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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.6 Enquadramento

O enquadramento é um importante instrumento de leitura e interpretação de um fenômeno complexo (KAUFMAN; MICHAEL; DEBORAH, 2003). Por meio dele, torna-se possível trazer um amplo leque de informações, dispostas de forma ininteligível, por sua complexidade, para uma área interpretativa delimitada por códigos, valores e linguagem mais acessíveis. Em um cenário de disputa, atores diferem em escolhas sobre relevância, prioridades e graus de risco, e essas diferentes visões estão diretamente atreladas ao enquadramento do evento por cada ator envolvido. Visto por esse ângulo, o enquadramento é um instrumento de ação deliberada, que envolve análise e estratégia. Um ator envolvido em uma disputa pode buscar determinado enquadramento em detrimento de outros para que sua interpretação entre em vigor, e assim para que sua agenda, suas escolhas e sua disposição aos riscos envolvidos na ocasião sejam aceitas.

A definição de uma situação, por mais simples que seja, exige um enquadramento. Goffman (1974) afirma que está inserida no enquadramento a lógica de explicação de um evento, que é governado por uma sequência sob a qual os acontecimentos são organizados. Dessa forma, para explicar como a crise de abastecimento na RMSP se deu, há de se escolher um determinado enquadramento do evento, para que se possa estabelecer uma lógica

32 Do original “Science becomes more and more necessary, but at the same time, less and less suficient for the socially binding definition of truth” (BECK, 1992, p. 154).

sequencial que dará a forma interpretativa ao acontecimento. Um ator pode explicar aquele episódio a partir da falta de chuvas que acometeu a RMSP em 2014, outro pode iniciar seu relato pela maneira como os pré-candidatos à eleição do posto de governador de São Paulo exploraram a crise no início do ano em questão, ou, ainda, seria possível traçar a progressão daquele evento, por meio dos registros do nível de reservação dos sistemas de produção de água tratada que abastecem a RMSP.

Sob enfoque do processo de tomada de decisão, Leach (2008) reforça essa visão, ao definir o enquadramento como:

“suposições, métodos, formas de interpretação, valores e objetivos particulares, contextuais, parciais e subjetivos – sustentados, por exemplo, por governos diversos, indústrias, sociedade civil ou atores locais”33 (p. 3, tradução livre)

Enquadramentos dão forma a narrativas, ferramenta discursiva que pode direcionar a interpretação de aspectos que impactam sensivelmente em processos de tomada de decisão, como a natureza de um problema e como este deve ser enfrentado. Tanto a narrativa quanto o enquadramento são produzidos por atores e co-construídos com estratégias de governança e de intervenção, bem como através das relações de poder envolvidas no episódio (LEACH, 2008).

No contexto de produção de um discurso textual, formato este do material coletado para a análise da presente pesquisa, ao usá-lo para mediar a interpretação de um fenômeno ou episódio, o produtor do discurso terá de enquadrá-lo de determinada maneira para executar essa tarefa. Fazê-lo significará selecionar alguns dos aspectos da realidade percebida, e então salientá-los no texto discursivo, de maneira a promover uma definição particular do problema, bem como a interpretação de suas causas e de suas soluções (ENTMAN, 1993). A recepção e interpretação desse discurso também obedecem à lógica do enquadramento do fenômeno pelo leitor. Segundo o autor, a cultura é o componente comum entre o produtor e o receptor do discurso, e tal componente social tem o efeito de tornar os enquadramentos minimamente comuns entre esses atores.

Dessa forma, a Sabesp e o Gesp, ao arquitetarem a linha argumentativa sobre a crise de abastecimento que seria difundida por meio de discurso destinado à imprensa, determinaram previamente o enquadramento dentro do qual essa argumentação seria traçada. Tal escolha sofreu influência de diversos fatores, como as relações de poder que seriam afetadas pelo

33 Do original “particular, contextual, positioned and subjective assumptions, methods, forms of interpretation, values and goals - whether held for instance by diverse government, industry, civil society or local actors.” (LEACH, 2008, p. 3)

discurso, a possibilidade de contradições entre declarações publicadas em diferentes momentos do episódio, o embasamento de dados e informações científicas, entre muitos outros, de acordo com cada enquadramento possível para comunicar a crise.

