• Nenhum resultado encontrado

Publicado no Brasil em 2013, Azul é a Cor Mais Quente foi lançada simultaneamente à adaptação cinematográfica. O enredo sobre o amor entre duas mulheres foi rapidamente associado às polêmicas cenas eróticas do filme, reacendendo a problemática da representação lésbica nas artes como fetiche masculino. Periódicos de grande circulação nacional optaram por analisar apenas o filme, e sob um recorte sexualizado, criando uma imagem distorcida da narrativa e acrescentando pouco ao debate da representação homoafetiva nas artes91. Não obstante, a novela gráfica possui dois potenciais fatores que podem ter corroborado para o silêncio seletivo da crítica: o gênero novela gráfica ser menos reconhecido do que o cinema e

89 A adaptação para o cinema francês chama-se La Vie d’Adèle, as versões em inglês e português conservaram a

tradução de Le bleu est une coleur chaude, intitulando-se da mesma forma que o livro.

90 On a parlé de la perte du Grand Amour. J’avais perdu le mien l’année précédente. Lorsque je repense à la dernière partie de La vie d’Adèle, j’y retrouve tout le goût salé de la plaie (MAROH, 2010).

91 Optando por resumir o filme às cenas de sexo consideradas longas e demasiadamente realistas, boa parte da imprensa nacional apostou no recorte raso em detrimento às temáticas da representação homoerótica do filme.

Exemplo disso é a matéria Entre aplausos e ataques, ‘Azul é a Cor Mais Quente’ estreia no Brasil, de Patrícia Villalba, para a Revista Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/entretenimento/entre-aplausos-e-ataques-azul-e-a-cor-mais-quente-estreia-no-brasil/. Acesso em 01 jan 2018.

outras formas tradicionais de literatura e o seu enredo tratar de amor entre lésbicas, o que em uma sociedade heteronormativa é o bastante para associar o enredo a um conteúdo erótico.

É possível que parte do público tenha visto inicialmente o filme e só então, procurado a novela gráfica, devido, inclusive, ao apelo midiático de um em detrimento do outro. Fato é que, diferentemente do apontado pela crítica fílmica, no livro o lirismo da história de amor se sobrepõe ao erotismo, além de tentar ressignificar modelos heteronormativos de narrativas ao problematizar questões familiares e políticas da vivência lésbica contemporânea, ao passo que o filme atende a uma demanda de mercado e a um nicho do cinema francês: o erotismo.

O diário de Clèmentine é o fio que entrelaça toda a narrativa, ele une os planos temporais presente e passado. No início da narrativa, Emma se dirige à casa de Clèmentine para realizar seu último desejo: a leitura de suas memórias. É por meio do diário que a protagonista narra, desde os quinze anos, a descoberta do amor e do desejo por Emma. A leitura do diário funciona como um recurso diegético que direciona as ações de Emma e, a partir da leitura de Emma, o leitor de Azul é a cor mais quente é conduzido por uma sobreposição de cenas narrativas: no presente, Emma acessa as memórias de sua ex-companheira, que, trazidas pelo diário, conduzem o desenvolvimento do enredo culminando circularmente no presente, rompendo, portanto, a linearidade tradicional.

(MAROH, 2013, p.8)

A narração prossegue simultaneamente ao acesso de Emma ao diário, até então, sob os cuidados da mãe de Clèmentine. É neste ponto que a cor azul surge como potente chave de análise da narrativa:

(MAROH, 2013, p.9) A evocação de diversas tonalidades de azul no texto permite múltiplas perspectivas de leitura. Partindo do paradoxo entre o calor evocado pelo título e uma cor reconhecidamente fria92, percebe-se a rasura que a autora pretende realizar por meio do símbolo. Na narrativa, todos os eventos importantes: o diário, presente de aniversário de 15 anos, a camiseta do garoto da escola, os cabelos e os olhos e as sensações de desejo pela então desconhecida vista na rua, são destacados nas imagens através dos tons de azul.

(MAROH, 2013, p.10-15)

(MAROH, 2013, p.15)

92 Ao separar “cores quentes e frias no círculo cromático definimos os azuis e verdes enquanto frias e os laranjas e vermelhos como quentes. Nossas referências neste caso são as sensações experimentadas na nossa vivência com a natureza. A similaridade com o mundo natural onde água e ar são relacionados com o esfriamento e o fogo e o sol com o aquecimento, são conceitos universais. (...)” Sensações relacionadas à temperatura e à distância também podem variar, aparentando as cores frias como mais distantes e as quentes, mais próximas (LOTUFO, 2010, s.n.).

