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Capítulo 2: Considerações metodológicas – um modo de investigar narrativas pessoais sobre

2.3 A ADMC como ferramenta de análise

Desde a década de 90, a comunicóloga estadunidense Susan Herring percebe que, nas plataformas que fazem uso da internet, as pessoas participam de atividades socialmente significativas que, na maioria das vezes, deixam um rastro textual, mais acessível para análise e reflexão do que a fala. Isso permite que pesquisadores possam aplicar métodos empíricos de nível micro em dinâmicas online para lançar luz sobre fenômenos de nível macro como os processos de construção de coerência, comunidade e identidade, expressos pelo discurso.

Apesar desse potencial, Herring (2004, p. 338) nota que boa parte da pesquisa sobre o comportamento online é “anedótica e especulativa, em vez de empiricamente fundamentada”. Também constata que a interação online ocorre majoritariamente por meio do discurso. Os participantes interagem utilizando a linguagem verbal digitada em teclados ou lidas como texto na tela do computador – estendida a celulares e tablets a partir dos anos 2000. Mesmo que a comunicação mediada por computador (CMC) se torne cada vez mais multimodal, a comunicação textual teria maiores chances de permanecer sendo usada em ambientes online.

Diante de tais percepções, a comunicóloga desenvolve um método para explorar as narrativas virtuais, que, por extensão, também revelam aspectos do comportamento em rede:

Computer-Mediated Discourse Analysis (CMDA) ou, em português, Análise do Discurso

Mediado por Computador (ADMC), em constante aperfeiçoamento desde sua concepção. Trata-se de uma abordagem para a análise da CMC cujo foco é a linguagem e seu uso. É também um conjunto de métodos (a toolkit, um kit de ferramentas) baseado na análise

linguística do discurso para escavar a comunicação em rede buscando padrões de estrutura e significado amplamente construídos. A ideia básica é adaptar os métodos existentes – sobretudo da linguística, mas, em princípio, de qualquer disciplina relevante que analise o discurso – para as propriedades das mídias de comunicação digital (HERRING, 2012).

Conforme se vê na tabela abaixo, o método da ADMC propõe a divisão da linguagem mediada por computador em quatro níveis macro (Estrutura, Significado, Gerenciamento de Interação e Fenômeno Social; às vezes, um quinto nível não linguístico, Participação, também é incluído), que possuem três elementos constituintes: questões que aparecem; o fenômeno que vai ser analisado; e o método que se pode usar para investigá-lo. Interessa à dissertação explorar os níveis Significado e Fenômeno Social.

Quadro 3 – Análise do Discurso Mediado por Computador (ADMC)

Fonte: Traduzido de HERRING (2012).

O nível Significado diz respeito ao que é intencionado (as pretensões que se têm ao acionar a linguagem mediada por computador, ao que podemos associar às intencionalidades performáticas por trás de seu uso), como é comunicado e qual o resultado dessa comunicação, ou seja, o que é feito com e a partir dela. Para tanto, observam-se o significado das palavras, os atos da fala (speech acts, também entendidos como utterances, enunciados) e as trocas de

significação por meio do uso da semântica e de uma visão pragmática da linguagem, atenta a seus desdobramentos e efeitos práticos.

Já o nível Fenômeno Social se relaciona às dinâmicas sociais, relações de poder e aos conceitos de influência, identidade, comunidade e diferenças culturais e/ou sociais (estas últimas pouco presentes nas narrativas investigadas). Para isso, atenta-se às expressões linguísticas que denotam status, conflitos, negociações e gerenciamentos de impressão, além de observar o estilo e as particularidades dos discursos investigados. Tal acompanhamento é feito utilizando metodologias como a sociolinguística interacional, a análise crítica do discurso e a etnografia da comunicação.

No que se refere à presente pesquisa, optou-se por uma inspiração mais ampla nos preceitos da ADMC, cujo olhar está atento tanto a discursos quanto a figuras, imagens, emojis e demais elementos particulares à linguagem mediada por computador – que compõem as narrativas acerca da maternidade produzidas em blogs sobre a maternidade e no Facebook.

Isto posto, é importante destacar que a ADMC permite atentar para as especificidades dessa comunicação, às affordances que as mídias sociais possibilitam.

Pode-se entender as affordances como o conjunto de recursos e características de uma determinada mídia. Boyd (2011) propõe quatro affordances centrais para o entendimento dos públicos em rede, entre os quais encontram-se os sites de redes sociais e blogs. São elas:

1) Persistência, o fato de as expressões online serem automaticamente gravadas e arquivadas, permitindo que um determinado conteúdo permaneça visível no histórico de publicações da plataforma – no caso, Facebook ou blog – em que é postado, semelhante ao conceito de rastros digitais defendido por Baym (2010). 2) Replicabilidade, a possibilidade de os conteúdos nesses espaços serem facilmente

duplicados. Isso permite que postagens como as analisadas na pesquisa sejam compartilhadas por várias pessoas, em diferentes plataformas e locais.

