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I. O Agente Encoberto e Figuras Próximas

3. O Agente Encoberto e Agente Infiltrado

Para uma rigorosa aplicação da disciplina do RJAE é necessário delimitar, com rigor, o conceito do agente encoberto, a fim de se poder aferir da sua conformidade com o regime jurídico em vigor, viabilizando um eficaz controlo da sua atividade.

No que às ações encobertas diz respeito, deparamo-nos frequentemente, tanto na doutrina como na jurisprudência, com expressões como homens de confiança, agente infiltrado, agente encoberto e agente provocador, nem sempre da forma unívoca54, o que leva, não raras vezes, à aplicação do regime substantivo e processual penal desadequado à situação concreta. 52 LEITE, ca. 2010: 3. 53 LEITE, ca. 2010: 4. 54 MEIREIS, 1999: 162.

Na doutrina, pela pena de Andrade (2013: 220), surge-nos o conceito de “homens de confiança” no qual se incluem “todas as testemunhas que colaboram com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e atividade”. Cabem neste conceito, segundo o autor, “tanto os particulares (pertencentes ou não ao submundo da criminalidade), como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (…), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto; e quer se limitem à recolha de informações, (…), quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime (…)”55. No conceito amplo de “homens de confiança” cabem, assim, os agentes provocadores, infiltrados e encobertos.

Por seu turno, Meireis (1999: 162) procede a uma divisão tripartida da forma do agente policial se relacionar com o criminoso sem revelar a sua identidade ou qualidade, ou seja, o agente provocador, o agente infiltrado e o agente encoberto56. Este autor estabelece como critério distintivo entre agente infiltrado e agente encoberto, o grau de ingerência dos agentes da autoridade na esfera jurídica dos particulares e nos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão57.

O agente infiltrado, segundo este autor, será o “agente da autoridade ou cidadão particular (mas que atue de forma concertada com a polícia)58 que, sem revelar a sua

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Cf. também MEIREIS, 1999: 140 e 163. 56 MEIREIS, 1999: 162.

57 MEIREIS, 1999: 163.

58 Em alguns ordenamentos jurídicos, as ações encobertas são efetuadas apenas por agentes policiais. É assim p. ex. em Espanha, PÉREZ, 2006: 287 e na Alemanha, ANDRADE, 2009a: 534. Alguma doutrina tem vindo a questionar o recurso a terceiros, não funcionários, assinalando em relação a eles, o facto de não existir um vínculo de fidelidade ao Estado, que é inerente ao funcionário de investigação, e que, não constituindo garantia absoluta de fidelidade ao direito, envolve necessariamente um grau de confiança maior do que a mera “contratação” de “assalariados” ocasionais para finalidades de elevada importância e alto risco, COSTA, 2014: 362. No mesmo sentido, ao sublinhar que “a utilização de terceiros pode acarretar dificuldades acrescidas” PEREIRA, 2010: 151. Manifesta, também, dúvidas quanto à atuação de terceiros, realçando a sua maior vulnerabilidade quanto a eventual corrupção e o facto de não possuírem a preparação ideal para a infiltração, SOUSA, 2010: 233-234. Por seu turno, vem chamar à atenção para “o que já se vai chamando ‘privatização da investigação’, em que pessoas privadas se sub-rogam ‘funcionalmente’ na prossecução de tarefas com a marca da publicidade e da soberania” ANDRADE, 2009b: 127. Refere o autor a “título de exemplo, o recurso cada vez maior aos homens de confiança, reconhecidos por muitos ordenamentos, como o português, que lhe atribui funções e estatuto idêntico aos dos agentes encobertos”. Itálico no original. Mas também há doutrina a defender que “(…), o recurso aos ‘homens de confiança’ (sobretudo se pertencerem ao milieu), tem uma importante vantagem face à utilização de agentes policiais como ‘agentes encobertos’, na medida em que a sua presença levantará muito menos suspeitas do que a presença de uma pessoa desconhecida e, quando não seja possível infiltrar organizações assentes em laços familiares ou mesmo étnicos, a utilização de ‘homens de confiança’ pertencentes à nacionalidade, etnia ou até famíglia dos membros da organização poderá proporcionar uma infiltração bem sucedida” NUNES, 2015: 510. No entanto, considerando as dificuldades que coloca em termos de controlo e a elevada probabilidade de recorrerem à provocação dos suspeitos, tornando inutilizável o acervo probatório recolhido, o recurso a terceiros deve ser devidamente

