• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – ESCOLA: UMA QUESTÃO QUE SE REPROPÕE

3.1 Adelaide e a escola

O caminho de Adelaide para a escola era sempre o mesmo: passava pelas ruas do bairro e chamava suas amigas, em suas casas, para seguirem juntas até a escola. A escola ficava próxima de sua casa, eram cerca de 10 minutos de trajeto. Tinha seis aulas por dia, das 13h15 às 18h10. Sua rotina para ir à escola iniciava-se por volta das 12 horas, quando começava a se arrumar: terminava o trabalho de casa (TPC), tomava banho, vestia seu uniforme e saia. Devia chegar à escola às 13h10 para a formação (cantar o hino moçambicano e realizar a disciplina escolar).

A disciplina escolar era realizada antes da canção do hino moçambicano: contava com algumas perguntas que os professores ou o diretor faziam, em voz alta, para os alunos daquele horário, como “como vão de saúde?” e outras relacionadas aos seus estudos, como perguntarem se haviam ido bem em alguma prova anteriormente realizada. As crianças permaneciam em filas, na posição de “sentido” (referência ao exército), em uma maneira disciplinada; quem saísse dessa linha ou estivesse com o uniforme sujo ou sem ele, era chamada atenção na frente de todos os outros alunos, sendo mandado de volta para casa e podendo retornar se usasse o uniforme de forma correta e limpa, segundo as ordens da escola. O símbolo da autoridade parecia estar presente no ambiente escolar.

As crianças só podiam entrar nas salas quando o diretor ou algum professor autorizasse “agora podem ir para a sala, sem correr”; e caso a sala estivesse suja, o professor

162 responsável pela sala mandava-os alunos limparem, ou então não daria aula. Para as questões de higiene e organização das salas de aula haviam chefes e subchefes de turma e de higiene. Tais postos eram ocupados pelas crianças das mesmas classes e representavam a autoridade em sala quando o professor estivesse ausente. Era um aluno para cada cargo, em cada turma, totalizando 4 por sala. Geralmente, era o professor mais velho quem escolhia quem seriam os chefes das turmas. Caso a sala entrasse em desordem, eram os chefes os responsáveis por mandar os outros silenciarem-se ou arrumar a bagunça; caso contrário, eram os responsabilizados por tal desorganização. Certa vez, enquanto assistia aula com Adelaide, uma das professoras questionou a chefe da higiene quem havia comido uma maçã e jogado os restos no chão. Esta respondeu dando o nome de duas meninas. Ao retornarem do banheiro, ambas levaram dez reguadas nas palmas de cada mão como castigo por terem deixado a sujeira em sala. Algumas crianças fecharam os olhos e fizeram cara de espanto; outras riram da situação vexatória que as colegas passavam. Com o passar dos dias, percebi que aquele tipo de situação era corriqueiro, em uma tentativa de disciplina baseada na coerção. Adelaide dizia que não queria ser chefe, pois não gostava de mandar os outros e levarem bronca.

Alguns professores, ainda, faltavam com frequência. Adelaide, bem como as outras crianças, referia a esse fato como sendo algo habitual, mas que dificultava o aprendizado. Ela questionou o fato de alguns professores baterem nas crianças – prática aceita por muitos familiares, como a de Adelaide. Tratava-se, como pude perceber e conhecer através de diálogos com os mais velhos, de uma prática antiga e que foi vivida por várias gerações. As mães diziam que seus professores também lhes batiam, “aqui é normal isso”, afirmou Margarida. O diálogo abaixo ilustra tal fato.

Adelaide: Na outra escola os professores batiam menos. Eu não acho bom. Não é certo, preferia que não batessem. Não deviam bater, pode dar problema.

Marina: Que problema?

Adelaide: Das crianças baterem e pode dar problema. Você bate nas crianças e podem se aleijar...

Marina: Deve ser ruim mesmo. Já te bateram?

Adelaide: Já! Uma vez eu errei a resposta, e me bateram com o apagador na mão. Assim oh (e me mostrou a posição de sua mão – palma voltada para cima e fez gesto de como o professor lhe bateu). Ficou vermelha. Como dói! Tenho medo, não respondo mais nada, só quando me chamam.

Marina: Por isso você não responde as perguntas?

Adelaide: Não. É que tenho vergonha. Não gosto ainda de falar muito! (Risos).

