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Em janeiro de 2009, ao explicar-me sobre como se dava a passagem de uma categoria de idade para outra, Cornélio Pijapit, que naquele momento era o cacique da Aldeia Escalvado, se utilizou de um desenho feito por ele, no qual a figura da aldeia é semelhante às acima expostas, ou seja, o desenho muito se assemelhou ao gráfico de Gordon Junior (1996) e à fotografia de Crocker e Crocker (1994). Além disso, constatei esse formato nas viagens à Aldeia Escalvado. O croqui elaborado por Nelma Rolandes73 ilustra tal modelo.

Gráfico 2 - Croqui da Aldeia Escalvado (OLIVEIRA, 2008).

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Graduada em Artes pela Universidade Federal do Maranhão e integrante do Grupo de Estudos “Estado Multicultural e Políticas Públicas” (DEPSAN/UFMA).

A circularidade peculiar dessas aldeias é constatada de imediato, porém são poucas as tentativas de explicá-la. Em Melatti (1974) encontrei uma reflexão acerca dessa forma redonda, embora reconheça que essa questão é um mistério, já que ela é naturalizada pelos próprios “índios”.

Diante da pergunta “Por que a aldeia é redonda?”, feita a Mellati (1974, p. 1) por um jornalista da Gazeta Esportiva numa aldeia Krahô em 13 de janeiro de 1965, ele diz:

A pergunta era difícil de responder e nem eu e nem os índios ensaiamos de lhe dar uma resposta satisfatória. Perguntar a um índio craô porque faz sua aldeia redonda seria o mesmo que perguntar a queima roupa a um civilizado por que, entre nós, os homens usam calças.

As hipóteses mais elucidativas que o autor chega referem-se ao respeito aos costumes e a solidariedade da comunidade. Primeiramente, à pergunta “Por que a aldeia é redonda?”, Melatti (1974) sugere que a resposta está associada aos costumes e sua continuidade temporal, logo os “índios” afirmarão: “porque os antigos também faziam assim”. Porém, esta resposta parece não satisfazê-lo, pois apenas retruca a pergunta. Sendo assim, a partir de informações de um líder indígena Krahô, o autor propõe que esta pode estar relacionada às relações de solidariedade que estes sujeitos devem nutrir entre si. Melatti (1974, p. 1) então coloca que...

(...), uma vez um líder indígena repreendia os demais habitantes da aldeia porque não estavam, todos eles dando ajuda coletiva no plantio das roças de cada família. Ele lhes perguntava mais ou menos assim: “Por que as casas estão em círculo? Por que nos reunimos no pátio?” Suas palavras mostram que o líder associava a forma da aldeia à solidariedade que devem manter entre si os habitantes da mesma.

Como decorrência destas explicações, que colocam a herança ancestral e a solidariedade como “definidores” do formato da aldeia, emergem-se categorias que nos ajudam a pensar o nosso objeto. Se por um lado a expressão herança ancestral pode remeter à idéia de defesa da comunidade indígena como um todo em relação aos de fora dessa comunidade, por outro, ao serem exigidas que as relações sejam solidárias intra- comunidade percebe-se que existem divergências internas, as quais podem ser equacionadas pelo estabelecimento de alianças.

Uma aldeia circular para essas populações parece dificultar possíveis incursões ofensivas de inimigos, além de prover relações entre grupos domésticos74 que sejam econômica e culturalmente significativas. Melatti (1974, p. 3, grifo nosso) considera que a forma circular da aldeia seria a mais econômica para representar, simbolicamente, as diversas oposições inerentes aos “Timbira”, já que equacionaria comportamentos nas relações entre as diversas sub-unidades.

O congregar-se numa aldeia juntamente com outros grupos domésticos devia de ser essencial para a defesa. Além disso, as pessoas nascidas no seio de um mesmo grupo doméstico ou de um segmento residencial não podem casar ou ter relações sexuais entre si, o que as obriga a procurar seus amantes ou cônjuges fora de seu segmento residencial. Tais contactos se tornam mais fáceis se vários segmentos residenciais se reunirem na mesma aldeia. Essa proibição de relações sexuais entre pessoas nascidas no mesmo segmento, não explicado pelos craôs, mas visível através de recenseamento, constitui uma maneira de obrigar os membros de um segmento a fazerem aliança com os membros de outro, estreitando assim a solidariedade entre eles. Assim, o casamento entre núcleos domésticos de diferentes segmentos residenciais e sua reunião numa aldeia atenderia às necessidades de defesa.

