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CAPÍTULO 3: Os Aforismos para a sabedoria de vida e seus ensinamentos

3.4 Aforismos: pequena ética

Os Aforismos schopenhauerianos promovem uma ―pequena ética‖ no sentido de não corresponder diretamente ao que compreende a sua ―grande ética‖, a compaixão, mas de permitir que o homem reflita melhor sobre sua posição no mundo assim como sobre o que sabe sobre si mesmo em termos de potencialidades e limitações. É o que ele chama em Sobre o fundamento da moral de ―ética da melhoria‖282 segundo a qual é possível viver o menos infeliz possível, edificando o caráter adquirido a partir de uma sabedoria de vida que preza pela prudência e por evitar qualquer mal, conforme disse em O mundo: ―Conhecemos, portanto, o gênero e a medida de nossos poderes e fraquezas, economizando assim muita dor. Pois, propriamente dizendo, nenhum prazer é comparável ao do uso e sentimento das próprias faculdades lá onde são necessárias‖283

. Por mais que os Aforismos, ao apresentarem máximas para uma boa qualidade de vida, possam sugerir um pensamento centrado no eu, no indivíduo, é possível vê-los como estimulantes para uma boa qualidade de vida que repercutirá no mundo como representação como um todo, como afirma Debona, seria: ―a defesa de uma teoria da

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―Pode-se esquecer tudo, tudo, menos a si mesmo pois o caráter é absolutamente incorrigível e todas as ações humanas brotam de um espírito íntimo, em virtude do qual, o homem, em circunstâncias iguais, tem sempre de fazer o mesmo, e não o que é diferente‖. Cf. SCHOPENHAUER, 2002, p. 213.

281 SCHOPENHAUER, 2002, p. 218. 282

SCHOPENHAUER, 2001b, p. 199.

felicidade caracterizada pela elaboração e sistematização de máximas de sabedoria de vida em vista de uma certa ‗economia da dor‘ humana, pautada preponderantemente na ideia de ação prudente (sábia)‖284. Entenda-se essa ―teoria da felicidade‖ como uma sabedoria de vida que possibilite uma vida mais prudente e com a menor quantidade de sofrimento possível, por conseguinte, menos infeliz. Não seria uma liberdade plena que permitisse ao homem ser o que quisesse ser, mas que permite ao homem fazer um melhor uso daquilo que é. Esta é a espinha dorsal de nossa tese. Para tal, partimos da filosofia eudemonológica de Schopenhauer exposta nos Aforismos, que instiga o homem e expõe como fazer para ter uma vida não precisamente feliz, mas mais confortável em termos de saúde, autocontentamento, bom uso da inteligência e prudência.

A sabedoria de vida propicia uma ―ética da melhoria‖ [bessernde Ethik], e o caráter adquirido funciona, conforme Debona, como ―Nexo fundamental entre a metafísica e a filosofia prática‖285

. Pois, preocupações maiores com o que os outros pensam, com a honra, a reputação e a glória, bem como com a aquisição de bens materiais a fim de sentir-se mais realizado, em vez da preocupação com aquilo que se é, não hão de somar para a realização de uma boa vida, no sentido de uma vida sábia e, por conseguinte, distanciam mais ainda os homens uns dos outros e do todo da natureza. Nos Aforismos vemos que não nos entristecem os eventos que sabemos não poder evitar, tais como a doença, a velhice ou a morte. Ao contrário, quando entendemos que somos acometidos por um mal que é fruto do acaso, ou seja, não é um mal necessário, como, por exemplo, a ruína econômica ou uma desilusão amorosa, a dor se instala.

A negação da vontade se dá na ascese, mas ainda assim é possível suspendê-la através da contemplação e da compaixão. A contemplação estética seria um modo de paralisar a roda da vontade, como afirma Chevitarese: ―Esse momento efêmero de suspensão do querer-viver [a contemplação estética] nos proporciona a libertação do sofrimento, do tédio, da angústia, enfim, de toda absurdidade de nosso existir‖286

. No entanto, não aparta o jugo do homem definitivamente da vontade, mesmo porque, não há contemplação estética que seja permanente, ela se dá no tempo do instante. Não é

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DEBONA, 2013. p. 19.

