uma história para o cinema exige alguns princípios que precisam ser seguidos na composição do roteiro. Eles ironizam lembrando que “a vida das pessoas de carne e osso muito raramente se encaixam numa estrutura em três atos.” (HOWARD E MABLEY, 2002, p. 37).

Howard e Mabley (2002) argumentam que no cinema, um drama, por exemplo, exige compressão e intensificação. “Fatos que num romance ou na vida real duram meses, ou até anos, funcionam muito melhor num filme se acontecerem todos no mesmo dia” (p. 37). Escrever um roteiro, neste sentido, exige contrabalançar a fidelidade à obra com intensidade e compressão.

Isto acontece no curta-metragem Olhos Vendados, onde as cartas no livro são diárias no decorrer de praticamente um mês. No filme, o sequestro acontece em um período muito mais breve. Os jovens produtores do filme sabem disto e avaliam positivamente, como já citamos, quando comparam Olhos Vendados com Sua Vida Me Pertence (o primeiro roteiro do grupo). Nas palavras de Wander: “Isso é um ponto a favor de Olhos Vendados [...] que se passa em quatro ou cinco dias, [enquanto] Sua Vida Me Pertence, se fosse como pedia, iria levar meses, iria tomar muito tempo. Até pela questão do roteiro”.

A tarefa de adaptar biografias, literaturas ou acontecimentos para um filme, primeiramente como roteiro, é considerada por Howard e Mabley (2002) como trabalho não indicado para roteiristas inexperientes. Wander e Lívia, iniciantes no ofício, tiveram sucesso mesmo sem experiência acumulada no assunto. Vejamos alguns detalhes da trama criadora do roteiro que contribuiu para a adaptação do drama literário.

“Assim que o escritor começa a adaptar uma história tirada de outra fonte, surge a pergunta: até onde se pode e se deve ser fiel àquela fonte?” (HOWARD E MABLEY, 2002, p. 37). Nossos jovens sujeitos de pesquisa compreendem esse tema muito bem. “A questão de uma moça ser sequestrada e o sequestrador se comunicar com o radialista e esse radialista ser pai dele, essa parte foi ele [Luis Dill] que criou. Mas como já falei outras vezes, fazê-los irmãos, o passar nos anos 60, isso foi nós.” (Wander).

Wander e Lívia quando contam sobre as mudanças realizadas, inicialmente pensam que suas alterações foram simples e pequenas. O livro se passa em 1996, o filme, em 1968. Além da época da trama, destacam que a principal mudança realizada na história do livro para o filme é o fato de terem feito com que a jovem sequestrada e o jovem sequestrador fossem meio-irmãos, filhos do radialista. “Na verdade o livro ele só tem estes três personagens. O radialista, que é o pai, o sequestrador e a menina que no livro se chama Marina. No filme a gente mudou para Clara.”

Os roteiristas de “Olhos Vendados” citam dois ou três pontos objetivos de sua adaptação, como por exemplo, a relação de parentesco dos protagonistas ou o nome de uma das personagens. Entretanto, ao contar sobre a realização do roteiro e filme durante nossos encontros, eles passam a observar que suas modificações oferecem outros sentidos à trama de “Olhos Vendados”. “Se alguém assiste pensando na ditadura, pode pensar que a Clara sumiu por causa da ditadura, [...] até a coisa da rádio dele não ser uma rádio inimiga do governo.” (Wander).

O que inicialmente parece objetivo, dois ou três aspectos modificados, vai se revelando com muito mais expressão. Lívia lembra que “a própria menina no livro é diferente.” Tais mudanças que ocorrem no estilo da personagem, ocorrem não porque desenharam detalhadamente a constituição da personagem. As mudanças nos estilos acontecem porque a trama foi reinventada.

Wander observa que no livro eles não são amigos porque o sequestrador escolhe a moça (Marina) quase que aleatoriamente. Seu objetivo é fazer uma cidade refém de sua loucura. Não existe uma trama a priori no livro que conecte as personagens.

No filme, existem acontecimentos previamente anunciados. Como já vimos, o radialista inicia o filme contando o sequestro para a comunidade onde se passa o evento. Ele anuncia ao espectador, desde o princípio do filme, que a jovem raptada é sua filha, apesar dela mesmo não saber. A trama pública que no desfecho do livro se mostrou como um drama familiar, no filme, já inicia revelando-se íntima e privada e, assim como no livro, encerrar-se-á dramaticamente familiar quando o sequestrador, ainda por carta, se revela filho do radialista.

O que podemos dizer também sobre o filme “Olhos Vendados”, sobre seu processo de adaptação, foi que eles mantiveram a forma narrativa das cartas, superando desta assim um grande obstáculo entre o formato literário e o cinematográfico que é traduzir a voz do narrador. “Não existe, em cinema, um equivalente exato do narrador de um livro, [...] o autor de um livro pode entrar em digressões filosóficas, psicológicas, pessoais, [...] exercer toda aquela magia da língua, impossível de se transpor para a tela da mesma forma.” (HOWARD E MABLEY, 2002, p. 38)

Fazer um roteiro de curta metragem exige perspicácia. É preciso escolher somente cenas que sejam essenciais. Este pode ser outro fator de dificuldade na passagem da literatura para o cinema, especialmente em um curta-metragem em que não se pode perder tempo com cenas que não se articulam centralmente com a história do filme. Mas este processo foi uma parte que vivenciaram muito mais na edição do filme, quando fizeram os cortes de cenas gravadas que não acrescentavam à história.

O que podemos dizer aqui é que o processo de criação sob a perspectiva da adaptação é uma realização em que vários momentos estão acontecendo os ajustes. Referindo-se à cena do filme em que simularam a violência sexual sofrida por Clara pelo sequestrador, Wander observa que a cena já estava no roteiro, mas não do modo como

acabaram realizando. “era [para ser] uma tiara”, mas acabaram preferindo fazê-la com um colar de pérola caindo ao chão (imagens 13 e 14). Para Wander, “o roteiro, na verdade, acho que em um filme ou novela ele nunca é seguido ao pé da letra”.

Imagens 13 e 14 – Cenas do filme

Fonte: Equipe “Olhos Vendados”

Palavras e imagens começaram a ser articuladas no roteiro e foram potencializadas na produção de “Olhos Vendados”. Se as narrativas demandam experiências, a realização do curta-metragem possibilita justamente a experiência de narrar imageticamente uma história tramada pelos jovens. Como veremos ainda nesta dissertação, a experiência e a memória participam do fazer (produzir, realizar).

A relação entre palavras e imagens é constitutiva desta experiência na medida em que aqueles que experimentaram fazer o filme produziram suas palavras e imagens em uma “sequência” que lhes permitiu que se apropriassem da história e pudessem assim, não somente contar sobre a ficção que tramaram, mas também, a trama que foi produzir a ficção.

“Olhos Vendados” recebeu o prêmio de “melhor roteiro” na 11ª edição do “Projeto Curtas”.