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4 A vida pautando a obra

4.5 Eu aprendi a falar de flores

4.5.4 Morte e Jardim: uma metáfora?

4.5.4.2 Agradecimento aos deuses

Outra crônica que irá manter uma relação metafórica entre o final da vida de Caio com o jardim é Aos deuses de tudo que existe. Nesse texto, o ponto preponderante da narrativa está no fato do jardim sobreviver ao período de inverno, em geral marcado por desgastar mais as plantas dadas as variações climáticas que são traços relevantes no tempo de Porto Alegre, cidade onde Caio vivia na época. Sobre o clima do inverno gaúcho, o autor escreve:

Mas isso talvez fosse o destino, ou morre-se mais facilmente no inverno? sobretudo no gaúcho, quando o minuano vara frestas e fendas para cortar a pele feito navalha gelada. Enregelados, atravessamos agostos que parecem eternos e, nos setembros, suspiramos quase leves outra vez: “Meu Deus, passou”. (ibidem, pág. 184)

O inverno se mostra como uma estação de sofrimentos, já que o corpo fica debilitado, tanto o de Caio como o das plantas. Mas ele inicia a narrativa afirmando que “os jardins não morrem no inverno, como os animais ou as pessoas, principalmente as mais velhas, apenas sofrem um pouco mais fundo do que de costume. Alguns, verdade, sucumbem” (ibidem). Por esse trecho, percebe-se que Caio busca enfatizar que os jardins sobrevivem, diferentemente da maior parte dos animais e das pessoas.

Na sequência Caio mantém a tônica do aprendizado que trava com o jardim, assim como já deixara bem claro na crônica A morte dos girassóis: “eu penso e aprendo olhando o meu jardim sobrevivente. Óbvias, quem sabe. Pra mim, não: é que nunca antes na vida tive um jardim” (ibidem). Esse aprendizado que partilha com suas flores também pode ser visto como um aprendizado de sua nova condição física, soropositivo, já que o início da jardinagem coincidiu com a descoberta da aids. Assim, parte desse aprendizado está relacionado às formas com que a doença o ataca, como a tosse, que inclusive foi tema da crônica Para uma companheira inseparável, já estudada anteriormente, e dos suores e febres, também já analisados na crônica Os anjos da febre e a mão de Deus. Dessa maneira, o inverno tem uma preponderância grande sobre a vida de Caio já que induz o autor a criar novos hábitos.

Serão feitas também referências às pestes que atormentam o jardim, tema que foi tratado na crônica Novas notícias de um jardim ao sul: “fora os agostos, formigas- cortadeiras, caracóis, lesmas, pulgões, ácaros, cochonilhas e falanges do mal de nome

ainda mais esquisito que esse último” (ibidem). Nesse ponto, Caio também encontra tempo para exagerar um pouco em suas descrições, tentando ficcionalizar mais a narrativa e torná-la mais atrativa ao leitor: “armados até os dentes, lutamos. Todo santo dia. Guerra sem tréguas, Bósnia” (ibidem). A comparação com a Guerra da Bósnia é mais uma vez exacerbada, visto que o país europeu sofreu com a guerra pela independência por mais de três anos, na qual foram encontradas mais de 200 mil vítimas entre civis e militares.

Da mesma forma que a guerra contabiliza suas perdas, Caio também conta as do jardim:

Foram-se a angélica, begônias, lágrimas-de-cristo que eu achava que eram brincos-de-princesa (meu pai jura voltam), uma dália amarelinha adorada pelos erês de Oxum e outras muitas. A hortênsia empacou, o jasmineiro agonizou, mas resistiu bravo. (ibidem, pág. 185)

As batalhas que algumas plantas travam para sobreviver são narradas por Caio, mostrando como elas superam as adversidades, ora indicando uma sobrevivência, ora remetendo ao fim do seu ciclo:

E teve certa amarílis, que em julho dei por perdida. Semana passada, arrancando baldes de ervas-daninhas de nojentas raízes brancas estranguladoras, a alegria: como uma ponta de espada brotando da terra, miniexcalibur. Ao contrário, lá estava a amarílis nascendo outra vez. Limpei mais, adorei, conversei, bravo, isso aí, minha filha, não se entrega não. Happy end? Ledo engano: manhã seguinte, a pontinha de espada não passava de um toco roído durante a noite (...) continuamos lutando, juntos, a Amarílis e eu. (ibidem)

O trecho, além de esclarecer e enfatizar como é a luta das plantas para sobreviver, contém um elemento importante: Caio e a flor lutam juntos. Essa indicação mostra que não apenas a flor tem de se manter em pé enfrentando as intempéries naturais que lhe vêm pela frente, mas também o escritor, já que de maneira distinta ele luta contra as novas condições que a aids lhe impõe, além, é claro, da labuta de jardineiro implicar num cuidado especial para com o jardim.

Após descrever a luta da Amarílis contra as dificuldades da natureza, Caio reflete sobre isso, mostrando novamente como ele aprende com o jardim e sua condição:

Mas quando você pensa que um perigo medonho passou é porque outro ainda pior está vindo? Oh, Deus. E o perigo-passado realmente deixou você mais forte

para o perigo-vindouro? E se só ficou o cansaço e se a Amarílis desistir? E se eu desistir e for cuidar das verbenas, cravinas e amores-perfeitos que acabei de plantar?

Aprendem-se coisas, eu dizia. Vezenquando, assustadoras. (ibidem)

Essas indagações que Caio apresenta mostram muito das suas incertezas de seguir enfrentando seus problemas, como o cansaço que pode abatê-lo e tirar essa vontade que tem de viver após descobrir que tinha aids. Ao colocar que vezenquando se aprende coisas assustadoras o autor reforça essa posição. Assim, o trecho mostra de certa maneira um Caio não inseguro, mas consciente do que pode acontecer dadas as suas circunstâncias físicas.

No entanto o parágrafo final da narrativa vai revelar e reiterar sua visão positiva sobre a vida, já que ele agradece, mesmo tendo medo e incertezas. E agradece não apenas aos deuses dos homens, mas também aos do jardim que auxiliam as flores a sobreviver:

Então eu agradeço, eu tenho medo e espanto e terror e ao mesmo tempo maravilhamento e outras coisas com e sem nome, mas agradeço. Aos deuses do jardim, aos deuses dos homens, aos deuses do tempo e até aos das ervas daninhas que nos fazem lutar feito tigres feridos fundo no peito, sim, eu agradeço. (ibidem, pág. 186)

O fato de agradecer até mesmo pelas ervas daninhas, que servem de figura opositora à vida tranquila e apaziguada, reflete também a postura sóbria e serena do autor, que sabe que essas adversidades fazem parte do cotidiano e que, independentemente do que ocorra, sempre estarão presentes. No final das contas, “a mensagem” que a crônica deixa é que Caio agradece por estar vivo enfrentando o inverno.

A questão do homonimato é respondida pelo trecho em que o autor cita o nome de sua irmã: “tem a mão mais antiga de meu pai, e também o ‘dedo verde’ de minha irmã Cláudia” (ibidem, pág. 184). Assim, Caio revela que ele é o autor, personagem e narrador da crônica.