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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.7 Agendamento

Como visto, o enquadramento sobre um tópico influencia diversos aspectos que definem como este será abordado. Inserida nessa discussão, entretanto, está a identificação do que é exatamente um problema a ser tratado pela sociedade e quais problemas serão priorizados para serem abordados.

Considerando-se um contexto social amplo, no qual se inserem inúmeros tópicos que requerem atenção para discussões e destinação de recursos escassos, como decidir qual questão deve ser priorizada? Apesar da definição de um problema seguir certa racionalidade, que engloba questões culturais e o momento histórico em que a definição acontece, essa tarefa é condicionada à manobra interpretativa dos atores envolvidos no problema (ROCHEFORT; COBB, 1993). Os autores afirmam, ainda, que quatro fatores são centrais na definição do que é um problema: sua causa, a imagem coletiva que a questão adquire, suas possíveis soluções e quem é o grupo de atores que controla, ou que é responsável pelo problema.

Nesse contexto, a construção de uma agenda pública para a hierarquização de problemas que merecem priorização é outro aspecto que obedece a determinada lógica

decisória, altamente variável e contextualmente dependente (ELDER; COBB, 1984). Esse processo decisório sobre o agendamento do debate público é dinâmico e essencialmente político (DEARING; ROGERS, 1992). Os autores afirmam que “o processo de agendamento é uma competição em curso, entre questões propostas, para atrair a atenção dos profissionais de mídia, do público e das elites políticas”36 (p. 2, tradução livre). Dessa forma, há uma coincidência de fatores ou supremacia de um ou mais fatores críticos que determina a variação dos temas inseridos na agenda de debate público.

No caso do objeto de análise deste trabalho, dada a relevância da água para os seres vivos e para o andamento das atividades econômicas em uma região metropolitana, a crise de abastecimento de água na RMSP assumiu o posto de tópico prioritário na agenda pública de forma imediata, o que mostra a potencial fluidez do processo de agendamento.

“A questão não é se o acesso à agenda é simplesmente uma questão de circunstância, mas sim que ele tende a ser o produto de um processo complexo e muitas vezes vagamente estruturado. O sucesso depende de uma convergência apropriada entre pessoas, problemas, soluções e oportunidades de escolha, e cada um desses elementos é potencialmente incerto.”37

(ELDER; COBB, 1984, p. 117-118. Tradução livre.)

Além desses fatores, a exposição de um problema social, nas mídias de comunicação massiva, ajuda a torná-lo uma questão de agenda pública (DEARING; ROGERS, 1992). Os veículos de comunicação social, como jornais, revistas, estações de rádio e canais televisivos, não levam apenas informações sobre os acontecimentos até os leitores e espectadores, mas também ensinam como ver e quanta importância deve ser dada a cada assunto (MCCOMBS, 2002). Dessa forma, apesar de não incorrer em uma maneira intencional, a atuação desses veículos se dá além do delineamento dos tópicos que devem ter mais relevância para a agenda de debate público; eles influenciam a forma de interpretar a realidade e, consequentemente, de opinar sobre ela.

Exemplo do papel da mídia de informação na opinião da sociedade é a comunicação do risco a que a sociedade é exposta. Nesse campo, a forma como as informações são dadas pode explicar a “amplificação ou atenuação das preocupações relacionadas a determinado risco.” (DI GIULIO, 2010, p. 54). Essencialmente, o que a sociedade sabe sobre os riscos envolvidos em questões de ciência, tecnologia e meio ambiente tem como fonte de

36

Do original “the agenda-setting process is an ongoing competition among issue proponents to gain the attention of media professionals, the public, and policy elites” (DEARING; ROGERS, 1992, p. 2)

37 Do original “The point is not that agenda access is simply a matter of happenstance, but rather that it tends to be the product of a complex and often loosely structured process. Success depends upon an appropriate convergence of people, problems, solutions, and choice opportunities, and each of these elements is potentially uncertain.” (ELDER; COBB, 1984, p. 117-118)

informação as notícias e análises veiculadas por órgãos de imprensa. Dessa forma, os veículos de comunicação social, que têm passado por grandes transformações graças ao advento de dispositivos midiáticos em que o leitor assume um papel ativo no consumo e geração da notícia, tornam-se um ator central no processo de formação e transformação da agenda de debate público.

