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O período entre 1964 e 1985, que compreende a Ditadura Militar e o maior número de publicações de Cassandra Rios, foi marcado por contradições como a onda editorial de livros eróticos em meio à intensa censura destas (e de outras) manifestações artísticas. A polêmica envolvendo uma mulher que escrevia sobre personagens lésbicas em cenas eróticas e, às vezes, com final feliz, repercutiu de diversas formas sobre a vida e obra da autora. Neste contraditório período, sob a vigência de decretos como o n.º 1077/70 e o AI-5, a ditadura militar decretou a proibição de temas homossexuais em livros e buscou desmoralizar e invisibilizar autores que desafiassem as ordens estabelecidas. Segundo Cassandra, em Mezzamaro, Flores e Cassis :

Até bofetada de delegado, na cara, levei. (...) Já não estava eu proibida? Hoje entendo. Ruminavam que eu precisava ser algemada, amordaçada, enxovalhada de todas as humilhações, desacreditada na minha conduta moral, para denegrirem meu talento (...) Verdade que, na época, assim diziam, só eu vendia! O público consumidor via, só nas páginas dos meus livros, gente com as quais hoje cruzam nas ruas, livres, sem ter que disfarçar e pagar pelo que nasceram. (RIOS, 2000, p. 364)

Em outro ponto a autora comenta a proibição de uma obra, cuja protagonista é uma escritora e a dedicatória é “aos entendidos”:

“Um outro delegado picou diante dos meus olhos Nicoleta Ninfeta e ameaçou ‘é isso que vamos fazer com todos os seus livros e queimá-los em praça pública’ (...) Seria eu a reencarnação de Safo, a grande poetisa de Lesbos, cujas obras o Papa Gregório VII, cheio de ódio mandou queimar (...) numa fogueira, em praça pública, epitalâmios, himeneus, poesias, excomungando a mais célebre poetisa do mundo”. (RIOS, 2000, p. 360.)

Entende-se com isso que, mais que a proibição do conteúdo sexual na literatura de Rios, o grande problema era a divulgação, de forma massiva, de estilos de vida contrários às ideias conservadoras. A enunciação do amor entre mulheres parece ter sido a maior afronta aos perseguidores de Cassandra, uma vez que sob pseudônimos ou em enredos que igualmente continham cenas de sexo heterossexual, a censura era menor49. Entretanto, quando a autora retomava o tema da vivência lésbica, havia pouca ou nenhuma condescedência. Pois, para o pensamento da época, os gays deveriam estar confinados aos seus territórios, escondendo sua subjetividade e mantendo-se sob a visão estereotipada; já o material artístico e literário tinha grande alcance, consequentemente, propagava ideias perigosas ao grande público (PIOVEZAN, 2005, p.76).

Seguindo o destino de seu pseudônimo50, Cassandra sofre repressão e censura pela ditadura e incompreensão dos movimentos intelectuais e críticos da esquerda engajada. Seu projeto de representação de personagens lésbicas era visto como atentatório ao pudor e desengajado, num tempo em que movimentos políticos de esquerda pouco consideravam os feminismos ou direitos homossexuais (MÍCCOLIS; DANIEL, 1983, p.25, 52-9, 66-7).

Rios, apesar das acusações de alienação por estes setores, aponta em suas obras a

“tortura moral” sofrida por personagens desobedientes aos códigos morais de comportamento (FACCO; LIMA, 2004, p.7); ou ainda, para Santos: “a elite literária foi incapaz de compreender a maneira explícita de resistência camuflada de Cassandra e não a brindou com crítica ou valor literário” (2003, p.21). A mágoa por estas incompreensões está registrada em autobiografias da escritora, em alusões ao apagamento de seu nome do “manifesto dos 1046 intelectuais brasileiros contra a censura” (RIOS, 2000, p.273). Assim, entre a repressão moralista militar e a acusação de alienada, feitas também a outras artistas, como Clarice Lispector e Elis Regina, retratadas satiricamente pelo cartunista Henfil (ACSELRAD;

ALEXANDRE, 2012 p.235), percebe-se que, socialmente, houve elementos culturais capazes de unir conservadores e progressistas, opressores e oprimidos: a misoginia, a homofobia e a lesbofobia.

Além disso, ao falar de crítica à literatura erótica escrita por mulheres (de temática lésbica ou não), convém considerar a imaginação moral da época. Entenda-se aqui este

49 Sob pseudônimos masculinos como Clarence Rivier e Oliver Rivers, Cassandra fez enredos tão eróticos quanto os outros, substituindo as lésbicas por casais heterossexuais, e que passaram incólumes pela censura (MORAES; LAPEIZ, 1984, P.128).

