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CAPÍTULO 3 – ESCOLA: UMA QUESTÃO QUE SE REPROPÕE

3.2 A escola para Januar

Januar estudava em uma das salas de 5ª classe da Escola Primária Completa Matola “A”. Entrava às 6h30min, sendo que precisava estar na escola às 6h20min para cantar o hino. O caminho de sua casa para a escola era sempre o mesmo, e tinha a companhia das crianças que moravam perto, como Linho e mãe; o trajeto levava em torno de 30 minutos. Por ser da 5ª série, havia apenas um professor que dava todas as disciplinas. Eram 7 disciplinas: matemática, português, ciências sociais, ciências naturais, educação visual, ofício e educação musical. Em sua sala, havia 73 crianças. Todas repetentes: já tinham cursado a 5ª classe ao menos uma vez, tendo crianças que chegava a ser a 6ª vez. A maioria delas não sabia ler, ou tinha grande dificuldade na leitura, como era o caso de Januar.

Em conversa com o professor da turma, ele contou que tem crianças na sala que se encontram com 14, 15, 16 anos, e que não sabem ler. Quando me perguntou qual criança eu acompanharia, Januar respondeu que seria ele. O professor insistiu com a questão de Januar não saber ler, em sua frente, causando constrangimento no mesmo.

167 Esse ai não sabe ler. Já trabalhei muito com ele, foi na quarta classe. Fiquei duas semanas depois que o professor saiu. Parei e fiquei fazendo leitura. Aqui na 5ª classe a maioria não sabe ler. Fiz leitura, até estou atrasado na matéria. Para uns adiantou, mas esse aqui nada! E se você perguntar, ele não fala o porquê não sabe (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Essa situação conduz à própria concepção e organização da educação e o sistema educacional no país destinado às crianças dos bairros periféricos. Com a grande quantidade de alunos na sala e o número de professores insuficientes, bem como de espaço físico, as crianças não aprendem, e chegam na 5ª classe com sua grande maioria não sabendo ler ou com grandes dificuldades.

A questão da oposição entre o português e a língua changana na escola é algo que me chamou atenção, em especial nas aulas com a turma de Januar. Durante as aulas, as crianças só tinham permissão para usar o português, tanto na escrita quanto na fala. Porém, certa vez, enquanto o professor explicava uma passagem matemática (era uma aula sobre ângulos), as crianças não entenderam. O professor resolveu explicar em changana, dizendo “perceberam o que estou a pedir? Como é mais difícil, vou falar em dialeto, assim vocês percebem”. Após a explicação em changana, perguntou se as crianças entenderam, e elas afirmaram que sim. “É preciso falar dialeto, que elas estão acostumadas. Português fica mais difícil”, disse o professor para mim (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Quais as consequências na vida dessas crianças da imposição de se expressar-se, oralmente e na escrita, por meio de uma língua que mesmo sendo a oficial do país, não é língua falada por elas nem por seus familiares? Esta dinâmica revela um desafio imposto pela ideia de construção do Estado - nação, mas que se ergue sobre a desqualificação cultural local. Como compreender, nos dias atuais, tal paradigma? Que consequências tem a proibição do uso do changana na escola? Estas foram algumas das questões que me acompanharam neste período.

Nas vezes em que assisti às aulas, as crianças vinham falar comigo em diversos momentos. Julia, uma das meninas da turma, ao me chamar pelo nome, foi corrigida por Januar, que disse “não é Marina, é mana Marina!”. Ao questionar sobre essa questão, Januar me explicou que tinha que ser assim, porque era mais velha. Entendi como um sinal de respeito.