Essa influência midiática é resultado de um processo multifacetado. Os dispositivos midiáticos têm na sua mediação da cultura massiva o centro de seu poder na sociedade moderna (MARTÍN-BARBERO, 2003). Com a passagem da sociedade da produção para a sociedade do consumo, uma transição que se deu a partir da emergência hegemônica dos Estados Unidos da América, mormente depois da Primeira Guerra Mundial, as principais células sociais – igreja, família, escola -, que determinavam valores, costumes e moda, tiveram sua influência transformada e substituída pelos filmes, pela música, pela publicidade, ainda mais que, à medida que a tecnologia midiática avançava a passos largos, a própria medida de tempo foi sendo relativizada. Por meio da midiatização, o tempo torna-se mutável, usado ou descartado conforme os fins que se busca. A moda traz de volta os anos 1980, um evento de 40, 50 anos atrás é revisitado por um documentário, e suas controvérsias voltam a pautar as discussões em todos os setores da sociedade.

O resultado desse processo, com o qual se convive atualmente, é um culturalismo centrado no meio de comunicação, e não no idealismo presente na informação que ele traz. A quantidade de informações a que se tem acesso é tamanha que sua essência se torna fugaz, transitiva, a-histórica. O efeito torna-se mais importante que o significado (MARTÍN- BARBERO, 2003).

Essa conjuntura propiciou também o desafio da velocidade da informação jornalística. Com a rede mundial de computadores (Internet), o advento da informação imediata, online, trouxe o desafio do jornalismo em tempo real, e seu ‘efeito de realidade’. “O jornal se coloca como um guardião atento à relação fato-notícia” (GOUAZÉ; FERREIRA, 2002, p. 236). Se antes os chamados veículos de comunicação carregavam, por essa definição, a função de serem a testemunha do fato para poder então levá-lo até o leitor, espectador ou ouvinte, o jornalismo web é o “substituto do espaço público”, unindo todas as vozes, inclusive a do próprio jornal (GOUAZÉ; FERREIRA, 2002, p. 236). Assim, veículos de comunicação massiva, suportados por tecnologias midiáticas acessíveis a um número cada vez maior de pessoas, tornaram-se os atores responsáveis pela mediação da realidade, definindo assim como ela deve ser interpretada e abordada. Nesse sentido, McLuhan e Fiore (2001) afirmam que “A mídia, ao alterar o ambiente, evoca em nós proporções únicas de percepção dos

sentidos. A extensão de qualquer sentido altera a maneira como pensamos e agimos - a maneira como percebemos o mundo"38 (p. 41, tradução livre.).

A conexão entre a influência do enquadramento para a abordagem de um tema e a capacidade de agendamento dos veículos de comunicação social é essencial para a análise da forma como a crise de abastecimento na RMSP foi discursada durante sua ocorrência. Essa conexão oferece, sobretudo, a perspectiva de que a arquitetura do discurso infere uma deliberada formatação da argumentação sobre o evento, cujo enquadramento salienta alguns aspectos e silencia outros; tendo como alvo os veículos de comunicação social, esse planejamento discursivo sobre a crise denota objetivos de conformação da interpretação do evento pela sociedade, envolvido, nesse conjunto, suas causas, seus efeitos e a justificação do processo de tomada de decisão para sua mitigação.

Neste segundo capítulo, foram organizados os alicerces que suportarão a análise da produção discursiva da Sabesp e do Gesp para comunicar a crise de abastecimento de 2014- 2015 na RMSP.

A infraestrutura de abastecimento hídrico, compreendida como uma construção sociotécnica, reúne aplicações tecnológicas, disputas de mercado e arranjos de poder, mantendo um grau de simbiose com seus usuários que a torna integrante da própria definição de urbanidade e civilidade. O discurso, apresentado como instrumento de gestão dessa infraestrutura, tem em sua produção a apropriação de conceitos hegemônicos e aparelhamento de dados e informações que, organizados dentro de determinado enquadramento, estabelecem valores e efeitos de verdade acerca das causas, decisões e providências adotadas durante o evento crítico, bem como sobre a forma e o grau de exposição da sociedade aos riscos que ambientam a infraestrutura e sua gestão.

Ainda, aspectos de priorização da atenção coletiva sobre os temas em discussão foram abordados, com o objetivo de estabelecer o papel da imprensa e seu posicionamento como alvo da produção discursiva sobre a crise de abastecimento. No próximo capítulo, essa produção discursiva, publicada em forma de press releases pela Sabesp e pelo Gesp, será analisada.