O caso específico em questão nos ajuda em nossa dissertação na medida em que a partir dele é possível entender que se a aldeia é vista como um compósito de grupos internamente diferenciados que se relacionam, possuem regras de relacionamento e se solidarizam, é possível inferir que a ida para a cidade de alguns indígenas pode ser significada também como um desdobramento de relações com a alteridade já presentes em outros momentos. O estabelecimento de alianças parece ser a chave para compreender tanto situações intertribais como interétnicas75.

Após essa breve apresentação sobre a disposição espacial de uma aldeia “Timbira”, passo a especificar as diversas unidades que a compõem. Ressalto que grande parte das informações aqui apresentadas foram obtidas entre os Ramkokamekrá-Kanela, em momentos e por autores variados, e talvez essas não lhes sejam exclusivas.

74 Sobre essas divisões entre os “Timbira” (familiar elementar, grupo domestico e segmento residencial)

falaremos adiante.

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Utilizo o termo “intertribal” para fazer referência às relações entre indígenas, já o termo “interétnico” é utilizado em relação à interação entre indígenas e não-indígenas.

Os apontamentos feitos por Nimuendajú (1944) revelam a complexidade da organização social e ritual dos “Timbira”,76 os quais teriam um elaborado sistema de metades, compreendendo “tanto metades exógamas (matrilinares) quanto não-exógamas, de função cerimonial, definidas por outros critérios que não a descendência” (NIMUENDAJÚ & LOWIE, 1937 APUD GORDON JUNIOR, 1996, p. 7)77.

A leitura de Nimuendajú (2001) e Gordon Junior (1996) aponta também para outro aspecto: como outros “Timbira” (com exceção dos Apinayé), os Ramkokamekrá-Kanela são divididos em metades exogâmicas matrilineares, pela descendência, e uxorilocais78, pela residência. As metades mais evidenciadas são as do oeste, denominada Harãkateye, e as do leste, chamada Köikateye. Do lado leste encontram-se os subgrupos Kupê (tribo estrangeira), Kétre (papagaio anão) e Aucét (tatu). No lado oeste tem-se os Codn (Urubu), Cepré (morcego) e Haká (jibóia)79. Como afirma Gordon Junior (1996, p. 8), outras “unidades sociais” agrupam os indivíduos Ramkokamekrá-Kanela;

São elas: (a) a família individual; (b) a família extensa matrilinear; (c) metades exógamas matrilineares; (d) metades “da estação chuvosa” (rainy-season moieties), não-exógamas; (e) os grupos do pátio (plaza groups); (f) as metades do pátio (plaza moieties); (g) as classes de idade; (h) as metades de classes de idade (enfeixam as classes de idade); e finalmente (h) seis sociedades masculinas.

A existência dessas diversas unidades diferenciadas pode indicar que constantemente esses grupos estão acionando estratégias para se relacionar com a alteridade.

A família individual, regulada pela regra de residência uxorilocal, compõem-se de um homem, uma mulher e seus filhos. O conjunto de famílias individuais, que podem ocupar uma mesma residência, forma o que Nimuendajú chamou de “família extensa matrilinear”. Às famílias extensas80 cabem as tarefas de cooperação, principalmente pela ajuda prestada pelo homem que ingressa na família da esposa pelo casamento. A situação

76 Para compreender mais detalhadamente os aspectos da organização social dos Ramkokamekrá-Kanela é

relevante o exemplar trabalho de Nimuendajú (2001) intitulado “A corrida de toras dos Timbira”.

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A “descendência”, juntamente com a “aliança”, serão considerados relevantes para compreender a dinâmica dos grupos “Timbira” principalmente na segunda metade do século XX.

78 Nimuendajú (2001) chamava de “matrilocal”. 79

Ver Nimuendajú (2001, p. 158).

de “ajudante dos sogros” permanece até o nascimento do segundo ou terceiro filho, quando uma casa é construída pelo esposo, a qual fica geralmente do lado ou atrás da casa dos pais da esposa.

Ao considerar que a família individual é a unidade básica das aldeias “Timbira”, apreende-se que as relações fora desta seriam caracterizadas como relações com a alteridade. A dinâmica das altamente complexas “unidades sociais” dos Jê (incluindo aí os “Timbira” e por conseqüência os Ramkokamekrá-Kanela) indicam a necessidade de manter relacionamentos com outras unidades que não fazem, a principio, parte do meu grupo específico, o que se evidencia em diversas instituições desses indígenas, como a nominação e a amizade formal.

