• Nenhum resultado encontrado

II. O Regime Jurídico das Ações Encobertas

3. O Regime Jurídico em Vigor

3.1. Fins das Ações Encobertas

O regime jurídico português prevê o recurso à figura do agente encoberto, quer para fins de prevenção, quer para fins de investigação criminal (art.º 1.º, n.º 1 do RJAE), e define como ações encobertas, aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiros atuando sob o controlo da Polícia Judiciária111 para prevenção ou repressão dos crimes (…), com ocultação da sua qualidade e identidade (art.º 1.º, n.º 2 do RJAE).

Como se pode constatar, a lei distingue as ações com fins preventivos das que são desenvolvidas com fins de repressão dos crimes constantes do catálogo, fechado, (art.º 2.º do RJAE, art.º 188.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 04 de julho e no que se refere a ações encoberta em ambiente digital, art.º 19.º, n.º 1 da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro).

As ações de natureza preventiva, como se depreende, têm por finalidade última a recolha de informações que permitam às instâncias formais de controlo evitar a ocorrência de factos típicos.

De referir que alguma doutrina admite o recurso às ações encobertas apenas quando prossigam finalidade exclusiva ou prevalentemente preventivas112. “Será concretamente assim sempre que a perseguição de eventuais agentes, lograda através do homem de confiança, se integre em programas de repressão e desmantelamento do terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada”113. Refere esta doutrina

110 Por conseguinte, “a legitimação da ação encoberta encontra-se, assim, na preponderância, constitucionalmente justificada, dos fins através dela prosseguidos – fundamentalmente de natureza preventiva – em face dos direitos e interesses por ela sacrificados” RAMALHO, 2017: 287.

111 O SEF também passou a ter competência para desenvolver ações encobertas, no âmbito da prevenção e investigação de crimes relacionados com a imigração ilegal, nos termos do RJAE, ex vi do art.º 188.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 04 de Julho. Por conseguinte, Albuquerque (2011: 681, nota 21), considera que um terceiro, também pode atuar numa ação encoberta sob o controlo do SEF. Todavia, considera-se que a remissão feita para o RJAE abrange apenas os funcionários do SEF e já não um terceiro, cujo controlo da ação continua reservado à Polícia Judiciária, como se infere do inciso legal (…) ou por terceiros atuando sob o controlo da Polícia Judiciária (…). (art.º 1.º, n.º 2 do RJAE).

112

ANDRADE, 2013: 232.

que “quando o homem de confiança visar exclusivamente, provar a prática de crimes (…) cairemos no âmbito de proibição de prova. Mas quando, diferentemente, o homem de confiança visar impedir a consumação do crime ou a reincidência do agente (…), já não estamos situados no plano processual da proibição de prova, mas antes perante uma conduta cuja licitude é definida de acordo com os juízos de ponderação que enformam a justiça penal (art.º 31.º e seguintes do Código Penal) ”114. Esta posição é reiterada, ao afirmar-se que “a ponderação das normas constitucionais nesta matéria não deve excluir o recurso ao agente encoberto, desde que ele seja sempre concebido como modo necessário, adequado e proporcionado de impedir o cometimento de futuros crimes e assegurar a incolumidade de bens jurídicos”115

. Não se adere a este entendimento, porquanto, não tem qualquer sustentação na letra da lei e ignora as finalidades de prevenção criminal que a aplicação de uma pena correspondente a um crime já cometido encerra116117.

A lei ao prever as ações encobertas com fins preventivos, permite que se coloque a questão no sentido de saber se estas abrangem a “prevenção criminal na sua dupla função (de vigilância e de prevenção em sentido estrito) ou prevenção criminal strito sensu (função de prevenção em sentido estrito)”118. Em resposta a esta questão, esta doutrina defende que “obedecendo à observância obrigatória do princípio da última ratio desta técnica (…), do princípio da subsidiariedade, da exceção e da proporcionalidade (…), quanto ao recurso da figura do agente encoberto, (…), aquele apenas se deve observar quanto à prevenção criminal strito sensu”119.