identidade ou qualidade e com o fim de obter provas para a incriminação do(s) suspeito(s) ou então somente, para a obtenção da notícia do crimminis, ganha a sua confiança pessoal, mantendo-se a par dos acontecimentos, acompanhando a execução dos factos, praticando atos de execução se necessário for, por forma a conseguir a informação necessária ao fim a que se propõe”59.

Já quanto ao agente encoberto, “o que o caracteriza é a sua absoluta passividade relativamente à decisão criminosa. Estava naquele lugar, àquela hora, como poderia estar outro agente qualquer ou outro cidadão qualquer”60

. Trata-se do vulgarmente designado ‘polícia à paisana’ que, (…) para combater o tráfico e o consumo de estupefacientes, frequenta cafés, bares, ruas, estações de caminhos-de-ferro e demais lugares abertos ao público na esperança, ou de presenciar os crimes em causa e deter os seus agentes, ou de que um dos traficantes se lhe dirija propondo-lhe a aquisição de estupefacientes”61.

Por sua vez, Gonçalves, F., Alves, M., Valente, M., (2001a: 256-257), aderem à divisão tripartida do agente policial se relacionar com o suspeito, proposta por Meireis. Para estes autores, “agente infiltrado é (…) o funcionário de investigação criminal ou terceiro, por exemplo, o cidadão particular, que atua sob o controlo da Polícia Judiciária que, com a ocultação da sua qualidade e identidade, e com o fim de obter provas para a incriminação do suspeito, ou suspeitos, ganha a sua confiança pessoal, para melhor o observar, em ordem a obter informações relativas às atividades criminosas de que é suspeito e provas contra ele (s), com as finalidades exclusivas de prevenção ou repressão criminal, sem contudo, o (s) determinar à prática de novos crimes”62. No que concerne à figura do agente encoberto, os autores aderem à definição avançada por Meireis63.

Diferente conceção é defendida por Oneto (2005: 138-140), ao negar a distinção entre agente infiltrado e agente encoberto, admitindo que, “a operar-se uma distinção entre as duas figuras, o agente encoberto possa ser uma subespécie do agente infiltrado”. Entende que ‘polícia à paisana’, corresponde à definição de Meireis para o

ponderado, caso a caso, e só deve ter lugar quando a utilização de elementos policiais se revele, de todo, desaconselhável.

59

MEIREIS, 1999: 163-164. Itálico no original. 60 MEIREIS, 1999: 192.

61 MEIREIS, 1999: 192. 62

GONÇALVES, F., ALVES, M., VALENTE, M., 2001a: 264. 63 GONÇALVES, F., ALVES, M., VALENTE, M., 2001a: 303.

agente encoberto64. A autora define “agente infiltrado como o agente policial ou terceiro sob a orientação daquele, que no âmbito da prevenção ou repressão criminal, e com o fim de obter provas incriminatórias sobre determinadas atividades, oculta a sua identidade e qualidade, podendo praticar factos típicos sem, contudo, os poder determinar”65

.

De entre as conceções analisadas, adere-se à proposta por Oneto66, por ser aquela que melhor reflete a posição assumida pelo legislador no RJAE, ao optar pela expressão “agente encoberto”67

ao invés de utilizar o termo “agente infiltrado”, nela se incluindo a realidade que pode comportar as duas figuras68 69. É esta expressão que se irá utilizar ao longo do presente trabalho.