Durante as aulas, era comum os exemplos dados pelo professor se referirem ao dia-a- dia das crianças ou a questões que envolviam o país. Certa vez, em uma aula sobre ciências naturais, o tema era “água”. “Onde vocês utilizam a água?”, perguntou o professor. As

168 respostas foram diversas “para lavar roupa”, “para cozinhar”, “para limpar”. Ao citarem essas atividades, as crianças comentaram sobre os trabalhos que realizam em casa. O professor questionou qual deles havia gostado do fim de semana que passou, e uma das crianças respondeu que ela não, pois havia trabalhado. O professor respondeu “mas é isso que você tem que fazer. Achas que deve só brincar?”, e as demais crianças riram. A questão das tarefas que as crianças realizam em suas casas aparecia não apenas nas conversas e no dia-a-dia do ambiente doméstico, mas como na escola e nos livros didáticos que utilizavam, com ilustrações que traziam crianças lavando a louça, varrendo a casa, trazendo baldes na cabeça, entre outras. As tarefas e atividades das crianças aparecia também na escola, como naturalizada e sem reflexão.

Também na escola as crianças realizavam alguns trabalhos que eram chamadas. Certa vez, enquanto estávamos em aula, o segurança da escola passou convocando as crianças da turma de Januar para irem no sábado seguinte lavar a casa de banho (banheiro), e, quem não fosse, teria que lavar sozinho na segunda-feira. É função das crianças a limpeza dos ambientes escolares? Januar disse que era comum isso acontecer, mas que ele não iria, pois tinha catequese no sábado. “Não hei de vir. Se perguntarei, direi que tenho catequese. Não vou limpar casa de banho, nem uso”, reforçou Januar.

Em um dos dias, durante a aula, uma das crianças reclamou com o professor sobre terem roubado as bolachas de dentro da mochila de sua irmã, que também estava naquela 5ª classe, no dia anterior. O professor chamou a irmã e ela explicou o ocorrido: no dia anterior, em que o professor havia faltado, todos foram para o campo brincar. As mochilas ficaram juntas, embaixo de uma árvore e, quando ela foi tomar seu lanche, percebeu que a mochila estava aberta e outras crianças disseram quem foi que a abriu. As meninas acusadas do roubo das bolachas foram 4, e o professor as colocou para fora da sala e depois chamou uma por uma, para ouvir a versão de cada individualmente – mas tudo sendo feito perante a sala toda. Ao fim, as meninas disseram que pegaram as bolachas e o professor, como modo de castigo, fez as quatro meninas assistirem aulas em pé, uma em casa canto da sala, até o fim do dia. Sobre a própria questão do roubo, como foi chamado o caso, ele apenas disse “roubar é errado. Não se pode fazer isso. Alguns professores poderiam bater, mas não vou fazer isso”, e me olhava, “agora vão lá, vão assistir aula em pé para aprenderem”, finalizou o professor. Entendi o jeito de o professor me olhar como um modo de mostrar que, se ele quisesse, bateria, mas não o fez pela minha presença ali (como as próprias crianças me disseram), mas não deixou de ressaltar o fato de que poderia bater. A questão foi resolvida com um castigo,

169 no qual não houve uma conversa sobre o fato do roubar e uma postura em que a escola, como lugar para a educação, se envolvesse.

Na classe de Januar, enquanto eu acompanhei, houve apenas um caso em que o professor bateu nas crianças. Aconteceu em um dia em que cheguei atrasada. Fui até a porta e as crianças estavam viradas para trás, algumas com cara de espanto, outras com um sorriso no rosto. Ouvi o professor dizer “quem falou para não fazer TPC? Quem falou? Vocês querem chumbar37 a classe de novo?” enquanto ouvia barulhos fortes vindos do bater o apagador na mão de cada criança que não havia feito a lição de casa, sendo dez batidas em cada palma de cada uma das crianças que deixou de fazê-lo. Ao me ver, saiu da sala, e quando retornou, tentou explicar a todos a atitude tomada, tentando se justificar dizendo que quando ele faltava, como no dia anterior, as crianças deveriam estudar para poderem passar de classe ou assistir aula em outra classe ao invés de irem brincar, e isso o havia deixado chateado, o que fez com que descontasse nelas. Expliquei a ele que fomos ao campo porque uma outra professora mandou, já que ia utilizar a sala. O professor disse que não sabia disso e que se as crianças tivessem falado, ele não teria agido daquele modo.