A “nominação” tem regras especificas entre os Ramkokamekrá-Kanela, pois se dá pela linha materna para os filhos e pela linha paterna às filhas81. Esta característica é sensivelmente diferente entre os Krahô, a qual foi resumida por Melatti (2007, p. 6) da maneira que segue:

Quanto às regras para a transmissão do nome pessoal, o indivíduo do sexo masculino recebe nome daqueles parentes consangüíneos a que aplica o termo keti, o qual engloba, entre outras categorias de parentesco, o irmão da mãe, o pai da mãe, o pai do pai e seus primos paralelos. Já o indivíduo do sexo feminino recebe o nome pessoal das parentas consangüíneas a que aplica o termo de parentesco tëi, que abrange, entre outras categorias de parentesco, as de irmã do pai, filha da irmã do pai, mãe do pai, mãe da mãe e suas primas paralelas.

Colocando o nominado em relação com uma unidade familiar (do nominador) que não é a sua família individual, tal especificidade caracteriza a busca por estabelecer alianças, a qual pode ser visualizada pelos processos de consanguinização e afinização dos agentes. Se nessa situação o nominado se distancia relativamente de sua família progenitora, se afinizando, ele também passa ao mesmo tempo por um processo de incorporação, consangüinização, em outras unidades familiares (a do irmão da mãe ou irmã do pai, por exemplo) e localizações sociais.

Nesse processo, a “necessidade de reciprocidade” (NIMUENDAJÚ, 1944) vigoraria, pois dar o nome ao filho da irmã implica nesta ficar comprometida a nomear ou

81 Esta característica é obedecida quando ocorre na aldeia o chamado “batismo de branco”, que é quando um

não-índio recebe na aldeia um nome, juntamente com uma família, e suas atribuições. Observei que a escolha do nominador respeita a hierarquia etária.

nominar a filha do nominador. Lê-se no trabalho de Gordon Junior (1996, p. 17) que “Nimuendajú ressaltava que os nomes eram transmitidos por linha materna no caso de um menino e linha paterna no caso de uma menina”.

Segundo Melatti (1976), ao serem nominados os indivíduos são inseridos em duas grandes metades82 (Wakmenye ou Katamye, entre os Krahô), sendo que esta classificação não os imobiliza socialmente, já que outras unidades existem e obedecem outros critérios de inserção, os quais para serem identificados demadam pesquisas específicas sobre seus mecanismos. Acredito que é suficiente, neste momento, apenas indicar que a leitura de Nimuendajú (2001, p. 150-160) sugere que entre os Ramkokamekrá-Kanela as duas grandes metades seriam Kámakra, relacionada aos Kóikateye, e Atúkmakra, vinculada aos Harãkateye, assim caracterizadas83:

KÁMAKRA ATUKMAKRA Leste Oeste Sol Lua Dia Noite Estiagem Chuvas Fogo Lenha Terra Água

Tinta vermelha Tinta preta

Quadro 1 – Designação das metades entre os Ramkokamekrá-Kanela

O evento denominado “corrida de toras”84 deixa claro que a classificação em determinadas metades não são tão imobilizadores, pois a localização dos sujeitos durante a corrida vai depender da festividade. Logo, se um sujeito era meu “adversário” em uma corrida, em outra pode ser meu “companheiro”. Esta cerimônia não é entendida como uma competição, pois serviria para evitar conflitos entre grupos divergentes. Todavia, aquele que “vence” recebe grande reconhecimento na aldeia e, geralmente, a ele é atribuída a

82 Como lê-se em Nimuendajú (2001, p. 157), “a qualidade de membro é transmitida juntamente com o nome,

de tio materno para sobrinho”. E acrescenta que “cada indivíduo, independente do sexo, possui um conjunto de nomes, variando de dois a oito, geralmente recebidos no nascimento” (NIMUENDAJÚ, 1946: 77 Apud Gordon Júnior, 1996, p. 17).

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Nimuendajú (2001, p. 155) coloca que essas metades organizam as classes de idade no pátio após o encerramento dos ciclos de iniciação. Sobre estes ciclos de iniciação ver Oliveira (2008, p. 38-61).

84 Trata-se de uma cerimônia em que os rapazes indígenas, cada um na metade que lhe é devida, correm com

toras de buriti nos ombros. Geralmente ocorria diariamente. Mas, atualmente este evento, entre os Ramkokamekrá-Kanela, concorre com a prática do futebol. Sendo que nos rituais ele é elemento fundamental e sempre presente.

qualificação de “o corredor”. Nimuendajú (2001, p. 182) sugere que a “corrida de toras”, menos que uma competição, é um exercício corporal de solidariedade física e moral.

