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A agricultura nos planos de governo

Como em Goiatuba soja virou arroz: um estudo de caso – COMPSGOL – Cooperativa Mista de Produtores de Soja de Goiatuba Ltda.

2.2 A agricultura nos planos de governo

A presença da agricultura nos planos do governo esteve submetida, após 1930, à dinâmica da indústria e do capital em geral (OLIVEIRA, 1987, p. 14-36), pois as políticas agrícolas estiveram assentadas nos planos estatais de expansão da indústria. Porque é esta a base na qual se estrutura a intervenção estatal no campo, cumpre analisar a participação do Estado na fundação da Compsgol a partir dos planos traçados para a agricultura.

Martins (1975, p. 69), justificando o apoio dos ruralistas ao Golpe de 1964, afirma que o fator principal que levou esses grupos a tal atitude foi a intenção de participar do Estado e poder influir em suas diretrizes econômicas; esse desejo surgiu, ainda, segundo

o autor, porque no período desenvolvimentista30 a agricultura esteve submetida a um colonialismo interno, definido pelo autor como as várias maneiras utilizadas pelo Estado, seja através do controle dos preços, seja através dos órgão reguladores da produção agrícola, para implementar a transferência de renda da agricultura para a indústria, configurando-se, nesse sentido, uma submissão da primeira à última.31Martins desenvolve essa reflexão questionando as abordagens dualistas que viam uma oposição entre economia de mercado externo e economia de mercado nacional, ressaltando que os artigos de exportação da agricultura não se vinculavam diretamente ao mercado externo, mas às medidas de controle de preços e a órgãos reguladores do Estado, que através de medidas econômicas realizavam a transferência de renda do setor agrícola para a acumulação industrial.

Órgãos oficiais responsáveis pela fixação de preços e pelo controle da comercialização dos artigos de exportação funcionam basicamente como meios reguladores da transferência de renda do setor rural para o urbano-industrial e da sua acumulação neste último. Assim sendo, mesmo os chamados ‘artigos coloniais’ não produzem vínculos econômicos tipicamente coloniais (externos) já que sua inserção no comércio internacional é mediatizada pela interiorização das funções metropolitanas e, conseqüentemente, pelo colonialismo interno. (MARTINS, 1975, p. 60. Grifos do autor).

Martins (1975, p. 71-72) conclui sua análise sobre a participação dos setores ruralistas na implementação do Regime Militar e da sua submissão às demandas do setor industrial com a seguinte afirmativa:

Em suma, apesar das motivações dos ruralistas, a alteração do regime não significou a implantação da viabilidade dos objetivos centrais do movimento, pois ‘preferiu-se continuar’. E uma vez que no programa governamental o Estado definiu-se por uma agricultura artesanal, isso significava que a agricultura empresarial continuaria desestimulada. (Grifos do autor)

Devemos considerar que tal formulação é de 1971 e não reflete os desenvolvimentos que a agricultura viveu principalmente após 1974, na perspectiva

30. A expressão período desenvolvimentista é utilizada pelo próprio Martins (1975) para caracterizar o período de vigência do modelo econômico de substituição de importação.

31. Martins (1975, p. 63-66), analisando o período de vigência do modelo de substituição de importação, explica que a descapitalização do campo não ocorreu como fruto do “... caráter diferencial da rentabilidade dos diversos setores econômicos.” Seria sim fruto do controle artificial que o Estado fazia dos preços agrícolas e mesmo de uma inserção desigual desse produtor no mercado. A afirmação é justificada, por Martins, através da fala de um produtor “quando compramos perguntamos ao comerciante qual é o preço e quando temos para vender perguntamos quanto paga” (MARTINS, op. cit., p. 66).

empresarial que o autor chama a atenção. O quadro da agricultura no final do “período desenvolvimentista” e início do regime militar é marcado por uma agricultura contemplada pelos planos do governo, submetida à dinâmica da indústria e estruturada para a acumulação neste setor. No plano político, o que se tem são os setores rurais organizados e desejosos de uma inserção no mercado com outra qualidade, que o autor define como se enquadrando dentro dos preceitos capitalistas. Nesse caso deve-se levar em conta que a análise de Martins está assentada sobre falas de lideranças de classe, ligadas aos principais setores agrícolas do país,32 os quais não representam o grupo analisado aqui. Voltar-se-á a essa discussão posteriormente.