50 Recorrendo à mitologia Grega, a autora adota o pseudônimo de Cassandra, filha de Príamo e Hécuba encontrada rodeada por serpentes que, ao lamberem seus ouvidos, lhe dão o dom da escuta sutil e profética. A jovem torna-se devota de Apolo, que, em seu templo, tenta estuprá-la. Diante da recusa da moça, a divindade lhe roga a praga de ser eternamente desacreditada e incompreendida em suas profecias. Dados que se unem à biografia e às obras de Rios (VIEIRA, 2010, p.91).

conceito como parte do imaginário popular de um tempo, relacionado ao que se considera moral ou imoral (MORAES, 2006, p.24-5). A sexualidade, os corpos e seus usos estão fortemente ligados à moralidade na sociedade brasileira. No que tange à mulher, a ética, a honestidade e o caráter importam menos que o comportamento sexual. Diz-se da mulher honesta aquela cuja conduta erótica está dentro dos ditames considerados corretos, assim, à época da obra de Cassandra, uma mulher boa deveria ser recatada, pudica e sobretudo, heterossexual.

Durante a ditadura militar no Brasil as transformações nos costumes iam fortemente de encontro ao projeto conservador, ao contrário do que se via internacionalmente (MARCELINO, 2006, p.18). Dentre elas, uma ambígua proibição da literatura pornográfica e erótica estava entre as principais medidas, com ações similares às leis norte-americanas de décadas anteriores sobre material obsceno (RUBIN, 2003, p.1). Se no Brasil eram proibidas as manifestações artísticas de cunho pornográfico, na Europa havia a transição para a pornografia como transformação ideológica. Maio de 1968 constituiu-se como marco para o desenvolvimento desta indústria com a liberação sexual (MURARO, 1970, p.74), o pensamento conservador europeu da época se opôs ao sentir o potencial transgressor da pornografia, mas não conseguiu detê-lo. Mesmo após a posterior virada conservadora com o fracasso de maio de 1968, a pornografia assumiu o estatuto de “uma das formas de violência capazes de minar a sociedade” que se instituía sob um forte moralismo (MAINGUENEAU, 2010, p.97).

O erótico/pornográfico nacional sempre esteve intrinsecamente voltado ao público masculino, sendo as mulheres apenas objetos retratados. Quando a geração de 1970 e 80 se levanta em enunciações muito vinculadas às ideias feministas sobre a importância do erótico para as mulheres, muitas se apropriam desta temática. Essas vozes eróticas retomam ecos e os reverberam, ainda que nem sempre nomeando suas origens. É neste lugar fronteiriço da escrita erótica de autoria feminina, entre o eco e o silenciado, que ressoa a escrita de Cassandra Rios.

Assim como Clarice Lispector, Cassandra não se autodeclarava feminista51, mas o posicionamento presente em suas obras engloba os questionamentos da ordem falogocêntrica,

51 Para Heloísa Buarque de Hollanda, em fala sobre Ana Cristina César e Clarice Lispector na FLIP 2016, ainda hoje há espanto acadêmico ao atrelar as obras destas autoras ao feminismo. Ainda que ambas, bem como Cassandra, não tenham se denominado feministas, seus escritos sobre a liberdade da mulher com seu corpo e em relação aos papeis sociais de gênero, podem facilmente ser lidas nesta perspectiva. Heloísa afirma ainda que muitas escritoras discordavam do movimento feminista brasileiro à época, devido ao engajamento incipiente em temas como liberdades sexuais e aborto. Isso se dava pela necessidade de unir forças com outros movimentos,

heteronormativa e a necessidade de garantir um local de equidade social e visibilidade real e positiva para as lésbicas. Ainda que, historicamente, nem todas vertentes feministas tenham reconhecido a legitimidade do movimento de lésbicas, colocando suas pautas em segundo plano ou mesmo, considerando-as um entrave para a visibilidade do movimento, os caminhos dos feminismos e dos diversos seguimentos lésbicos encontram-se enlaçados, ou ainda, nas palavras de Tânia Navarro Swaim e Adrienne Rich, respectivamente:

Na disseminação da identidade, lesbianismo e feminismo não se encontram em pólos opostos ou em termos de positivo/negativo, pois as posições de sujeito pontuais e locais serão palco de configurações identitárias na criação de estratégias de dissolução e resistência à violência da norma. (1999; p.120) Qualquer teoria ou criação cultural/política que trate a existência lésbica como um fenômeno marginal ou menos “natural”, como mera “preferência sexual”, como uma imagem espelhada de uma relação heterossexual ou de uma relação homossexual masculina seria, portanto, profundamente frágil(...) A teoria feminista não pode mais afirmar ou meramente declarar uma tolerância ao “lesbianismo” como um “estilo de vida alternativo”, ou fazer alusão às lésbicas. Uma crítica feminista da orientação compulsoriamente heterossexual das mulheres já está longamente atrasada.

