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3.2
­
Aleatoriedade
enquanto
portal
simbólico
para
a
imaterialidade
(ou para
a
espiritualidade)
em
Tetragrammaton
IV


Na peça Tetragrammaton IV, a cosmologia boehmiana pode e deve ocupar este lugar referencial, principalmente porque, neste caso, esteve na origem de todo o material musical gerado. Esta obra é composta por três andamentos e é associada aos três Princípios da Essência Divina propostos por Jacob Boehme.

Há três coisas que a mente tem em si e a regem; mas a mente em si mesma é a vontade desejosa, e as três coisas são os três reinos ou os três princípios. Um [o primeiro] é eterno; o

segundo também é eterno; e o terceiro é perecível: o um [ou o primeiro] não tem início algum; o segundo é engendrado no eterno e sem início; e o terceiro tem um início e um fim, e quebra- se [ou rompe-se] de novo.(BOEHME, 2006: p.259)

Nesta obra, temos a utilização das caixas de diálogo apenas no primeiro e no segundo andamentos, respectivamente, Cântico de Maat e Limbus Spectralis. O VITRIOL, o terceiro andamento, além de não apresentar eventos de indeterminação, difere-se também pela complexidade técnica ainda mais vigorosa, tendo em vista que a instrumentação do discurso musical desenvolve-se, neste andamento, com intensa actividade por todo o setup, de forma simultânea e com intensa variação tímbrica e intervalar quanto às combinações dentro do mesmo, exigindo do percussionista uma elaboração virtuosística num grau elevado.

Tendo em conta que o Terceiro Universo boehmiano representa o mundo em que vivemos, imbricado com os outros dois universos – no nosso caso, os dois andamentos que antecedem VITRIOL –, observamos nas estratégias composicionais de Victorio a elaboração imagética deste mundo material. Por outro lado, as “janelas” anteriormente abertas por Victorio, tanto em Cântico de Maat quanto em Limbus Spectralis, na forma do discurso indeterminado e improvisatório expresso nas caixas de diálogo, simbolizam evidentemente a efígie da conexão com o mundo espiritual.

Temos no primeiro andamento uma atmosfera obscura, densa e agressiva, caracterizadora do engendramento universal. São designados os materiais musicais com maior complexidade rítmica, caracterizando um discurso vincado pela sucessão de compassos e estruturas rítmicas irregulares.

Com uma paisagem rarefeita, o segundo andamento distingue-se do primeiro quanto ao carácter. Apresenta maior fluidez e imprecisão rítmica e temporal, representando a imaterialidade do mundo espiritual. Tal figuração valoriza-se ainda mais não só pela utilização do vibrafone associado ao tam-tam, como também pela transmutação tímbrica nestes instrumentos, ora sendo abordados com o cabo das baquetas, ora com as mãos (no tam-tam). Além disso, o uso do motor em algumas secções de progressões de acordes valoriza ainda mais os contrastes tímbricos num único instrumento que neste episódio é utilizado para simbolizar a infinitude metafísica universal.

Esta conexão extragerativa do mundo material com o Divino é representada no terceiro andamento de Tetragrammaton IV através da amálgama tímbrica entre os membranofones utilizados (Primeiro Universo boehmiano representativo da acerbidade ou força negativa) e o vibrafone (Segundo Universo boehmiano, fonte da luz protectora e celestial ou força positiva). Sendo o tam-tam o único instrumento presente em toda a obra, percebemos a representatividade da magnitude divina neste idiofone, caracterizado por uma grandiosa sonoridade, no que se refere à pressão sonora e a sua acentuada gama de timbres e harmónicos.

[…] a utilização do tam-tam como vetor na obra se dá não como Deus, mas como reflexo de

Deus pela presença ininterrupta, pelos desdobramentos de harmônicos quase infinitos (a cada ataque próprio e a cada sonoridade que surge refletida em seus harmônicos involuntários). 21

Há que se dar particular atenção ao inesperado início do terceiro andamento, propiciado pela brusca mudança de carácter trazida pela utilização dos wood-blocks em dinâmica f. Mesmo que na performance eles devam estar interligados, pela necessidade de se retratar nesta obra a tri-unidade destes três universos, o momento deste surgimento desperta-nos – talvez de um belo sonho – para uma árdua e desafiadora factualidade, através do seu timbre penetrante, agressivo, muito distinto das paisagens sonoras vivenciadas anteriormente. Este desafio caracteriza fundamentalmente a execução deste andamento, levando à conciliação entre estes universos tímbricos distintos, correspondentes ao Primeiro e ao Segundo Patamares da Essência Divina, segundo Boehme.

O ‘portal modulatório’ entre estes dois universos é representado em VITRIOL pelas maracas, apresentando sonoridade relativamente indefinida quanto à articulação, e significativamente ligadas à conexão com o mundo espiritual, no universo ritualístico dos índios. Através deste pivot ritualista, a Luz Divina manifesta-se, no nosso caso, no vibrafone e o percurso evolutivo da natureza é representado através da sonoridade das maracas, simbiotizadas nos demais membranofones, em substituição das baquetas convencionais. Este recurso é muito conhecido dos percussionistas da West-Side Story, de Leonhard Bernstein, embora aí se encontre num contexto etnográfico estilizado, muito distinto do de Victorio, na presente obra.

É evidente que as associações estabelecidas, por mais que a obra remeta claramente o seu conteúdo a uma referência filosófica, são especulativas, podendo outro intérprete encontrar caminhos muito distintos dos percorridos acima, no intuito de buscar alegorias simbólicas que auxiliem a interpretação de Tetragrammaton IV.

– Modulação/Transfiguração

A terminologia “modulação” é utilizada geralmente na música para expressar a mudança de um centro tonal, tendo como referência a estrutura da harmonia de tradição ocidental. No século XX, a partir de Elliot Carter, passa a ser utilizada mais frequentemente a terminologia “modulação métrica” para a alteração de um pulso rítmico inicial motivado pela artificialização rítmica elaborada dentro do mesmo, constituindo, portanto, um “ritmo pivot” para que se estabeleça um novo pulso e um novo andamento.

Esta concepção de modulação poderia ser estendida às demais alterações ou explorações timbricas e motívicas recorrentes no trabalho composicional ou interpretativo em geral. Nessa medida, utilizaremos no âmbito desta investigação a terminologia modulação para expressar as variações ou transmutações nos aspectos tímbricos, motívicos, métricos e rítmicos para a obra Tetragrammaton IV, por apresentar no seu discurso musical uma intensa diversidade.