Os Timbira fazem parte dos índios que, em combate, se empenham ao máximo para não deixar nenhum companheiro ferido ou morto nas mãos do inimigo. Até os cadáveres dos tombados, na medida do possível, eram não apenas retirados em segurança, mas levados para casa a fim de se poder enterrá-los de acordo com o cerimonial dominante. A corrida de toras poderia ter nascido da necessidade de exercitar-se para semelhantes circunstâncias. Entre os Kaingang do rio Ivahy, vi como os garotos treinavam escaladas da seguinte maneira: “Como vocês procedem se o jaguar vier?”, perguntou um, depois do que, todos, ao desafio, escalaram as árvores. “E como vocês procedem se um companheiro chamar por socorro?” Imediatamente todos tornaram a descer e saltar com a maior rapidez. Assim que um Timbira fazia a pergunta análoga: “Como vocês procedem se seu companheiro tomba em combate?”, era inventada a corrida de toras. Talvez o costume, acima mencionado, de caracterizar torinhas Para-re como seres humanos, seja uma recordação daquele tempo primordial, quando ainda se sabia que as toras de corrida representavam, sobretudo, homens.

Na citação pode estar uma explicação do porquê desse evento, sobre o qual, segundo Nimuendajú (2001, p. 182), não se encontra justificativa em suas mitologias e crenças. O cerimonial da corrida parece cumprir uma função pragmática e objetiva.

Algumas especulações sobre o caráter da “corrida de toras” consideraram-na como prova de casamento, esporte, jogo, competição, dança, prova de força, ginástica e rito. Melatti (1976, p. 11, grifos nossos) nos ajuda nesse dilema classificatório ao concluir:

Sem dúvida a corrida de toras diverte aqueles que a praticam e também desenvolve certas potencialidades do corpo humano. Sob esse ponto de vista é um esporte. Mas parece que lhe falta o aspecto competitivo do esporte, ou seja,

do esporte como jogo.

Lévi-Strauss (1970, pp. 52-55) tenta fazer uma distinção entre rito e jogo. Segundo ele, o jogo é disjuntivo: parte de uma situação de igualdade de condições entre os rivais e termina pela manifestação de uma desigualdade. Por exemplo, o jogo de futebol: os dois times têm o mesmo número de jogadores e devem seguir as mesmas regras, mas normalmente a partida termina com um vencedor e um derrotado. O rito, por outro lado, seria conjuntivo: parte de uma dissociação e termina numa união, pois todos os participantes "ganham". Ora, não se pode dizer que as corridas de toras comecem em igualdade de condições. É certo que as toras, na medida do possível, têm o mesmo peso; mas o número de participantes de cada metade não é necessariamente o mesmo. Há corridas que começam com a vantagem inicial de uma das metades, que parte na frente. Há outras em que as metades trocam, durante o percurso, em locais previamente estabelecidos, suas toras, desfazendo qualquer vantagem que uma delas tenha conseguido até o momento da troca. Além disso, quando um corredor, com a tora ao ombro, percebe que o rival, que está com a outra tora, é seu hõpin (um amigo ritual), não pode correr muito, para não fazer seu "amigo" se cansar. Assim, há uma diferença inicial, mas também há uma diferença final,

pois quase sempre uma das metades chega na frente. Mas sua vitória não é festejada. Maybury-Lewis (1965, pp. 85-88) notou essa falta de espírito competitivo dos craôs e contrastou-a com o comportamento oposto dos Xerénte, que seria resultado da influência dos civilizados. Convém notar, entretanto, que os craôs, quando não correm, são atentos observadores de seus companheiros e conhecem a capacidade de resistência e velocidade de cada um. Se nos detivermos nos aspectos simbólicos, verificaremos que as metades também são diferentes nesse nível, pois normalmente uma parece representar a sociedade e a outra, a natureza. Mas, apesar da disputa, ambas na verdade se unem para levar algo para dentro da aldeia. Sob esse ponto de vista, o resultado

da corrida é uma conjunção.

Portanto, as corridas de toras têm ao mesmo tempo o aspecto de jogo como o de rito.

Este cerimonial acontece entre os Ramkokamekrá-Kanela, porém é notório que a sua freqüência vem diminuindo85 na medida que instituições exógenas exigem outra organização do tempo pelos indígenas: o calendário exigido pela escola é exemplar dessa assertiva, pois causam alterações de ordem diversas (de data, de participantes, de horário, etc). Porém, mesmo com alterações, as “corridas de toras” persistem e podem ser hoje presenciadas na Aldeia Escalvado. Nestas os corredores se dividem em dois grupos variáveis segundo o ritual que elas estejam iniciando ou finalizando86.

