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2 OLHARES SOBRE O SUJEITO QUE FAZ A ESCOLHA: O ADOLESCENTE OU

2.1 T EORIZAÇÕES E DEFINIÇÕES DA ADOLESCÊNCIA

2.1.2 A leitura psicanalítica da adolescência

2.1.2.3 Adolescência: a reedição necessária

Que o Real da puberdade invade o corpo do sujeito e dá início à adolescência, isso já está claro. O que precisa, agora, aos olhos da psicanálise ser esclarecido é a reedição do Espelho que o sujeito precisa fazer. É nesta reedição que reside a possibilidade de superar, revalidar as situações vividas na infância sob forma de imposição, ou seja, que eram operadas pelas figuras parentais. Segundo Backes (2004), é preciso que o adolescente faça uma reconstituição. Contudo, para reconstituir algo é preciso saber como algo era, como algo aconteceu. O que aconteceu? O Estádio do Espelho.

O Estádio do Espelho, proposto por Lacan (1998) em seu retorno a Freud, é a primeira experiência de singularização e identificação pela qual passa a criança em estado de infans através de uma operação simbólica que dirige o infans, por antecipação, ao discurso idealizado dos pais sobre a própria criança. É nesta experiência que a criança vivencia a sua relação com o outro (o semelhante diferente) que não corresponde a ela – enquanto apropria- se de seu corpo e esboça sua primeira imagem de eu, é inaugurada no social pela diferenciação eu-outro.

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Este nome reflete uma singela homenagem, mas também uma pequena paródia ao livro “Adolescência: a crise necessária”, de Stéphane Clerget (2004). Este autor, bem como outros mais da psicanálise, consideram a adolescência como a vivência de uma crise; entretanto, ela pode ser de crise, como também pode não ser de crise aos sujeitos que a vivem, ou seja, a adolescência não necessariamente é uma crise. Do contrário, a reedição é necessária, porque é preciso editar o corpo infantil, para a psicanálise, e dar conta das novidades deste corpo adolescente que irrompe através do Real da puberdade. A reedição se faz necessária por justamente se falar de subjetividade e processo constitutivo, ou seja, algo que denota a constante [re]edição de si.

Embora a terminologia dê margem ao espelho físico, Lacan (1998) relata tal experiência referenciada à função materna, que está na condição de espelho para a criança. Essa experiência identificatória acontece em três momentos (ou: possui três períodos), nas palavras de Dor (2003, p. 79): “A experiência da criança na fase do espelho organiza-se em torno de três tempos fundamentais, que pontuam a conquista progressiva da imagem de seu corpo.”

O primeiro tempo consiste na alienação da criança diante do espelho: ela não reconhece nem a si nem ao outro. Aquele que está no espelho lhe parece um semelhante, pois a criança ainda não se reconhece ali – é alguém (a quem procura) (LACAN, 1998; DOR, 2003). É, portanto, um momento de “confusão primeira entre si e o outro.” (idem, idem).

A indiferença que a criança possui nesse primeiro tempo dá lugar ao segundo tempo como uma etapa decisiva do processo identificatório: a imagem passa a ser virtual, ou seja, ela não representa a realidade. A criança da imagem não pode ser tocada, pois está presa no espelho; em outras palavras, o outro existe, mas não está ali ao alcance da mão. A partir deste tempo, a criança passa a distinguir a imagem do outro refletida no espelho e sua existência física, o que pode ser percebido quando a criança alterna seu olhar entre a imagem refletida no espelho e o Outro materno, o espelho do espelho, na busca de confirmar a imagem virtual que a orienta (LACAN, 1998).

É a partir da alternância do olhar entre o espelho real e a mãe (espelho imaginário) que a criança, ao pedir a confirmação de que aquela imagem é da “mãe”, percebe que a criança que vê no espelho é ela, é a sua própria imagem refletida – esse reconhecimento da criança dá sentido à transformação pela qual passa no Estádio do Espelho: o corpo esfacelado, pertencente ao Outro, torna-se uno, faz-se unidade corporal da qual se apropria a criança. O corpo mergulhado no imaginário é costurado e delimitado pelo simbólico. A partir da experiência especular que o sujeito constitui sua primeira imagem de eu e sua primeira imagem corporal25.

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De acordo com ROUDINESCO & PLON (1998, p. 370), o termo imagem corporal ou imagem do corpo foi “[...] cunhado por Paul Schilder em 1923 e inspirado na noção de esquema corporal, proposta em 1911 pelo neurologista inglês Henry Haed (1861-1940). Paul Schilder empregou esse termo para designar uma representação ao mesmo tempo consciente e inconsciente da posição do corpo no espaço, considerado sob três aspectos: o de um suporte fisiológico, o de uma estrutura libidinal e o de uma significação social.