3) Escalabilidade, a potência que conteúdos postados em públicos em rede possuem de ter alta visibilidade, sobretudo se feitos em modo aberto, como é o caso das unidades de análise aqui investigadas.

4) Buscabilidade, a possibilidade de esses conteúdos serem acessados por busca, o que permitiu que o corpus deste trabalho fosse produzido.

É possível acrescentar outras affordances disponibilizadas pelo Facebook e pelos blogs maternos, algumas das quais são compartilhadas por ambas as plataformas. Antes, porém, faz-se necessário atentar para o fato de que o Facebook não constitui um campo de

pesquisa único, comportando diferentes espaços que, consequentemente, possuem recursos que diferem entre si. Trata-se de uma plataforma que “engendra distintos campos comunicacionais, públicos e privados, individuais e coletivos, todos potencialmente podendo ser apropriados pelos sujeitos para construírem identidade e sociabilidade” (POLIVANOV e SANTOS, 2016, p. 194). Berto e Gonçalves (2011) inclusive caracterizam o Facebook como um gênero digital emergente, marcado por diferentes intersemioses, já que abriga, em um mesmo ambiente, características e ferramentas encontradas em outras mídias. Do mesmo modo, os blogs maternos foram criados e hospedados por diferentes plataformas, contendo programações distintas que, como consequência, geram layouts e recursos divergentes. Diante disso, pode-se admitir que o corpus mobiliza dois grandes campos50 comunicacionais – os

âmbitos de produção e recepção dos posts – cujas affordances serão consideradas pela análise. Presentes tanto nas publicações advindas do Facebook quanto das oriundas de blogs maternos, as hashtags são entendidas por Zappavigna e Martin (2017) como um recurso para convocar comunidades de sentimento em torno de valores percebidos como acoplamentos de ideação-atitude, ou seja, capaz de forjar alianças e negociar significado por meio do tagging: o ato de marcar pessoas em certa publicação ou utilizar hashtags para associar a postagem a determinadas práticas e ideias. Outra affordance presente em todas as plataformas – e que será particularmente cara à pesquisa – é a possibilidade de interação entre usuários. Seja ao responder um post em uma fanpage no Facebook ou em um blog materno, denunciando e/ou compartilhado o conteúdo produzido, é possível interagir com as postagens, conversar com suas autoras e com outras mulheres que discutem a maternidade no mesmo ambiente.

Tal contexto faz pensar sobre os limites e condições dessa interação. Como aponta Braga (2008), o espaço virtual pode oferecer ampla liberdade de expressão, o que demanda regras – algumas específicas à comunicação mediada por computador – que possibilitem a convivência coletiva. Assim, os padrões de interação verbal praticados nesses ambientes estão submetidos ao controle social dos participantes da interação. A possibilidade de anonimato e outras características da rede podem funcionar como facilitadores tanto para laços sociais afáveis quanto para hostilidade e desrespeito. Ao analisar o blog materno Mothern, Braga percebeu que os novos participantes das listas de discussão costumavam ser ignorados quando não apresentavam o perfil esperado pelo grupo principal ou não tinham afinidade com a

50 Sabe-se que esses campos não são separados na prática, mas, para fins didáticos relacionados à realização da

proposta do blog. É possível pensar que processos semelhantes ocorram nas seções de comentários que aqui serão analisadas.

Se nos blogs o controle das publicações dá-se pela intervenção dos atores sociais nelas envolvidos – sobretudo seu(sua) criador(a) –, no Facebook essa dinâmica se junta às ferramentas e regras de funcionamento do próprio site. Qualquer usuário consegue, em poucos cliques, denunciar um conteúdo que, após avaliado pela equipe do Facebook, pode ser excluído, bloqueado, suspenso ou ter sua visibilidade restringida por não estar de acordo com o que a plataforma chama de “Padrões da Comunidade”, uma série de especificações que detalham o que é ou não permitido no Facebook. Dividem-se nas categorias “Comportamento violento e criminoso”; “Segurança”; “Conteúdo questionável”; “Integridade e autenticidade”; “Com respeito à propriedade intelectual” e “Solicitações relativas a conteúdo”, com subcategorias para que os usuários especifiquem o tipo de denúncia feita (PADRÕES, 2018).

Nesse sentido, o imbricamento entre os circuitos de produção de conteúdo/entretenimento e segurança/controle (BRUNO, 2013) pode ser encarado como algo que extrapola a categoria de affordance, configurando uma condição dos meios em que as narrativas pessoais sobre a maternidade são produzidas. Mais ainda: trata-se de uma condição cuja existência as participantes de tais discussões em princípio conhecem. Sabem que suas atitudes e narrativas podem ser avaliados por demais atores sociais, do mesmo modo que podem avaliar – e interferir – nas publicações alheias.