Para ilustrar o papel do enquadramento em uma construção discursiva, deve se considerar a decisão de reduzir drasticamente a pressão da água na rede de abastecimento, encampada pela Sabesp com o objetivo de minimizar a perda do produto durante a crise na RMSP. Milhares de quilômetros de tubulações cortam o subsolo das vias públicas daquele adensamento urbano, transportando a água entre as estações de tratamento e as torneiras dos imóveis. Para que esse transporte aconteça, a água precisa ser ‘empurrada’ por equipamentos que a bombeiam e criam certa pressão para que ela vença a força gravitacional e chegue nos pontos mais altos da cidade. Dependendo da força causada por essa pressurização nas paredes da tubulação, ocorrem rupturas e vazamentos que contribuem para o alto índice de perda registrado na capital paulista: 33% da água tratada é perdida durante sua distribuição (BRASIL, 2016a). Buscando reduzi-los durante a crise de abastecimento, a Sabesp diminuiu a pressão da água distribuída.

Essa medida gerou interpretações diversas, cujas argumentações demonstraram como o enquadramento sobre uma decisão direciona sua interpretação e, consequentemente, a argumentação discursiva. Em editorial publicado no jornal Folha de São Paulo em 22 de janeiro de 2015, o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, afirmou34 que sabia que a redução da pressão na rede de distribuição causaria transtornos à população, mas aquela seria uma medida importante para evitar “a exaustão da pouca água ainda armazenada nos grandes reservatórios”, considerado por ele “um mal maior”.

O discurso do executivo da Sabesp obedece a um enquadramento do episódio no qual os graus de risco entre dois possíveis cenários futuros foram valorados. Kelman construiu seu argumento dentro de um enquadramento em que a decisão de assumir os riscos de causar transtornos para a população, ao decidir reduzir a pressão de distribuição da água, foi justificado por ter como alternativa o risco de colapso dos grandes reservatórios que ainda abasteciam a RMSP no início de 2015.

Por outro lado, em matéria publicada pelo mesmo jornal, cinco dias depois, o depoimento da designer Patrícia Nakamoto explicita outro enquadramento do mesmo episódio.35 Ao ter de lidar com a falta de água em sua casa por quatro dias seguidos, devido à

34

“A Sabesp raciona água?” Folha de São Paulo, 22 de janeiro de 2015, página A3.

35 “ ‘Pior é falta de aviso’, afirma designer após 4 dias de corte”. Folha de São Paulo, 27 de janeiro de 2015, página C3.

redução da pressão na rede de distribuição de água pela Sabesp, Nakamoto afirmava que “o pior foi a falta de transparência e de aviso. Se soubéssemos por quanto tempo [ficaríamos sem água], teríamos nos preparado com antecedência e criado alternativas.” Assim, no discurso de Nakamoto infere-se que aquele risco de transtorno, considerado menor dentro do enquadramento dado por Kelman, tornou-se um acontecimento de relevância central no enquadramento do episódio da redução da pressão dado por uma usuária do sistema de abastecimento de água.

Enquanto o enquadramento define rumos e formatos da argumentação discursiva sobre um evento, o canal de comunicação, usado para sua veiculação, influencia a abrangência e a relevância que o discurso terá na pauta de discussão coletiva em certo período. Essa característica, fundamental para episódios de amplo impacto social, como, por exemplo, a difusão de uma nova tecnologia, a implantação ou alteração de uma política pública ou a crise de abastecimento analisada neste trabalho, é denominada agenda-setting, ou agendamento. Inseridos em uma estratégia discursiva, esses dois elementos – enquadramento e agendamento - se inter-relacionam. O próximo subcapítulo discorre sobre o papel de agendamento que a imprensa opera na sociedade moderna, e como ele influenciou a decisão da Sabesp e do Gesp na direção de seu discurso.