A partir da definição de Martins (1975) sobre a posição da agricultura dentro dos planos do governo, podem-se aprofundar as reflexões relacionando a intervenção estatal ao padrão de acumulação vivido pelo Brasil no período ora analisado e, desta forma, perceber com clareza os interesses que se constituíam na elaboração das diretrizes para a agricultura. Para traçar tal reflexão, recorre-se às formulações desenvolvidas por Mantega (1992) na análise do padrão de acumulação no Brasil.

De acordo com a perspectiva econômica, os marcos de estruturação do regime militar retrocedem para antes de 64. Segundo o autor citado o padrão de acumulação que tem seu auge no regime militar começa a ser estruturado em meados dos anos 50. Assim, Mantega propõe a seguinte periodização: a etapa inicial de expansão monopolista (1956- 1961); a etapa de recessão (1962-1967), marcada politicamente pelo colapso do populismo e pelo golpe de 64; e a etapa do milagre brasileiro (1968-1973). Em seguida, ocorre a crise desse padrão de acumulação, que se confunde com o período de distensão política implementado pelo regime militar e culmina no plano político com a Abertura (MANTEGA e MORAIS, 1979).

O que caracterizou este período foi um processo de intensificação da industrialização, marcado pela crescente monopolização capitalista e assentado no setor de bens de consumo duráveis (departamento III), com forte presença do capital externo. O tratamento dado à economia neste período influenciou significativamente a política agrícola, como já apontado anteriormente, e a própria estruturação das cooperativas. Vale ilustrar que as políticas agrícolas eram implementadas ao sabor das crises surgidas no

32. Martins (op. cit., p. 63-66) cita no seu texto predominantemente lideranças de classe, que se expressavam no jornais de grande circulação (Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, principalmente) e ligadas à produção do açúcar, algodão, cacau, café, carne e leite.

processo de consolidação deste padrão de acumulação, mais do que propriamente fruto de um plano racionalizante traçado pelo governo (SZMRECSÁNYI, 1983, p. 223-239). Seguindo a proposta apontada até o momento, torna-se fundamental identificar o caráter das crises econômicas no período em questão para se ter claro o terreno em que as políticas agrícolas foram elaboradas, sem, no entanto, perder de vista os fatores políticos, fundamentais nessa elaboração.

Uma das manifestações das crises econômicas vividas pelo Brasil no período analisado está nas dificuldades enfrentadas no plano cambial. A manutenção da industrialização assentada no departamento III (DIII) e fundamentada no capital externo tinha um alto preço, pela necessidade de remuneração requerida pelo capital externo que chegava. Além da necessidade de remunerar este capital, havia a necessidade dos investimentos em infra-estrutura e nas estatais que minavam cada vez mais a capacidade de pagamento do Estado. Esta política de investimentos esteve assentada principalmente na máquina estatal, pelas dificuldades que enfrentou para garantir financiamentos pelo setor privado. Tal política, não por acaso, tem seu auge no chamado período do “milagre brasileiro”, no qual a conjuntura externa favorável viabilizou o financiamento externo da política econômica e o sucesso interno deste modo de intervenção econômica (MANTEGA E MORAIS, 1979).

