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Tem sido observado que o modelo convencional de família aquele constituído pela figura paterna e materna e os filhos, unidos pelo casamento, vem sendo substituído por outras configurações. Esse novo padrão de família se caracteriza, sobretudo, pelo vínculo afetivo e não mais unicamente pela via do matrimônio, além disso, observa-se um processo de democratização das relações de poder entre os pais e filhos, ou seja, uma redução das estruturas hierárquicas e do autoritarismo tão presentes no modelo hegemônico anterior.

No entanto, cumpre ressaltar que o trabalho não afirma que antes não existia afeto no vínculo construído entre as famílias, o que se está afirmando aqui é como o ordenamento jurídico entende e concebe a família, no padrão anterior e no que está em processo de consolidação hoje. Assim, mostra-se que o ordenamento jurídico vigente anteriormente não considerava o vínculo afetivo como sendo o elo de ligação para a constituição das famílias e sim, o vínculo matrimonial. Hoje, no entanto, o elemento em destaque para o reconhecimento das relações familiares são os vínculos afetivos.

Tal mudança representa uma modificação de paradigma, que como diz (SAWAYA, 2003), caminha ―na direção de uma ontologia e de uma epistemologia que não separam a razão da emoção, a organização socioeconômica da configuração subjetiva, a esfera privada da pública, tampouco a estética e a ética política‖ (SAWAYA, 2003, p. 39).

A afetividade aparece então como um vínculo que deve ligar ou estar presente nas diversas relações sociais. Inclusive, nas relações familiares, pois como afirma Dejours (2007): ―negar ou desprezar a afetividade é nada menos do que negar ou desprezar o homem, sua humanidade, o que é negar a própria vida‖.

Ademais, como se sabe a família é uma das mais antigas e duradouras instituições sociais e tem exercido importante papel no que diz respeito aos valores morais, culturais e sociais; neste sentido, como bem afirma Sawaya (2003) às relações de sociabilidade e solidariedade que a família desenvolve ganha espaço de importância no contexto cultural e político.

Mesmo que a Constituição tenha abarcado o afeto em sua proteção jurídica, o termo afeto não está explícito no texto constitucional. Portanto, a doutrina jurídica, a exemplo de Dias (2010), entende que quando a Constituição Federal reconhece a união estável (aquela união que não se constitui pelo matrimônio), como entidade familiar, está reconhecendo e definindo que a afetividade deve ser o eixo balizador e o vínculo legítimo de uma união.

Com o reconhecimento da afetividade como sendo esse eixo balizador das uniões familiares, restou abalado o discurso daqueles que não reconhecem a

igualdade entre a filiação biológica e a socioafetiva29. Com a elevação do princípio da afetividade30, a igualdade entre filhos biológicos e adotivos restou latente para o reconhecimento de seus direitos fundamentais.

Desta forma, Lôbo (2010) identifica na Constituição Federal quatro elementos fundamentais do princípio da afetividade, quais sejam: primeiramente, a igualdade entre os filhos independente da origem31; a adoção, com igualdade de direitos32; a comunidade formada por qualquer dos pais ou descendentes, inclusive os adotivos, com a mesma dignidade da família33; o direito à convivência familiar com a prioridade absoluta da criança e do adolescente34.

Ainda de acordo com Lôbo (2010), o afeto não é fruto do vínculo biológico ou sanguíneo, os laços de afeto derivam da convivência familiar. Sendo assim, entende-se que o laço de afeto não é algo inerente somente aos integrantes da família biológica ou consanguínea. Segundo Barros (2002), o afeto tem um aspecto externo, que dá uma característica humana à família.

Com o reconhecimento e valorização das funções afetivas como sendo o eixo definidor da instituição familiar, surgem ou redefinem-se multiplicidades de configurações de família, como, por exemplo, a família homoafetiva, que é formada por pessoas do mesmo sexo; a família reconstituída, formada a partir do desfazimento de relações afetivas passadas e construção de uma nova entidade com novos membros; a família paralela é caracterizada pela doutrina como aquela proveniente de relações de vínculos afetivos concomitantes, são aquelas chamadas pejorativamente como relações adulterinas. Lembrando que todas estas configurações familiares são reconhecidas com a mesma igualdade de direitos em

29 ―Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla com pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 614).

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Vale ressaltar que, na doutrina jurídica, a afetividade é reconhecida como um princípio inerente ao Direito de Família.

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CF, art 227, § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 32

Vide art. 227, § 6º da Constituição Federal. 33

CF, art. 226, § 4º - § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

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CF, art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

face da Lei. É neste ponto, que o afeto aparece como novidade, pois ele é trazido como o novo vínculo entre as famílias. E, mais uma vez, resta afirmar que o afeto não é novidade entre as famílias, mas sim nova forma de associação familiar, para fins de reconhecimento legal.