285 DEBONA, 2013, p. 31.

286 CHEVITARESE, 2005, p. 37. Diz ainda: ―A liberdade e felicidade ‗verdadeiras‘ repousam na negação

da vontade, e é possível, ainda que momentaneamente, vivenciá-las na experiência contemplativa. Não se

pode dizer que há, propriamente, negação da vontade na experiência estética, mas há um desligamento da individuação, uma ‗suspensão‘ da vontade individual‖. Cf. CHEVITARESE, 2005, pp. 37-38.

possível racionalizar a contemplação estética, sua relação é com a intuição e não com a intelecção; do mesmo modo se dá com a ética, segundo Schopenhauer: ela não pode ser provocada ou direcionada intencionalmente, mas quando acontece o mistério da compaixão, a vontade interrompe seu curso.

Contra a crueldade humana, os dispositivos legais criados pelo Estado servem para freá-la, mas não servem para conduzir o homem à moralidade. O que Brum chama de ―Estado-focinheira‖287, serve de ―vigilância e limites ao animal feroz que é o homem‖, mas não o faz olhar para o outro e identificar-se com ele, não fazem brotar no homem o sentimento de compaixão pelo outro, apenas o faz refletir duas vezes antes de agredir o outro, por temor às sanções pelas suas ações. Assim, a justiça promovida pelo Estado estaria ligada ao princípio de individuação, enquanto o que Schopenhauer chama de ―justiça eterna‖ estaria ligada à essência do universo. Segundo Chevitarese, a moralidade deve seguir um curso tão natural e espontâneo que: ―[...] uma moral que se pretenda sustentar pelos motivos que oferece é indissociável do egoísmo, até porque, em última análise, se existir alguém querendo a moralidade, seja por resultados ou benefícios, já há inclinação egoísta‖288. O mistério que é o fenômeno da compaixão, segundo Schopenhauer, não deve levar o leitor a identificar sua filosofia como transcendente 289, já que essa é uma das características que a distingue dos modelos clássicos de ética que o antecederam.

Quando se fala em uma ―pequena ética‖ nos Aforismos, soa estranho um livro voltado para a vida prática do indivíduo, ainda mais quando o autor diz se tratar de um ensaio eudemonológico, ser compreendido também como um livro sobre ética. Como se o cuidado de si não se coadunasse com o que diz a ―grande ética‖ da compaixão. No entanto, quando se pensa que o cuidado de si configura uma postura egoísta, que ambos, ética e cuidado de si, são excludentes, a assertiva estaria certa, como expressa Chevitarese: ―A ética também não pode ser compreendida em termos de um cálculo interesseiro que procura mensurar as consequências mais favoráveis de cada ação, visto

287 BRUM apud CHEVITARESE, 2005, p. 40. 288 CHEVITARESE, 2005, p. 42.

289 ―[...] a vivência de algo que se encontra para além da representação não é, de modo algum, um convite à transcendência. Não há qualquer transcendência em Schopenhauer. Mesmo em face de vastas referências ao pensamento oriental, à mística e à graça cristã, sua filosofia permanece na mais radical imanência. Trata-se apenas de uma experiência que não pode ser descrita em linguagem, uma visão intuitiva que perfura o véu de Maya, e que se faz presente por meio de atos – o que não pode deixar de se constituir como um mistério‖. Cf. CHEVITARESE, 2005, p. 50.

que isso pressupõe egoísmo‖290

. Contudo, não se trata disso. Em que medida alguém que não está bem de saúde ou cujo intelecto não se encontra apto para pensar com clareza, ter acuidade de raciocínio, pode colaborar para o bem estar alheio? Não é que nos Aforismos estejam orientações para uma vida necessariamente virtuosa, moral, como diz ainda Chevitarese: ―A aptidão para a genialidade, para a compaixão ou para o ascetismo é inata – ou você tem ou simplesmente não tem. Estamos condenados a ser o que somos. Não é possível aprender a verdadeira virtude‖291. Do que lá se trata é de como viver melhor com aquilo que somos, como uma pequena porção de liberdade que se expressa no caráter adquirido, explorado por nós em nosso segundo capítulo. As possíveis contribuições para um comportamento mais ético são consequências.