Por outro lado, as ações encobertas com fins preventivos levantam a questão, controvertida, de saber se estas se podem desenvolver fora do âmbito de qualquer inquérito. A questão já foi colocada ao TC, ainda na vigência do art.º 59.º do Decreto- Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, a fim de se pronunciar acerca da sua constitucionalidade, quando interpretado no sentido da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da atuação do agente encoberto. Este tribunal considerou que a norma do art.º 59.º do diploma em causa, interpretada no sentido de, no âmbito da

114 PEREIRA, 1996: 75. 115 PEREIRA, 2004: 24.

116 Neste sentido, NUNES, 2015: 514 e GONÇALVES, F., ALVES, M., VALENTE, M., 2001b: 29. 117 Refira-se que as ações encobertas em ambiente digital, apenas são admitidas no âmbito de inquérito (art.º 19.º, n.º 1 da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro). Todavia, no caso dos crimes constantes do catálogo do art.º 2.º do RJAE será possível desenvolver ações encobertas no âmbito da prevenção criminal em ambiente digital. Neste sentido, DÁ MESQUITA, apud NUNES, 2015:515.

118

GONÇALVES, F., ALVES, M., VALENTE, M., 2001b: 28. 119 GONÇALVES, F., ALVES, M., VALENTE, M., 2001b: 28.

prevenção criminal, não haver necessidade prévia de inquérito a decorrer para efeitos da atuação do agente encoberto, não era inconstitucional120.

Alguma doutrina, também admite que este tipo de ações encobertas se possam desenrolar fora do âmbito de qualquer inquérito, como é o caso de Albuquerque (2011:684, nota 29) que, a propósito do prazo de execução da ação refere que “o problema é mais delicado no caso das ações encobertas no âmbito da prevenção criminal: aqui não há qualquer arrimo (…), pois a ação decorre fora do âmbito de qualquer inquérito".

Este entendimento suscita algumas questões. Em primeiro lugar, considera-se dificilmente harmonizável com o princípio da legalidade, porquanto, estando em causa o recurso a uma técnica extraordinária de investigação criminal, à qual só se deve recorrer em última ratio, quando nenhum outro meio de investigação “tradicional” se revele apto a alcançar os objetivos almejados e, estando em causa um crime grave, porquanto, constante do catálogo, fechado, (art.º 2.º do RJAE), a decisão de desencadear uma operação desta natureza deve estribar-se, necessariamente, em indícios minimamente credíveis, de que está em vias de ser ou já foi praticado um crime, evitando-se a banalização do recurso a esta técnica. Ora, a notícia de um crime é obrigatoriamente comunicada ao MP (art.ºs 241.º e 242, n.º 1, als. a) e b) do CPP), o que dá necessariamente lugar à abertura de inquérito, em obediência ao referido princípio da legalidade (art.º 219.º, n.º 1 da CRP e art.ºs 262.º, n.º 2 e 283.º, n.º 1, ambos do CPP). Na verdade, o princípio da legalidade contém dois deveres que impendem sobre o MP, ou seja, o dever de investigar, abrindo inquérito, sempre que haja notícia de um crime (art.º 262.º, n.º 2 do CPP)121 e o dever de acusar, sempre que da investigação resultem indícios suficientes de se ter verificado a prática de crime e de quem foi o seu agente (art.º 283.º, n.º 1 do CPP). E, em segundo lugar, implica um recuo do princípio da legalidade, em vigor no Processo Penal português, sem que daí resulte, segundo se crê, qualquer vantagem, quer para a investigação, quer para a defesa122.

Ora, dúvidas não restam de que o ordenamento jurídico português prevê expressamente o recurso a ações encobertas para fins de prevenção (art.ºs 1.º, 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 4, todos do RJAE). Todavia, não resulta da letra da lei a obrigatoriedade de tais

120 Cf. Ac. do TC n.º 578/98 de 1998-10-14 [consultado a 2018-01-05]. 121

“O princípio da legalidade significa que a actividade investigatória se desenvolve sob o signo da estrita vinculação à lei e não segundo considerações de conveniência de qualquer ordem (…)” MENDES, 2018: 205.

122

“Entre nós, ninguém aceita o juízo de oportunidade do MP quanto à promoção do processo, mas sim como limitação ao princípio da legalidade, para certos domínios limitados” MENDES, 2018: 206.

ações se desenvolverem fora de qualquer inquérito. Por conseguinte, quando o legislador se refere a ações encobertas para fins de prevenção, crê-se que tem por objetivo salvaguardar os casos urgentes123, cuja atuação do agente encoberto não pode esperar, sob pena de se tornar inócua, mas pelo período de tempo estritamente necessário à instauração do inquérito, no âmbito do qual, a partir desse momento, toda a operação encoberta deve passar a desenvolver-se.

As ações encobertas de natureza repressiva são aquelas que normalmente são utilizadas no decurso de um inquérito, tendo por finalidade a recolha de prova acerca de quem, como, onde, quando e em que circunstâncias foi cometido determinado facto típico.

3.2. Ações Encobertas ao Abrigo da Cooperação Judiciária Internacional em