A agricultura, nos planos do governo, fez parte deste processo de consolidação do padrão de acumulação e se desenvolveu ao sabor das soluções encontradas, pelo Estado, para as dificuldades na realização da acumulação, no caso, a manutenção de um câmbio favorável e o controle do preço dos alimentos. Evitaram-se, assim, pressões altistas nos salários, por parte dos trabalhadores, o que garantiu a grande acumulação requerida pelo grande capital e a perspectiva de, através da agricultura, estruturar um mercado para a indústria que se desenvolvia. Tal questão pode ser comprovada pela maneira como a agricultura foi apontada nos planos do governo. Segundo o I PND (1972-1974), os objetivos eram “... desenvolver agricultura moderna, empresarial, no Centro-Sul; tornar viável a agricultura nordestina (...) e modernizar as estruturas de comercialização e distribuição de produtos agrícolas” (NETO, 1997, p. 133). A intervenção do Estado estava concentrada principalmente na viabilização da agricultura moderna no Centro-Sul, que nos planos do governo passava pelo uso indiscriminado dos insumos modernos (SZMRECSÁNYI, 1983), e pela estruturação da rede comercial, para garantir, assim, mercado para as indústrias de bens de capital. No caso específico do nordeste, a política se

volta para a viabilização de uma agricultura que produzisse alimentos baratos para o trabalhador.

A partir de 1975, quando o período de auge do padrão de acumulação assentado no DIII chega ao fim e começa a viver sua grande crise, representada, como já afirmado, pela dificuldade de remuneração do grande capital, a perspectiva traçada para a economia também se altera. Neste momento presenciou-se a uma intervenção maior do Estado no campo, princípio presente no II PND (1975-1979):

Dentro deste novo quadro a que o Brasil tem de se ajustar, é reservado à agricultura e a pecuária um novo papel na estratégia de desenvolvimento, que passa a exigir muito mais do setor agropecuário (que se reconhece no plano estar revelando dinamismo e capacidade de reação aos estímulos de preços).

. . . .

Vemos aqui delineado o tríplice objetivo da estratégia governamental: responder às demandas do mercado de consumo interno; às necessidades de aumento das exportações; e fornecer estímulos à agroindústria. (NETO, 1997, p.134 e 135)

O II PND já apresentava um direcionamento e um controle mais direto da produção agrícola. Neste momento, devido às dificuldades enfrentadas para a realização da acumulação, que se agravam principalmente pela crise internacional do petróleo que dificulta a captação de capital através de empréstimos internacionais, o governo passa a direcionar e a incentivar a produção voltada para a exportação, como forma de manter o equilíbrio da balança comercial e de fornecer estímulos à agroindústria, garantindo uma centralização maior do mercado e desenvolvendo através desse setor formas mais elaboradas do controle dos preços agrícolas (MÜLLER, 1989 p.60-67).

Pode-se ver até aqui que as políticas agrícolas caminharam ao sabor da resolução dos problemas estruturais enfrentados pela política econômica brasileira. E a maior intervenção do Estado e os direcionamentos da políticas para o setor agrário estiveram mais preso à dinâmica da indústria e ao padrão de acumulação vigente do que propriamente a uma política estratégica, a longo prazo, de estruturação de uma agricultura moderna. Não se pretende dizer com isso que a estruturação de uma agricultura moderna não estivesse presente nos planos do governo, mas sim que a estratégia de implementação e a maneira como ela é estruturada esteve fundamentada nas necessidades da indústria e de seu padrão de acumulação, mais do que necessariamente de uma estratégia voltada diretamente para a agricultura (SZMRECSÁNYI, 1983.).

Na ausência de planos a longo prazo e através de uma política agrícola que se desenvolvia fundamentada nas dificuldades estruturais da economia é que se deu a

intervenção estatal no campo e nesse quadro esteve presente o produtor rural agindo politicamente para a garantia dos seus interesses frente ao Estado e a esta política agrícola. No plano político, o produtor rural aparecia como agente de expressão na consumação das políticas agrícolas, possuía espaço de negociação com o Estado, se não na elaboração das políticas agrícolas, pelo menos no que diz respeito à sua implementação. Tal afirmação pode parecer contraditória a partir do mencionamos antes, de que as políticas agrícolas estiveram vinculadas à dinâmica da indústria. Entretanto, se verá, a ausência de planos a longo prazo e a necessidade de se manter uma política econômica baseada na alta concentração de renda exigiram deste Estado a manutenção de uma política agrícola que garantisse o apoio dos setores rurais sem perder, é claro, o direcionamento econômico traçado.

2.3 O campo da política como espaço de elaboração das diretrizes para o setor