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4 A vida pautando a obra

4.2 Autoficção de Doubrovsky

A fim de ancorar o estudo sobre as crônicas dramáticas de Caio, as quais estarão em íntimo contato com a vida pessoal do autor, este trabalho utilizará o conceito de autoficção de Serge Doubrovsky. Figueiredo explica como se deu a criação do respectivo termo:

Em 1977, Serge Doubrovsky, sentindo-se desafiado por Lejeune (1975, p. 31), que se perguntava se seria possível haver um romance com o nome próprio do autor, já que nenhum lhe vinha ao espírito, decidiu escrever um romance sobre si próprio. Assim ele criou o neologismo de autofiction para qualificar seu livro Fils. (FIGUEIREDO, 2007, pág. 2)

Segundo o teórico francês a principal característica da autoficção é a identidade de nome entre o autor, o narrador e o personagem. Para Doubrovsky, na autoficcção “é preciso chamar-se a si mesmo pelo seu próprio nome, pagar, se assim posso dizer, com sua própria pessoa, e não relegar-se a um personagem fictício” (apud BARBOSA, 2009, pág. 171, grifos do autor). Dessa forma, o teórico acredita que o homonimato entre personagem, autor e narrador é uma condição essencial para a definição da autoficção.

No entanto, o homonimato entre esses três indivíduos, que formam na verdade apenas um ser, não implica necessariamente que sejam recriados de maneira precisa os acontecimentos da realidade, não há uma busca assumida pela verdade.

Para Moraes e Azzi (2008, pág. 5), a autoficção “é definida como uma ficcionalização de si mesmo, num encontro paradoxal entre o protocolo nominal de identidade característico da autobiografia (tripla identidade) e o protocolo ficcional, marca do romance”.

As experiências do autor servem de arcabouço para a narrativa, mas não se trata necessariamente de uma condição essencial. Doubrovsky afirma que a autoficção é:

Uma outra maneira de se apreender. A partir de experiências vividas, de fato vividas, trata-se de escrever um texto. Somente o primado do texto é o que conta. Entra naturalmente uma parte de desejo autobiográfico, mas o desejo é sobretudo de criar um texto atraente ao leitor, um texto que se leia como um romance, e não como uma recapitulação histórica (...) A auto- representação não é aqui uma forma de se autodesculpar. Ela busca capturar (cativar?) a imaginação, a sensibilidade do leitor, para obter sua identificação com o personagem-autor, uma fascinada participação em sua vida. (apud BARBOSA, 2009, pág. 171)

Portanto, o próprio Doubrovsky admite que o essencial não é o pacto com a verdade, embora afirme que se trata de uma construção textual oriunda a partir de experiências vividas. O crítico literário e escritor “concebe a autoficção como uma criação essencialmente literária pelo ‘primado do texto’, ainda que pautada por fatos vividos (BARBOSA, 2009, pág. 171). Assim, essa colocação vai ao encontro da ideia da autoficção ser uma ficcionalização do sujeito, uma ficcionalização de si próprio. Figueiredo (2007) afirma:

Doubrovsky lembra que quando se escreve autobiografia, tenta-se contar toda sua história, desde as origens. Já na autoficção pode-se recortar a história em fases diferentes, dando uma intensidade narrativa própria do romance. (FIGUEIREDO, 2007, pág. 59)

Outro ponto importante da autoficção é o seu contato próximo com o leitor. Segundo Barbosa,

Na autoficção, ao contrário da autobiografia3, o leitor está presente não apenas como um provável “verificador” do fato histórico/verdade narrados, mas sim como um “participante” da própria vida e experiência do autor, também pela dupla demanda do texto autoficcional que ora propõe uma verificação de verdade que se imiscui na leitura (a ideia da debreagem referida por Lejeune), ora uma necessidade de reconhecimento de uma verossimilhança (a desembreagem) que o obriga a aceitar os fatos e por meio deles também se ver, como num espelho, e se inserir no texto lido. (BARBOSA, 2009, pág. 168-169)