38

Do original “Media, by altering the environment, evoke in us unique ratios of sense perceptions. The extension of any one sense alters the way we think and act— the way we perceive the world.” (MCLUHAN; FIORE, 2001, p. 41)

3. A PRODUÇÃO DISCURSIVA SOBRE A CRISE

Este capítulo traz a análise da produção discursiva do Gesp e da Sabesp para a crise de abastecimento de 2014-2015 na RMSP. A comunicação produzida por esses atores, apesar de acessível ao público, foi endereçada à imprensa, ator imprescindível, à época, para a instauração e amplificação de seu discurso.

A construção discursiva adotada pelo Gesp e pela Sabesp é central por serem esses atores os controladores do abastecimento hídrico para 89,7% da população da RMSP. Consequentemente, todos os dados e informações geradas pela infraestrutura de distribuição hídrica da principal metrópole paulista são controlados por eles. Nesse sentido, com a busca por criar valor e efeito de verdade para sua argumentação, foi possível constatar o aparelhamento do discurso da Sabesp e do Gesp com dados gerados por artefatos cuja construção científica e social foi conformada ao longo do tempo, como medidores de nível de reservação, de pressurização da rede de abastecimento e do regime de chuvas.

Dessa maneira, o uso do discurso como instrumento de gerenciamento da crise de abastecimento hídrico aparece desde a classificação do episódio como uma crise.39 O termo ‘crise’, carregado de valores como subitaneidade, imprevisibilidade, abrupta ruptura do sistema vigente e duração limitada (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998), surge no discurso como um recurso que possibilita (i) colocar em cheque a responsabilidade prévia sobre suas causas, (ii) priorizar decisões e recursos emergenciais para sua mitigação e (iii) valorar e potencializar seu gerenciamento e solução, transformando sua superação em uma conquista vitoriosa, versão esta de grande valia como capital político.

A partir da produção discursiva reunida para análise nesta pesquisa, foram identificadas cinco chaves argumentativas, adotadas pela Sabesp e pelo Gesp, para comunicação da crise de abastecimento:

1. O clima como agente crítico: Esse argumento habita o discurso da Sabesp e do Gesp durante todo o curso do episódio, apresentando a falta de chuvas e as altas temperaturas como razões para a deflagração e perduração da crise de abastecimento.

39 Pesquisa feita nos veículos de comunicação mostra que durante o período definido para esta pesquisa, o termo ‘crise hídrica’ foi primeiramente usado em 28 de fevereiro de 2014, em matéria do Estadão intitulada “Sabesp compra 20 bombas para o fundo da Cantareira” (O Estado de São Paulo, 28 de fevereiro de 2014, p. A18), sobre classificação da situação circunstancial vivida pela RMSP naquele momento pela então presidente da Sabesp, Dilma Seli Pena.

2. Consumo como fator crítico: O consumo individual é discursado como o primeiro e principal fator a ser atacado. Essa narrativa traz o consumidor da água para o centro da arena, dividindo a responsabilidade pela mitigação da crise com a Sabesp e o Gesp.

3. As obras como solução ótima: Apesar dos altos custos, impactos ambientais, extenso processo de contratação e de execução devido aos aspectos legais envolvidos nas contratações e empreendimentos públicos (BRASIL, 1993, 1997b; SÃO PAULO (ESTADO), 2012), as obras foram discursadas como as melhores soluções possíveis, e suas execuções foram apresentadas como ágeis e meritosas, reforçando o corrente modelo de expansão e desenvolvimento da infraestrutura de abastecimento hídrico, centrada na drenagem de novos e distantes mananciais, e da governança do saneamento básico para a RMSP. 4. Vitimização versus glorificação: No início do episódio, a Sabesp e o Gesp se

colocaram discursivamente como vítimas do clima e daqueles consumidores que se recusavam a economizar a água, enquanto que, durante o ano de 2015, esse argumento foi direcionado àqueles consumidores que desviavam água tratada, por meio de ligações irregulares no sistema de abastecimento. Já a glorificação pode ser encontrada nos momentos em que a Sabesp e o Gesp creditaram a superação da crise principalmente às suas ações. Apesar de ter sido concentrada no segundo semestre de 2015, período de normalização do abastecimento hídrico na RMSP, a autoglorificação pela Sabesp e pelo Gesp apareceu em outros momentos da crise de abastecimento, usada em torno do nome do então governador Geraldo Alckmin, no contexto da corrida eleitoral de 2014.

Essas chaves argumentativas guiarão a análise dos comunicados ao longo deste capítulo, sob as quais serão apresentados trechos dos comunicados publicados pela Sabesp e pelo Gesp, caracterizando assim a produção discursiva em torno da crise de abastecimento hídrico de 2014-2015 na RMSP.

3.1 A análise do discurso da Sabesp e do Gesp sobre a crise de abastecimento