(2010, p.22)

Desse modo, a obra de Cassandra Rios tem sido revisitada pela crítica feminista e pelos Estudos de Gênero, no sentido de resgatar escritoras soterradas por uma história falocentrada e com o objetivo de pautar discussões sobre novas formas relacionais e de resistência por meio do discurso literário. Nesse mesmo sentido, se percebe que

(...) o texto/discurso produzido por Rios não é, de nenhuma forma, uma zona

‘neutra’ entre o discurso do “Pai” e o seu (de mulher, lésbica, latina, escritora sob um regime de ditadura militar). Portanto, a língua/texto criado pela escritora lésbica para falar o proibido é, além de transgressor e questionador, anticanônico e de resistência. Ao unir esses elementos, a autora faz da língua um locus disruptível e volátil que transgride, “perturba”

e põe em cheque a lógica e a legitimidade do discurso falocrático.

(SANTOS, 2003, p.7)

Percebe-se, portanto, a não neutralidade do discurso cassandriano e a elaboração do projeto literário com o objetivo de desestruturar locais estabelecidos socialmente num período de rígidos costumes. Vale mencionar a forte produção nacional da “cultura de protesto”

restrita às universidades, neste período. O espaço fechado da intelectualidade e o crescimento de nichos da cultura de massa fomentados pelo governo militar proporcionou ao país uma indústria cultural de baixa qualidade, sobretudo aquela voltada às massas, assim, com uma programação televisiva vazia, os militares amorteciam a consciência popular e mantinham fora do foco as discussões políticas (FACCO;LIMA 2004, p.5). Entre a produção como a Teologia da Libertação. Tal conchavo teria “eufemizado” as lutas feministas, tornando-se pouco atraente para que muitas artistas à frente de seu tempo se enunciassem feministas (HOLLANDA, 2016).

intelectualizada que circulava nas universidades e a cultura de massa esvaziada, estavam os livros de Cassandra Rios.

Farejando toda sorte de produção artística, de resistência ou não, realizada no período, estavam os obscuros critérios de censura de obras “pornográficas”, “licenciosas” e/ou

“atentatórias à moral”. Estima-se que mais de 226.000 exemplares foram apreendidos em autuações que ocorriam geralmente em feiras de livros e comércios populares (LONDERO, 2015, p.6). Entre 1964 e 1984, cerca de 30% dos livros censurados eram vetados por

“atentado à moral e aos bons costumes”. O “homossexualismo” era assunto proibido por representar prática erótica “subversiva” ao regime e, sequer era preciso que o livro tivesse cenas de sexo, bastava a enunciação do amor entre duas mulheres para entrar neste critério.

Isto deriva do pensamento conservador que atrela a conduta homoafetiva à práticas transgressivas de sexo. Até hoje, muito da literatura homoafetiva ainda é classificada como erótica ou pornográfica, sem que no enredo constem sequências narrativas de atos sexuais (FACCO, 2003, p.73).

Apesar das inúmeras apreensões e provavelmente, por este mesmo motivo, os livros considerados pornográficos tiveram seus exemplares editados e impressos ilegalmente e sua obtenção atrelada à subversão, reiterando a clandestinidade do passado da literatura pornográfica52. O estigma da pornografia concedeu às obras de Cassandra Rios um “sublocal”

dento da cultura literária brasileira. Embora defendida por autores reconhecidos como Jorge Amado (“Cassandra, querida, pior que a censura é a auto-censura”), Érico Veríssimo (“Não pare, Cassandra, é assim mesmo, ossos do ofício, você é muito corajosa, como uma escritora de fato!”), Plínio Marcos, José Mauro de Vasconcelos e Dias Gomes (“Dias Gomes, que já mexeu comigo, criando uma escritora perseguida e proibida num episódio do seriado O bem amado, a Alessandra Mares”) pela qualidade de seus textos, a pecha da clandestinidade não permitia o acesso destas obras ao alto cânone da literatura como seus contemporâneos Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan, por exemplo (VIEIRA, 2010, p.111).