Perguntei se o professor batia nas crianças, e elas disseram que sim, “mas não muito”, como outros professores que já tiveram. Desde o momento em que estava lá, não havia presenciado nenhum evento deste tipo, mas as crianças afirmavam que “é porque está aqui. Mas ele bate, às vezes”. Depois que parei de acompanhar Januar, perguntei às crianças se o professor voltou a batê-las, e elas disseram que não. Em uma conversa com o professor, ele afirmou que não achava certo bater, mas que, às vezes, era preciso, mesmo que preferisse evitar. A partir de então, conversamos diversas vezes sobre os métodos utilizados em sala de aula e sobre os relatos de muitas crianças que afirmavam ter medo, e então não aprendiam direito. Januar disse que, depois que cheguei, o professor ficou “menos bravo. Até quando aquela menina chegou atrasada, viste que ele deixou ela entrar? Em outros dias não deixaria. Aqui não pode atrasar nem errar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Sobre a questão dos professores terem direito de bater, Januar tinha uma postura muito bem definida: era contra. Quando conversamos sobre isso, ele disse que até sabia ler, mas não gostava do professor falar na frente dos outros que ele não sabia, e então ele deixava de tentar. Certa vez, quando seu professor faltou, novamente, ele quis assistir aula em uma outra sala “Marina, é melhor pedirmos para ver aula, né? Assim o senhor professor não briga que não

170 estudamos. E se estou na escola tenho que estudar”, disse-me. O critério para escolher a sala que pediria para ver a aula foi o bater “vamos entrar nessa aqui, que o professor não bate. Nas outras batem muito”, resolveu Januar. Quando conversamos sobre o futuro, Januar disse que queria ser professor, mas que não bateria, e assim as crianças iam aprender. Januar enfatizou sua crítica dizendo que quando fosse professor iria ensinar bem mais, “[…] meus alunos vão repetir mil vezes, mas vou ensinar. E não vou bater!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Januar não faltava, mesmo se estivesse chovendo ia à escola e sentava na frente. Tentava resolver os exercícios e passamos a realizar leituras em sua casa, o que certamente o ajudou na escola. Januar, quando diz o que uma criança tem que fazer, reforça que a criança tem que ir à escola e estudar, compreendendo a escola como lugar importante.

Em um dos dias, na hora da entrada, enquanto o professor não chegava, uma conversa com as crianças de sua sala me chamou atenção. Estavam sentadas em um degrau e me cumprimentaram. Dois meninos começaram a se bater e queriam bater em uma das meninas, Judite, que estava de saia. Falei para não fazerem aquilo e Julia disse que ela era da RENAMO. Questionei o porquê disso e Julia disse que “Não estás a ver como está a se vestir? Quer se insinuar para os homens. É da RENAMO esse ai”. Perguntei se as mulheres da RENAMO faziam isso, e ela afirmou que sim, e todos riram. O professor chegou e fomos para a sala. Não consegui voltar e aprofundar esse assunto. O que queria dizer ser da RENAMO para aquelas crianças? E o dizer da ideia de que as mulheres da RENAMO se insinuavam para os homens? Como era colocada as questões de gênero e sexualidade ali? Infelizmente não consegui aprofundar e tais questionamentos persistiram.

A violência justificada pela quebra de código de moralidade e a relação entre feminino e imoral não são desconhecidas e eclodem em situações diversas de anomia e ausência de mediação cultural de conflitos. São também, marcas profundas das relações em lógicas de guerra. RENAMO surgia ali como álibi para o uso da força. A guerra revelou-se ainda muito presente, na linguagem e no dia-a-dia, sendo igualmente explicitada nas brincadeiras e conversas infantis.

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