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Afinal, qual o valor probatório dos atos do inquérito? Apresentando o

CAPITULO III – O problema do valor probatório dos atos do inquérito policial

1. Afinal, qual o valor probatório dos atos do inquérito? Apresentando o

No Brasil, a persecução penal é constituída de duas fases distintas: uma fase pré- processual, administrativa, normalmente documentada por meio do inquérito policial, e uma fase processual.

Em que pese à autonomia das duas fases e as suas desmedidas diferenças conceituais, não há como negar a existência de forte liame entre elas, tampouco a interferência dos atos administrativos da investigação no processo judicial. Na alusão de Achilles Benedito de Oliveira o inquérito policial e o processo podem ser entendidos como uma “corrida de revezamento, em que um atleta passa ao outro o bastão, sem interferência de um no espaço de atuação do outro”285. Trata-se de um juízo progressivo

de formação de culpa que se afigura imprescindível para que a pena abstratamente prevista no preceito secundário do tipo penal seja aplicada a um caso concreto. Referido juízo progressivo nasce com um juízo de possibilidade (início das investigações), passa por um juízo de probabilidade (final das investigações pré- processuais e início do processo) e termina com o juízo de convencimento do julgador sobre o fato histórico investigado (sentença).

Ademais, o art. 12 do Código de Processo Penal286 determina que todos os elementos de informação e provas produzidas no curso do inquérito policial deverão integrar o processo. Logo, mesmo os elementos que poderiam ser repetidos em juízo são

285 OLIVEIRA, Achilles Benedito de. Ministério Público e Polícia. In: Revista de Polícia do Estado de

São Paulo. São Paulo, ano 17 - n. 22. p. 70-74, Dezembro/1996.

286 BRASIL, Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Art. 12. “O

89 integralmente inseridos no processo, tornando ainda mais íntima a ligação entre inquérito policial e processo.

Como se vê, a fase “investigativa não se constitui em um compartimento incomunicável no cosmos processual, embora ali devesse se circunscrever”287.

Dessa forma, há, indubitavelmente, uma umbilical conexão entre a investigação preliminar e o processo. Trata-se de uma relação de complementariedade e, de certa forma, de dependência que une, inclusive, o estudo dos temas. A visão, disseminada, de que as regras aplicadas ao inquérito policial são umas, enquanto as do processo outras, transforma a persecução penal em um procedimento esquizofrênico, em que num primeiro momento, ou seja, durante o inquérito policial, há “autorização” para agir de forma autoritária, inquisitiva, enquanto que em um segundo momento, fase processual, deve-se respeitar o sistema de garantias imposto pela Constituição Federal e as regras do sistema acusatório. Um ser duplo. Algo parecido com o monstro da mitologia chamado Centauro288, cuja característica marcante era reunir o racional e o irracional em um único corpo. Com uma importante diferença na alusão, entretanto: o Centauro é considerado um monstro do bem; já a mistura entre o inquérito policial e processo, por vezes, pode ter resultados maléfico.

Mas afinal, qual o valor probatório dos atos do inquérito?

Certamente a introdução do inquérito policial no processo ocasiona inevitável influência dos atos de investigação na formação da convicção judicial e no deslinde dos atos processuais desenvolvidos pelas partes. As distorções existentes nas oitivas e reconhecimentos pessoais realizados na fase policial, já citadas, por exemplo, emanam efeitos maléficos para além da fase preliminar, alcançando a fase processual.

É bem verdade que no plano probatório o valor do inquérito policial deveria se exaurir com a admissão da denúncia289. “O inquérito policial filtra e aporta as fontes de informação úteis para o processo. Sua importância consiste em dizer quem deve ser ouvido, e não o que foi declarado”.290 Todavia, em que pese à irretocável afirmação de

Aury Lopes Junior, bem como o corriqueiro discurso doutrinário que atribui ao inquérito policial a característica de mero elemento de informação, sem valor

287 GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do processo penal: crise, misérias e novas

metodologias investigatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 04.

288 Monstro mitológico que possui duas naturezas: humana e equestre. Trata-se, portanto de um ser com a

cabeça e o tronco de um homem e o corpo, da cintura para baixo, de um cavalo.

289 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 322. 290 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 322.

90 probatório, a ligação referida entre as duas fases da persecução penal e, principalmente, a possibilidade de o juiz utilizar-se dos elementos informativos para formação de sua convicção, podem estar ocultando a “mais séria distorção encontrada na realização da nossa justiça penal, qual seja, a indevida intromissão dos elementos de informação coletados durante a investigação na atividade jurisdicional”291.

Parte da doutrina já se deu conta da influência, e por vezes preponderância, dos elementos informativos produzidos no inquérito policial no processo. Luiz Flávio Gomes e Flávio Scliar, por exemplo, prelecionam que apesar de esquecido como parte integrante do Direito Processual Penal e desprezado pela doutrina, o inquérito policial “informa decisivamente o espírito do julgador, sendo por vezes os atos de instrução processual meras reiterações do que nele foi produzido” 292.

Não é outra a visão Fauzi Hassan Choukr, para quem o Ministério Público pouco acrescenta em juízo àquilo que foi produzido no contexto investigatório, apenas ratificando-o judicialmente e reduzindo a ação penal a um mero apêndice da investigação293.

No mesmo sentido, Salo de Carvalho assevera que, embora no plano “discursivo a doutrina processual penal atribua ao procedimento policial papel secundário, o fato de ser o ‘input’ do sistema de persecução criminal constitui o inquérito como o principal mecanismo de produção da verdade processual”294.

Assim, conceber o inquérito policial como mero elemento de informação, sem valor probatório, mostra-se uma verdadeira falácia, já que o que se vê na prática é o Estado-jurisdição cedendo espaço para o Espaço-administração e nele se ancorando para emitir a sentença295.

Todavia, vale frisar ser

“absolutamente inconcebível que os atos praticados por uma autoridade administrativa, sem a intervenção do órgão jurisdicional, tenham valor

291 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006. p. 131.

292 GOMES, Luiz Flávio; SCLIAR, Flavio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia.

2008. LFG. São Paulo, out. 2008. Disponível em: <

http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081020154145672&mode=print>. Acesso em: 21.10.2013.

293 CHOUKR, Fauzi Hassan. Inquérito policial: novas tendências e prática. IBCRIM, São Paulo,

boletim 84, novembro 1999.

294 CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo

privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 89.

295 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro:

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probatório na sentença. Não só não foram praticados ante o juiz, senão que simbolizam a inquisição do acusador, pois o contraditório é apenas aparente e muitas vezes absolutamente inexistente. Da mesma forma, a igualdade sequer é um ideal pretendido, muito pelo contrário, de todas as formas se busca acentuar a vantagem do acusador público”.296

Os efeitos danosos da introdução do inquérito policial no processo nem sempre são visíveis e perceptíveis imediatamente297. Todavia, desvelar a real influência que os

atos de investigação exercem na formação da convicção do magistrado se mostra premente para o enfrentamento do problema e “compreensão da necessidade do deslocamento do eixo condutor da incidência da potestade punitiva da fase preliminar à fase judicializada”298