É importante considerar que a querela entre as obras cassandrianas e a censura não se circunscreve à pornografia, mas sim, a algo mais profundo e imiscuído na cultura nacional: o tabu da mulher que enuncia o sexo e o interdito do homoerotismo lésbico alheio ao fetiche

52 O auxílio tipográfico e de impressão foi importante para preservar muitas obras do banimento e da censura.

Intrinsecamente subversiva, a literatura pornográfica sempre foi alvo de repressões dos aparelhos de Estado. Os motivos da censura variam de acordo com a sociedade, o tempo e os costumes. No século XVI, na Europa, a religião censurava ofensas aos dogmas da igreja, nos séculos XVII e XVIII, o foco eram redes que arquitetavam a Revolução Francesa. No século XIX, a ascensão dos códigos de conduta burgueses e o controle dos costumes, fortaleceram a censura pornografia, porém, inicia-se o uso de novos suportes para as narrativas eróticas/pornográficas como a fotografia (cf. MAINGUENEAU, 2010, p.92).

masculino. Esse silêncio relacionado à vivência das lésbicas reforça a ideia de ocultação, uma vez que "quanto mais amplo e variado for o acesso do indivíduo a uma variedade de discurso (e de sujeitos) maior será sua mobilidade e sua capacidade de apoderar-se da palavra”

(PORTINARI, 1989, p.104). Portanto, quando Cassandra enuncia essas relações abertamente, ela não apenas fomenta o entretenimento e a visibilidade, como mostra possibilidades de novos modelos relacionais, com os quais se podem estabelecer identificação e compreensão.

No entanto, neste mesmo contexto, as instâncias religiosas (a homossexualidade como pecado), científicas (a homossexualidade como doença), governamentais (a homossexualidade como desordem social) fornecem embasamento para que regimes ditatoriais eliminem os registros que desagradam ideais tradicionalistas, com isso, a censura restringe o acesso à leitura de obras com personagens que desviem da heteronormatividade. A pecha de “pornográfica”, portanto, não se limita à censura prévia ou de publicação, mas à distribuição e venda dos livros. Se nas livrarias renomadas constavam escritores com textos classificáveis como pornográficos, como A Via Crucis do Corpo, de Clarice Lispector, os livros de Cassandra Rios eram comercializados em locais bem menos distintos (CALDAS, 2000, p.157-8). Assim, rotular produções como “pornográficas”, dentro da semântica militar, não só as reunia em subespaços, como relegava à restrição de público. Ao delimitar sua distribuição como produto subversivo, o Estado dificultou o acesso às ideias de democracia e respeitos aos direitos individuais num plano mais profundo que subjaz ao texto. Esse espaço marginal, longe dos considerados “grandes autores”, fomentava a ideia de uma escrita inferior, indigna de análises e reconhecimento, e, ao mesmo tempo, estar fora do estatuto dos grandes nomes da literatura fazia com que leitores não familiarizados com o cânone a lessem e, assim, entrassem em contato com suas ideias. Contudo, é preciso considerar pontos que demarcam algumas obras com estigmas de subliteratura, sobretudo quando se fala de literatura pornográfica ou erótica: ao transferir o julgamento do valor literário para a esfera criminal, retira-se a possibilidade de interpretações variadas, e, desmerecendo o valor literário se reduz a obra ao extrato sexual, que não corresponde ao todo nas obras cassandrianas. Em um contexto mais geral sobre livros com temática sexual,

(...) a questão da proibição indica ainda outras polaridades, que apontam para uma noção anacrônica de literariedade. Nega-se o estatuto literário a uma obra que trate das sexualidades de um modo que jamais se empregou para desqualificar obra diversa que se ocupe de questões menos polêmicas. Pode-se, com efeito, depreciar este ou aquele livro, mas quando a obra em exame trata de sexo fora dos cânones autorizados para sua expressão, negar-lhe estatuto específico é sempre a estratégia mais à mão e mais rapidamente sacada pelos poderes censórios em qualquer tempo. (SILVA, 1989, p.156)

Bem como Woolf (1991, p.96) afirma que os temas tratados por mulheres são considerados pelo cânone falocêntrico em geral, como inferiores à literatura, quando se trata desta escrita sobre sexo lésbico sobrepõem-se camadas de interditos. Sobretudo considerando-se o contexto de produção de Cassandra Rios, a enunciação do deconsiderando-sejo feminino era um tema tabu. Esse desejo, quando heterossexual, mesmo que gradualmente emergindo na literatura, ainda estava sob véus finos; porém o desejo lésbico encontrava-se sobre fundo veludo grosso, descrito por meio de metáforas resguardadas apenas às entendidas.