163 Adelaide: Não. Não todos. Uns batem menos. Só um professor não bate. Dá bronca, mas não bate.

Marina: E ele é um bom professor? Adelaide: Sim!

Marina: E qual você mais gosta? Adelaide: O de ciências naturais Marina: E qual você menos gosta? Adelaide: O de matemática.

Marina: Mas quem dá matemática não é o mesmo? Adelaide: É, mas gosto dele dando Ciências Naturais...

Marina: Ah, entendi! Ele é o que você mais gosta, em Ciências Naturais, e o que menos gosta, em matemática?

Adelaide: Sim! E a matéria que mais gosto é Ciências Naturais. Não gosto de matemática (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Fatiminha, quando questionada sobre o fato dos professores baterem, respondeu-me que em sua escola os professores não batiam muito. E completou a frase com uma reflexão importante a ser tomada: “aqueles que sabem, não batem. Mas quem bate, bate, bate, não sabe, e então não explicam nada” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Tal conversa voltou algumas vezes. A posição das crianças quanto ao bater ia se clareando nos meus dias.

Em um certo dia, enquanto Adelaide fazia um trabalho para uma disciplina, alguns vizinhos se juntaram para ajudar. Conversamos sobre a escola, a discussão sobre a forma disciplinar da escola surgiu: afirmaram as pessoas que, na época delas, as crianças eram mais disciplinadas, pois os professores eram bravos, batiam e assim educavam: “não é como hoje, que quase não bate. Tinha disciplina naquela época. Se não tivéssemos tomado banho, nos batiam e mandavam pra casa; nem arriscávamos chegar sujos. Agora não, são indisciplinados esse ai, fazem tudo de qualquer jeito” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). A educação era vista, naquele espaço, como sinônimo de disciplina e autoridade, baseada muitas vezes na palmatória e nos castigos colocados como forma de educar.

Na escola, Adelaide tinha nove disciplinas: matemática; português, educação física, educação visual, ofício, educação musical, moral e cívica, ciências naturais e ciências sociais. Todas as disciplinas eram realizadas dentro da sala de aula, com exceção de educação física cuja parte prática era realizada no campo da escola em conjunto com outra turma da 7ª classe. Na disciplina de ofício, as crianças aprendiam alguma profissão; geralmente, era algum trabalho de artesão, como a construção de tapetes de folhas de árvores ou de um vaso de cerâmica.

164 Adelaide considerava que a escola em que Fatiminha, sua irmã, estudava era melhor, pois tinha uma estrutura física mais adequada; as mães tinham, também, essa percepção. Suas críticas fundamentais eram relativas à estrutura física da escola, como o muro inacabado, deixando inadequadamente delimitada a separação a estrada e a escola. Em relação ao modo como os professores educam, a preferência era pela escola com parceria com a ONG em que trabalhei em 2012.

Tem muro, grade, segurança na porta e cadeira para todos. Não sentam no chão. Na nossa tem pessoas que vão para roubar dinheiro, pasta, caderno. Gostava mais da outra, no Spapate. Podíamos brincar, tinha comida, e as crianças tinham respeito. Os professores não batiam. Aprendíamos mesmo. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Anabela, uma das amigas de Adelaide, concordou com ela sobre as aulas na ONG. Referiu que “lá aprendíamos a ler. Não era igual aqui, que nos batem, batem, e às vezes sabemos, às vezes não. Quando não sabemos, ai batem bem! E aqui nos roubam, não tem cadeira pra sentarmos. Ah, preferia estudar no Spapate” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Além das questões já referidas, Adelaide e Anabela comentaram sobre uma das professoras, que naquele momento também dava aula da escola, e que, na ONG, as ajudou com aulas extras de português e leitura. “Se não fosse ela, não estaríamos a ler. Ela nos ajudou muito! É boa pessoa” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Adelaide não faltava na escola e, durante as aulas, sentava na frente. Por vezes, esquecia-se de fazer o TPC ou não conseguia terminar (não entendia os exercícios ou o próprio enunciado) – e então copiava de algum amigo da sala. Adelaide falava o português apenas nos momentos das aulas, ou quando eu estava junto; nos outros momentos, fosse em casa, com suas amigas ou até em compras, changana era seu idioma, como o de muitas crianças que partilhei os dias. A imposição do português como língua oficial e obrigatória no ambiente escolar prejudicava não apenas a alfabetização, mas como o entendimento e a educação como um todo. Nos momentos de leitura em voz alta, Adelaide não gostava de participar. “Não sei ler”, dizia ela, ou tinha medo de errar. “Se errar hei de apanhar. Ah, prefiro não falar nada” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Quando os professores faltavam, Adelaide saía da sala e permanecia fora, junto com as outras meninas, e brincavam de roda ou ficavam sentadas conversando. As conversas, por vezes, eu não entendia – falavam em changana, o que era muito comum ali; o português era utilizado só durante as aulas e ao falarem comigo, muitas vezes. “Ele não entende bem o