Ademais, compete dizer que ainda que a formação da família brasileira tenha sido identificada como um modelo de ―família patriarcal‖, e embora o termo tenha se propagado pelo Brasil, na verdade, esse modelo não preponderou em todo o país, pois se verifica que sempre coexistiu uma pluralidade de modelos familiares desde o Brasil Colônia até os dias atuais, ainda que o modelo patriarcal fosse o único amparado legalmente e reforçado socialmente. No decorrer do avanço da urbanização, a composição familiar se reduz ao casal e filhos, sendo denominada de família conjugal moderna, nuclear burguesa, vai absorver os traços da família patriarcal. No entanto, na família moderna há uma valorização da divisão do trabalho entre os cônjuges e membros, mas sem afastar o modelo patriarcal, mantendo nítida a autoridade máxima do marido, a submissão da esposa e a dependência dos filhos. Ocorre que, na contemporaneidade, esta estrutura familiar continua a existir, mas ao lado de outras composições de famílias (CARNEIRO, 2010).

No âmbito dessas mudanças, vê-se que o casamento e a família adquiriram um novo contorno, agora, direcionados ainda mais para a realização dos interesses afetivos de seus membros.

No aspecto legal, verifica-se que no Código Civil de 2002, a família abandonou o seu caráter natural e patriarcal e assumiu uma feição fincada nos fenômenos culturais.

A partir desta discussão sobre a nova feição da família, pautada na afetividade, busca-se expor o valor da família como protagonista social, tal como defende Sawaya (2003, p. 43):

A tese aqui é homeopática; defende o trabalho socioeducativo e militante, que adota a família como lócus do protagonismo social para usar o feitiço contra o feiticeiro, ir na contracorrente do biopoder, usando o mesmo remédio para obter efeitos contrários: em lugar da disciplinarização, a liberdade; em lugar do isolamento, a abertura ao coletivo.

Nessa senda, a família aparece valorizada justamente pelo valor do afeto. Ela é o grupo que promove a sobrevivência biológica e social humana. No entanto, o

perigo está em idealizá-la como o único espaço de valoração do afeto, vez que, é comum, infelizmente, encontrar lares e famílias ―desestruturados‖ e não propícios para o desenvolvimento humano.

Entende-se que estudos que privilegiam a análise da instituição familiar devem ser cautelosos para não incorrerem no risco de idealizar esta família no seu papel de provedora, cuidadora, impulsionadora, negociadora e enquanto lugar do acolhimento, pois nem sempre esses adjetivos caracterizam todas as famílias. Mesmo porque não se deve esquecer que a família é uma instituição social e como tal, incorpora e expressa todos os valores societais predominantes na realidade concreta em que está inserida.

Dessa forma, entende-se que discutir o afeto nas relações familiares, não significa tentar inseri-lo como ―ferramenta‖ para disfarçar a pobreza ou mesmo esconder a dor e nem como tentativa de manter a família unida a qualquer custo, como diz (SAWAYA, 2003), o afeto não deve ser interpretado como intrínseco ao sentimento de alegria constante.

Assim, a importância do valor do afeto se mostra relevante como primazia no tratamento das particularidades de cada família e seus integrantes, não impondo, porém, padrões idealizados de família.

Neste contexto, cabe inserir na discussão o fato de que a família é um espaço coberto de contradições e dinamicidade. Ela é parte das contradições mais amplas da sociedade, e, sendo assim, reproduz estas contradições nas suas relações internas e nos espaços de sociabilidade (SILVA, 2012).

Desta forma, se mostra necessário destacar o que diz Mioto (1997, p. 117): ―a família não é a priori o lugar de felicidade‖, porque muitas vezes ela não cumpre sua ―função‖ de cuidadora e protetora. Se tal premissa não fosse tomada como verdade, a família estaria distanciada da realidade, idealizada e indiferente às contradições existentes nas relações sociais e familiares.

Em geral, a partir da ideia de família ideal – mito da família conjugal e nuclear feliz -, a sociedade cria e estabelece um padrão institucional de família, a partir do qual são construídas expectativas sobre o que ela deveria ser, dificultando o entendimento de como ela realmente é (SILVA, 2012, p.31).

Esta discussão remonta ao modelo patriarcal idealizado pela sociedade, onde a ideia era de família normal e sempre feliz. Destarte, entende-se que nenhuma estrutura familiar deve ser tomada somente a partir do modelo patriarcal burguês, idealizado como moralmente adequado, uma vez que a família deve expressar seu caráter contraditório, comportando diversas ideologias, inquietações, comportamentos, valores diversos e, às vezes, não trazendo o afeto como elo fruto da principal ligação entre os seus membros.

Diante disso, destaca-se que ―o núcleo familiar não é uma ilha de virtudes e de consensos num mar conturbado de permanentes tensões e dissensões‖ (PEREIRA, 2004, p. 36).

Com base nas considerações delineadas e nas ressalvas apresentadas prossegue-se na discussão sobre os meandros do contexto familiar, buscando analisar como tem se efetivado a inserção das crianças e adolescentes neste meio que tanto se modificou ao longo dos anos.

3.2 A Política de Proteção ao Vínculo Familiar e o Desafio de Enfrentar a