Assim, para o cânone da época, a escrita de Cassandra, perpassada por interditos e sob censura policial, estava (como permaneceu por muito tempo) condenada ao silêncio. Outro aspecto a ser apontado é a diferenciação entre literatura erótica e/ou pornográfica na cultura, esta última consolidada no sentido de proibição. O erótico estaria ligado aos eufemismos, como efeito acessório ao texto, ao passo que o pornográfico seria a transgressão à ordem do interdito do sexo, com a intenção primeira de expor o que não deve ser exposto. Um texto voltado para os sentidos, cuja intenção é, materialmente, o gozo (MAINGUENEAU, 2010, p.94). Esta divisão é muitas vezes impossível. O próprio conceito de erótico ou pornográfico se sustenta por meio de interpretações ambíguas e a obscenidade, comum e necessária aos dois tipos, tem sua origem etimológica incerta. A palavra “obscena”, modificação do vocábulo latino scena, designaria o que deveria ficar alheio ao palco, ou seja, “fora da cena”, logo, a linguagem obscena, estofo do escrito pornográfico e do erótico, já convidaria tais categorias para uma espécie de “cantinho escuro” (ARANGO, 1991, p.158). Se a linguagem obscena está atrelada ao erotismo e à pornografia, como classificá-los separadamente? De acordo com Maingueneau, o erótico recebe classificações privilegiadas em relação ao pornográfico em termos discursivos e de aceitação social, por ser “um modo de representação da sexualidade compatível, dentro de certos limites, com os valores reivindicados pela sociedade. (...) Esse já não é o caso da pornografia, que não mascara suas tendências sexuais agressivas.” (2010, p.32).

Considere-se também a relação entre linguagem obscena e classes populares, sobretudo, em nichos masculinos como botequins, quarteis e outros espaços sociais predominantemente frequentados por homens (MAINGUENEAU, 2010, p.27), e é importante lembrar quão historicamente recente é a posição das mulheres como agentes da enunciação erótica/pornográfica. Após séculos de opressão de sua sexualidade, sobretudo das lésbicas, faz-se importante a enunciação deste aspecto de suas vidas. Contemporaneamente à escrita de Cassandra Rios, mas em contexto norte-americano, a escritora e ativista feminista lésbica

Audre Lorde, no livro Sister outsider: essays and speeches, publicado em 1984, pensa o erótico entre mulheres como potência criativa contra um sistema que as enfraquece e diminui:

(...) essa carga erótica não é facilmente compartilhada por mulheres que continuam a operar sob uma tradição exclusivamente masculina europeia-americana. Eu sei que ela não estava disponível para mim quando eu tentava adaptar minha consciência a esse modo de vida e sensação. Somente agora, eu acho mais e mais mulheres identificadas com mulheres corajosas o bastante para arriscar compartilhar a carga elétrica do erótico sem ter que desviar os olhos, e sem distorcer a natureza enormemente poderosa e criativa dessa troca. Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia para alcançar mudança genuína dentro de nosso mundo, ao invés de meramente acomodação a uma mudança de personagens no mesmo teatro tedioso. (LORDE, 1997, p.279 tradução minha)

Portanto, nota-se que a pornografia parte de um locus discursivo da transgressão e é necessário considerar a investida de uma ideologia que relaciona o erotismo ao alto corporal, digno de valorização e o pornográfico, como gênero menor, ligado ao baixo corporal, logo, indigno de valorização enquanto literatura. Uma possível chave de leitura que transcende esta divisão, seria a análise de cada texto de acordo com sua ordem e critérios de qualidade específicos. Assim, como afirma Maingueneau: “Há um “belo” pornográfico e um “feio”

erótico (...) com isso entendemos que pode haver uma adequação mais ou menos bem-sucedida entre o texto e a finalidade à qual sua subsistência está submetida” (2010, p.33). Tal hierarquia ainda hoje delimita os espaços que livros e autores ocupam no cânone literário. Em tempos de moral vigente conservadora textos pornográficos tendem a sofrer repressões do Estado por desvirtuarem seus leitores53. Deste modo pode-se classificar o conjunto da obra de Cassandra Rios como simultaneamente erótica e pornográfica, pois seus textos trazem elementos de ambas categorias e atendem tanto ao eufemismo erótico, quanto ao objetivo pornográfico: a busca do gozo através de sequências narrativas em progressão descritiva.

Quanto à literatura pornográfica e à demanda do público há algumas peculiaridades: se

Quanto à literatura pornográfica e à demanda do público há algumas peculiaridades: se