165 português, por isso não está a te responder”, disse uma das crianças; “E como ele entende a aula?” perguntei a ela. “Boa pergunta”, foi sua resposta (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Duas dificuldades apareciam para mim: o uso do português como única língua possível no processo de aprendizagem, e o uso da violência como meio de educar. O excesso de faltas de alguns professores completava o quadro escolar. A escola, para Adelaide, era um lugar que ela precisava estar, mas não necessariamente em que gostava de estar. Em uma conversa sobre a escola e a futura profissão a ser seguida (que se iniciou com a questão sobre o que eu fazia), Adelaide disse sobre o que esperava escola: “eu quero saber, poder ler. E depois trabalhar. Qualquer trabalho, empregada doméstica pode ser. Não sei se vou fazer faculdade. Quero trabalhar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Em uma conversa com os vizinhos de Adelaide, surgiu a questão sobre os professores daquele momento serem mais novos do que os antigos, e ter a diferença dos professores antigos terem terminado o magistério para poderem dar aula, o que não acontecia nos dias atuais. A diretora pedagógica e alguns professores afirmaram que muitos professores não possuíam formação universitária. Alguns estavam cursando a graduação, mas não necessariamente no campo da educação. Quando alguns professores atingiam o grau superior completo, eram enviados para as escolas secundárias, que possuíam o ensino das 8ª às 12ª classes.

A escola primária, base da educação infantil, continuava com a falta de professores tanto em questão em numérica quanto na questão de formação e qualificação. Adelaide não se importava quando os professores faltavam, pois o tempo para brincar era maior nessas situações. Mãe Laurinda e mãe Margarida consideravam importante as crianças estarem na escola, ao mesmo tempo em que não sabia sobre o andamento de seus filhos na mesma. “Estudar é importante. Tivemos mas paramos. Eles que tem que saber e ir estudar, poder ter um trabalho bom. Ai vão sair de casa e ter sua família”, disse mãe Margarida.

Os espaços da escola eram utilizados, muitas vezes, para o brincar. Adelaide gostava das brincadeiras de roda com as outras meninas. Nas aulas de educação física, em que se separavam as turmas e a sua classe esperava por quase uma hora, ela e suas amigas se trocavam, colocando roupas mais confortáveis, como shorts e camisetas mais largas, e então espalhavam-se pelo campo. Uma roda era para as brincadeiras de canto; outras, na espera, brincavam de correr. Havia as que pegavam uma bola e jogavam. Dificilmente as meninas

166 misturavam-se com os meninos, que brincavam de futebol ou de luta. Enquanto observava, fui convidada para brincar. “Mana Marina, anda cá. Vais ver como anima brincar!”.

Em um dia atípico, em um momento de formação, a professora responsável chamou a atenção das crianças com a mesma brincadeira que fazia com as crianças menores, da 1ª e 2ª classes. Alguns reclamaram, dizendo que não eram mais crianças para isso. Adelaide e a maioria das crianças se juntaram e pularam, cantaram, marcharam, conforme a música cantada pela professora pedia. Com um sorriso no rosto, Adelaide me disse que “a escola anima quando é assim”.

Certa vez, o diretor deu um aviso às crianças: “quem vem a escola, vem para estudar. Não quero ver nem ouvir vocês brincarem pelos espaços das salas. Usem o campo. Escola é lugar de estudar. Brincar vocês brincam em casa, ouviram?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). O discurso ressoou como um aviso para mim: a escola deveria ter mais espaços voltados ao lúdico. Adelaide prestava mais atenção nas aulas quando os exemplos lhe eram familiares, como algo de seu dia-a-dia, e quando o riso permeava os estudos, como nas aulas de desenho visual, em que o professor responsável pela disciplina usava do humor e de brincadeiras para ensinar as crianças as técnicas do desenho e a importância na vida escolar e fora dela. A escola deve contemplar um espaço de formação como um todo.

Documentos relacionados