(MAROH, 2013, p.19-20)

O destaque da cor, portanto, tem interpretações diversas. Partindo da ligação entre o azul (bleu na cultura francesa, blue em culturas anglófonas) com a melancolia, essa lembrança seria “aquecida” pelas reminiscências evocadas pelo diário, e, além disso, num primeiro plano, seu uso poderia estar relacionado à divisão heteronormativa das cores por gênero, sendo azul, na maioria das culturas ocidentais, uma cor ligada à masculinidade. Ao narrar a relação entre duas mulheres com símbolos importantes destacados em tons de azul, Maroh subverte a tradicional associação do azul ao masculino, colocando-a no diário, na pintura dos cabelos, nas roupas; signos culturalmente ligados à “feminilidade”. Assim, a autora, através de símbolos sutis, mas muito fortes na narrativa, começa a subverter a tradição, aplicando a cor aos símbolos femininos, mas também em destaque na camiseta de Thomas.

Atribuir gêneros sexuais às cores serve para manter a separação heteronormativa visível o suficiente, de modo que estabeleça uma matriz de inteligibilidade binária. Isso determina socialmente, desde o nascimento, a que gênero e a que papel sexual o indivíduo deve obedecer. A partir da subversão deste signo, Maroh rasura a questão de temperatura da teoria cromática e os padrões sociais que gendram cores e dividem binariamente as pessoas. A leitura deste tom presente nos momentos importantes de Clèmentine não se resume a estes dois pontos: sendo Maroh uma ativista da luta pelos direitos homossexuais, cabe também a análise do azul em relação ao símbolo internacional do movimento gay. Na bandeira criada em 1978 por Gilbert Baker para a San Francisco Gay and Lesbian Parade, as cores, na forma de um arco-íris representam aspectos diferentes da vida homossexual:

rosa, para o sexo; vermelho, para o fogo; laranja, para a cura;amarelo, para o Sol; verde, para a natureza; azul turquesa, para a arte; azul índigo, para a harmonia; violeta, para o espírito. (...) Reconhecido pelo International Congress of Flag Makers, o arco-íris voltaria às oito cores originais em 2003; já então representava os homossexuais praticamente no mundo todo.

(TEIXEIRA, 2010, p.72)

(MAROH, 2013, p.134)

Assim, dada a ligação da personagem Emma com as Artes (estudante do quarto ano de Belas Artes, no início da narrativa) e sua ligação com os movimentos em prol dos direitos homossexuais, a importância do azul pode ser lida também por esta ótica. Não obstante, a importância do azul na cultura popular francesa, relacionado às cores tradicionais de Paris e à Queda da Bastilha, quando o branco representava o clero, o vermelho a nobreza e o azul, a burguesia. Além disso, na Revolução Francesa a cor foi usada em associação aos três elementos do lema revolucionário, sendo o azul o símbolo da liberdade (GUERREIRO, 2002, p.201). Assim, utilizar uma cor tradicional para a cultura francesa num romance lésbico perpassado por questões da política conservadora em ascensão na França93 significa também posicionar-se em resistência e luta por visibilidade, uma vez que é flagrante o alijamento da participação das mulheres na maioria dos projetos de nação. Assim o foi nos processos colonizatórios do hemisfério sul e nos países europeus, como a França de Olympe de Gouge, que atribuiu às mulheres “a vocação no matrimônio e a felicidade individual [que] só poderia ser alcançada mediante a firme separação entre as esferas masculina e feminina”

(HOLLANDA, 1994 p.103), distanciando assim a vivência feminina das decisões políticas da nação. Além de todos estes símbolos e da importância deles no enredo, é importante destacar que o azul vai, ao longo da narrativa e do amadurecimento da relação entre as duas, desaparecendo dos cabelos de Emma, ao passo que a felicidade conjugal entre ambas também fenece.

E, ainda em relação à cor, note-se o recurso de Maroh em relação aos tempos narrados.

Nas páginas da adolescência de Clèm predominam tons em preto, branco e sépia, em uma

93 A novela se passa entre o fim da década de 1990 e a segunda década do século XXI, período em que uma política conservadora impactou a luta por direitos homossexuais na França (BARROS, 2011, s.p.).

àlusão às lembranças evocadas na leitura do diário. No duro amadurecimento de Clèm, posterior à sua expulsão pela família predominam os tons ocres e lilases sombreados e taciturnos, bem como o verde hospitalar, utilizado em seus últimos momentos em vida.

Assim, na novela gráfica verifica-se a noção da passagem temporal também por meio das tonalidades empregadas. Tal hibridismo textual e imagético das novelas gráficas exigem uma leitura hábil, ou ainda,

os quadrinhos possuem a capacidade de produzir significados por meio da organização temporal e espacial de elementos que a mente é capaz de estabelecer, ou seja, a leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e esforço intelectual que faz com que o leitor exercite suas competências de interpretação visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutualmente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. (EISNER, 2010, p.71)

Dessa forma, as cores, além dos múltiplos significados evocados desde o título, também formam, junto ao texto, a noção temporal da narrativa, fornecendo ao leitor a percepção imagética de passagem de tempo de acordo com os cenários, os tons predominantes, além, é claro, dos desenhos e escritos do livro.