Assim, verifica-se que o leitor passa a ter um papel bastante ativo e participativo, já que ele não é apenas um verificador da “verdade” contida na narrativa. O leitor não debruça sua atenção no texto para apontar dados corretos ou incorretos, mas sente-se como parte integrante da história, analisando criticamente a escrita. Para Barbosa (2009, pág. 169), “na autoficção, a postura mesma de um leitor de romance (por que não, uma espécie de bovarismo?) incita-o a se sentir participante do que lê”. Dessa maneira, o autor quer “infectar” seu leitor, deixando nele seus traços. De acordo com Barbosa, Doubrovsky não tem por finalidade contar sua vida, mas sim partilhar experiências com o leitor. O trecho de Doubrovsky evidencia essa posição:

O objetivo da minha escrita é ainda mais perverso: eu quero que o leitor se identifique comigo, que a escrita seja não, como pretendia Rousseau, uma forma de absolvição – para mim, não há nenhum Deus perante o qual devo me apresentar com meu livro – mas uma força de partilha; quero que o leitor, se fui bem-sucedido em meu livro, possa partilhar comigo o que pude viver. Esse é o ponto central de meu trabalho de escrita. Para mim, a literatura é fundamentalmente existencial. Já disse em algum lugar, não me lembro onde, que escrevo para morrer menos. (apud BARBOSA, 2009, pág. 172)

No ensaio “Lês Points sur lês ‘i’” (“Os pingos nos ‘is’”)4, de 2007, Doubrovsky reconhece que a autoficção se organiza num novo modo de conceber as relações do homem para consigo mesmo, muito em virtude dos contornos da pós-modernidade, em

3 A autobiografia é um termo cunhado por Philippe Lejeune em 1975 no livro “O Pacto autobiográfico” (Editora UFMG, 2008). De acordo com o teórico francês, a autobiografia é caracterizada pela identidade entre autor, narrador e personagem proposta pelo seu pacto autobiográfico estabelecido com o leitor. O pacto autobiográfico seria uma espécie de admissão de que o livro representa uma narrativa autobiográfica. Assim, o autor de antemão já indica ao leitor que se trata de um relato baseado na sua própria vida. Lejeune ainda afirmará que a autobiografia é principalmente uma narrativa com perspectiva retrospectiva, cujo assunto tratado é a vida individual. A condição de homonimato entre autor, narrador e personagem foi utilizada por Doubrovsky para construir seu conceito de autoficção.

4 Nesse estudo, Doubrovsky vai referendar as descobertas referentes à autoficção que já aparecia no seu romance Fils, assim como vai ratificar as pontuações do estudo genético de Isabelle Grell (“Pourquoi Serge Doubrovsky n’a pu éviter lê terme a’autofiction” de 2007) feito sobre o seu livro. No estudo de Grell, a autora irá estabelecer a obra de Doubrovsky como um divisor de águas para o estudo da autoficção.

detrimento de uma concepção mais histórica e clássica. De acordo com Barbosa (2009, pág. 173), a autoficção de Doubrovsky se insere “num contexto moderno em que a ideia de ‘centro’ foi abolida ou superada pela fragmentação do homem diante de sua história e de seu novo mundo”. Dessa maneira, para o escritor francês a autoficção seria uma espécie de “autobiografia pós-moderna”, já que o mais importante passou a ser a forma em que a história será contada, com suas técnicas de romance, e não a própria história em si. Segundo Philippe Vilain5,

São narrativas cuja sintaxe, pontuação e continuidade discursiva são abaladas para se adaptar ao ritmo do pensamento ou da memória. Trata-se, então, de uma maneira nova de apreender os fatos e as experiências vividas, na medida em que não se acredita mais em uma verdade única e um discurso coerente, mas em “uma reconstrução arbitrária e literária dos fragmentos esparsos de memória”. (apud BAHIENSE, 2010, pág. 2)

Outro artifício da autoficção consiste nas narrativas contadas no tempo presente e não no passado, como habitualmente ocorre com as autobiografias. Essa característica torna o texto mais envolvente, além de aproximar o leitor da história contada.

Também deve ser evidenciada a linguagem utilizada na autoficção. De acordo com Doubrovsky, os textos apresentam espaços brancos que interrompem a continuidade discursiva, o que demonstra que a sintaxe tradicional não é mais possível. Desse modo, a escrita autoficcional não se fixa no campo da narrativa do desenrolar de fatos, preferindo deformá-los, reformá-los (apud FIGUEIREDO, 2007, pág. 57). Essa particularidade confere ao texto autoficcional uma proximidade cada vez maior dos expedientes literários.