Sem se referir a Schilder, Françoise Dolto retomou o termo em 1984, numa perspectiva lacaniana, para designar ‘a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante’, ou seja, uma representação inconsciente do corpo, distinta do esquema corporal, que seria sua representação consciente ou pré-consciente.” É desta representação inconsciente do corpo que se fala no texto.

Em resumo: o Estádio do Espelho indica três tempos da constituição imagética do sujeito e da diferenciação eu-outro. No 1º tempo, há o assujeitamento da criança ao registro imaginário; no 2º, há a etapa decisiva do processo identificatório – o outro do espelho é uma imagem; e, no 3º, a imagem do espelho é a própria imagem da criança. Todos estes tempos são perpassados pela presença do Outro primordial, que fala deste pequeno sujeito. Na adolescência, toda esta experiência especular será reconstituída (BACKES, 2004).

Segundo Backes (2004, p. 32-33),

a idéia do estádio do espelho é colocar em relevo uma das funções da imagem que é a de estabelecer a relação do organismo com sua realidade, estabelecer a relação do mundo interno (Innenwelt) com o meio circundante (Umwelt). [...] função preenchida pela Mãe primordial: fazer, para o seu pequeno bebê, a ligação entre ele e o mundo [...].

O estádio do espelho pode ser tomado, então, como a passagem do eu especular para o eu social. [...] O sujeito, em sua constituição via imagem, articula, simultaneamente, a referência ao outro do espelho que lhe oferece a imagem especular com a referência ao Outro, lugar das identificações simbólicas possíveis. Ao mesmo tempo, na adolescência, o outro familiar passa a ser interrogado na sua capacidade de fazer a mediação desta passagem.

Ou seja, a experiência do espelho coloca em questão a inauguração do eu, do espelho, no social, constituindo um eu social. Do mesmo modo é o que acontece na adolescência: a passagem da família para o laço social, uma vez que esta primeira, através das figuras parentais, perde sua referência. Não são e nem significam mais o que eram e significaram para a criança de outrora. Desta forma, as referências do adolescente são deslocadas do campo privado (família) para o campo público (laço social). De acordo com Lerude (2009b, p. 26),

Neste momento de mutação subjetiva que constitui o processo da adolescência, as figuras que tinham até então ocupado o Outro tornaram-se inoperantes e inadequadas. O Outro se encontra de alguma forma esvaziado não somente de suas representações, mas também dos significantes (representações da representação) que o habitavam.

Ou seja, o Outro é esvaziado e o adolescente precisará preenchê-lo a partir dos referentes sociais, o que a psicanálise denomina Outro social. É preciso rearticular esses significantes que ocuparam o lugar de mestre (S1) – e este é o momento (LERUDE, 2009b).

Segundo Backes (2004, p. 37), embasada nas pontuações feitas por Rassial, a passagem adolescente se assenta sobre o caos que o real da puberdade instaura, um “momento

lógico de uma operação simbólica: ‘desfazimento’ do corpo infantil e assunção do corpo adulto.”, exigindo uma nova imagem em meio ao processo de luto ao corpo da infância que não lhe pertence mais. O ego, então, deverá encarregar-se da reapropriação do corpo que cresce desenfreadamente. Essa passagem adolescente implica a reorganização das instâncias do real (que irrompe no corpo), do imaginário (através da imagem sustentada pelo espelho) e do simbólico (através da inserção do sujeito em uma via discursiva), pela “reiteração da função paterna, da metáfora paterna.” (Backes, 2004, p. 37), que, na interdição edípica, coloca na adolescência a possibilidade de um “futuro promissor, realizador, de encontro com uma totalidade mítica porque nunca de fato constituída” (Backes, 2004 p. 39); um futuro promissor em relação a esta promessa edípica feita pelos pais e que marca o encontro não com o desejo, mas com o engodo.

Toda esta problemática edípica e especular reforçam a questão da imagem, colocam em pauta a reconstrução do corpo que se torna central na adolescência: um corpo que precisa ser construído e moldado com novos significantes que vêm do social, a partir daquilo que lhe restou do corpo da infância. Esse momento constitutivo no qual prescinde a ressignificação, pressupõe, como já abordado, a troca dos referenciais: do Outro materno ao Outro social, o que implica dizer que “o olhar e a voz maternos que lhe davam sustentação no estádio do espelho, vão agora ser a voz e o olhar do semelhante do Outro sexo, novas identificações devem se processar.” (Backes, 2004, p. 39).

É através das novas identificações, dos processos identificatórios, que o adolescente coloca em questão o Outro especular que, na infância, lhe deu a identidade imaginária. Identidade imaginária que, segundo Backes (2004, p. 40) se dá “a partir da ‘invenção de um lugar: passagem do familiar ao social, da afirmação de si, do falar em nome próprio, numa reelaboração do espelho e uma nova simbolização dos traços que o espelho ofereceu.” e que permite novas identificações com os semelhantes do social, especialmente por aquilo que se designa como o Outro sexo.

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