Como se percebe na citação anterior, a categoria hõpin significa “amigo ritual” ou “compadre”. Estas categorias têm relação direta com uma instituição nativa que foi denominada “amizade formal”, a qual tem a função de regular o comportamento dos sujeitos e seus relacionamentos com aqueles que não são da família nuclear.

Além da nominação87, que já tem influência nas determinações dessa instituição, outros mecanismos também são utilizados para sua manutenção. À amizade formal há a possibilidade de escolha pessoal, a qual pode ocorrer durante os rituais de iniciação. Conforme Gordon Júnior (1996, p. 19);

85 Esta hipótese refere-se aos comentários de parte dos professores não-índios da Aldeia Escalvado, que

trabalham há bastante tempo nesta aldeia. Afirmam que os mais novos não querem mais participar da cultura, querem apenas jogar futebol.

86 Maiores informações sobre a “corrida de toras” do Ramkokamekrá-Kanela e Krahô, respectivamente, são

conseguidas em Nimuendajú (2001) e Melatti (1976).

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A relação entre nominação e amizade formal ficou clara em uma situação que me foi relatada de maneira inesperada durante um jogo de futebol, do qual eu participava como jogador na Aldeia Escalvado em julho de 2008. Em determinado momento do jogo, com os “nervos a flor da pele”, eu comecei a reclamar com um dos jogadores indígenas de minha equipe. Sem causar maiores constrangimentos, um outro indígena chamou-me e disse que eu não poderia falar daquela forma, pois ao receber o nome “Ãmcró” em meu batismo na aldeia, tinha que respeitar seus potenciais “amigos formais”.

Uma segunda maneira de adquirir amigos formais, é através da escolha pessoal, entre iniciandos da mesma classe de idade, durante as cerimônias do Pepyê. Se dois iniciados desejam estabelecer o laço, eles passam por um pequeno rito que consiste em mergulhar no riacho, de costas um para o outro, nadar em direção oposta e ao emergirem, encararem-se mutuamente.

Nota-se que nessa relação dois critérios são exigidos, o respeito e a solidariedade. Ambos serão a base do relacionamento entre os sujeitos, já que estes não poderão “tirar brincadeiras” um com o outro, mas sempre manterão o dever de proteger seu “amigo formal”, ao qual deve-se todo respeito88.

Acredito que outro elemento pertinente para compreender as alianças desses indígenas diz respeito à presença da instituição que constituiu o denominado “chefe honorário”, já que este também sai de seu grupo rumo a outro89. Sobre esta forma de estabelecer alianças Melatti (1978, p. 350) descreve que;

Havia homens que se casavam em outras aldeias e que lá tinham filhos, gerando uma ligação entre os dois grupos locais. Podia haver também ocasiões em que duas aldeias se sentissem ameaçadas por uma terceira, o que as levava a uma aproximação. Essa aproximação por casamentos ou interesses comuns era, provavelmente, selada com a aclamação de chefes honorários.

O indivíduo, ao sair de sua aldeia, portanto, podia ter os destinos mais diversos: encontrar a morte nas mãos de inimigos, conseguir o afeto de uma mulher numa aldeia estranha e lá passar a morar, constituindo uma ponte para o estabelecimento de relações amistosas entre as duas aldeias; e podia, mesmo dependendo dos motivos que o haviam levado a sair da aldeia de origem, voltar- se contra esta; podia também, voltando a sua aldeia de origem, tornar-se um defensor da outra entre os seus, um homem apto para se tornar chefe honorário da aldeia que o havia abrigado.

Melatti (1978) ainda coloca que os chefes honorários poderiam ser tanto do sexo masculino como do feminino/ ser um adulto ou um imaturo. O que se coloca como fundamental é a aclamação90 do sujeito pela aldeia que o recebe. Neste sentido, essa ponte potencial deve ser significada no contato.

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Presenciei uma situação dessa entre Apanjêkrá-Kanela em agosto de 2002.

89 Essa situação e densamente trabalhada por Azanha (1984) e Melatti (1978).

90 Melatti (1978, p. 335) coloca que “o indivíduo que recebe a chefia honorária é nela investido mediante um

rito. Em primeiro lugar é conduzido ao ribeirão da aldeia, onde aqueles que o estão fazendo chefe (os homens

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