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2. ALENCAR: O DEPUTADO QUE SE DAVA A FAZER ROMANCES

2.2 O Alencar escritor

O romance, como eu agora o admirava, poema da vida real, me aparecia na altura dessas criações sublimes, que a Providência só concede aos semideuses do pensamento; e que os simples mortais não podem ousar, pois arriscam-se a derreter-lhes o sol, como a Ícaro, as penas de cisnes grudadas com cera. (Como e porque sou romancista?)

Tentaremos agora fazer um esboço da produção alencariana no campo das letras e de como surgiu sua vocação para a literatura.

Aos treze anos, Alencar veio para São Paulo estudar direito acompanhado do primo Tristão de Alencar Araripe, já acadêmico, e um escravo de confiança, a seu serviço, cuja linguagem lhe serviria de modelo para o moleque Pedro de O Demônio Familiar.

Em São Paulo, lia muito e queixava-se da escassez de livrarias e de gabinetes de leitura, ou bibliotecas, bem como das dificuldades nas comunicações com a Europa, razão pela qual tanto tardavam a chegar as produções literárias bem como do alto preço dos livros. Lia muitos livros do amigo Francisco Otaviano e segundo Magalhães Júnior (1977, p. 31) “tal fome de leitura explica o seu período de aparente misantropia, o seu alheamento do meio acadêmico, a sua indiferença pelas noites de cinismo que ia até o amanhecer, entre fumaças de cigarros, anedotas e narrativas das últimas aventuras estudantis”. Mas a veia de romancista surge em 1848, ano em que fez uma viagem ao Ceará inspirando-se para escrever seus romances de cunho regionalista.

Quando termina o curso de direito entre 1849-1850 continuou a colaborar nos Ensaios literários escrevendo traços biográficos de Padre Filipe Camarão, gênese que para Magalhães Júnior (1977, p. 35) “marcaria parte considerável da obra de Alencar talvez a

melhor dela: a da exaltação das virtudes indígenas e da idealização romântica dos primitivos habitantes do país”. Tal inspiração é revelada por Alencar:

Quando a pena hábil de escritores de nota se ocupa em desenhar a figura histórica dos brasileiros distintos que se haviam unido ao progresso das letras, teve por grave descuido deixar-se mudo e adormecido no fundo das tradições nacionais, o vulto guerreiro desse índio, que se revelava num caráter tão belo. (apud. Magalhães Júnior, 1977, p. 36)

O escritor ainda relembra que se inspirou em Filinto Elisio e Almeida Garret: “Alguma coisa que temos lido nestes mestres da língua nos chegou para colher do estilo da literatura do século e sua feição geral, seus tons e cores locais, e a sua expansão que lhe dá um cunho de nacionalidade” (op. cit p. 38). Em meio as suas tentativas literárias, o escritor ingressou no jornalismo como folhetinista do Correio Mercantil em 1854.

A maioria dos escritores brasileiros do século XIX escreveram em jornais antes de se tornarem romancistas, dramaturgos ou poetas consagrados, com Alencar não foi diferente. Sua estreia como cronista se deu com as crônicas Ao correr da pena, publicadas entre 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855 no Correio Mercantil , no qual escreveu 37 crônicas. Durante sua passagem pelo Correio Mercantil, Alencar apresentava semanalmente os principais acontecimentos ocorridos na Corte. Dessa forma, num único folhetim podiam estar lado a lado, romances, notícias políticas, econômicas, culturais, sociais e também educacionais.

Por ocasião do aniversário de D. Pedro II em 03/12/1854, Alencar enaltece no folhetim as qualidades do monarca:

“O povo brasileiro que, como um filho reconhecido, veio aos degraus do trono para beijar a mão ao pai da Nação, para agradecer-lhe os benefícios recebidos e pedir-lhe ainda a direção, a paz, o trabalho, a instrução, a indústria, a colonização, e todos esses germes de civilização, que o país encerra no seu seio, e que serão um dia fecundados pelo pensamento criador do seu governo” (op. cit. P. 47)

A última crônica de José de Alencar nesse jornal sai com alguns trechos censurados, pois o escritor se posicionava em relação à política e à economia do país, o que leva o cronista a se afastar do Correio.

completamente diferente. O cronista, que informa e comenta os acontecimentos da cidade, da política e do mundo, começa a dar lugar ao romancista. O escritor da cidade, o jornalista que defendia a ordem pública, a vinda de colonos imigrantes, a implantação da indústria, que criticava a especulação e a fraude no mercado de ações praticamente desaparece nessas últimas crônicas.

Sem abandonar o jornalismo, ele não voltará mais à crônica. No ano de 1856 torna- se redator chefe do Diário do Rio de Janeiro- que só publicava anúncios e por isso foi apelidado de “Diário do vintém ou da manteiga”, periódico que poderia ser chamado “Diário da civilização do Rio”, tal a soma de informações que dá sobre o desenvolvimento progressivo da corte (MEYER, 1996). Ao final do ano escreve seu primeiro romance- folhetim, Cinco Minutos, publicado naquele jornal. O grande sucesso viria um ano depois com O Guarani.

A Comédia Brasileira (1857) foi um artigo escrito após seu grande sucesso com a peça O Demônio Familiar. Nesse texto, Alencar explica a sua investida no teatro brasileiro, pois o Brasil não possuía produções nacionais e para o escritor, nesse período de formação da Nação e dos processos civilizatórios advindos com a modernidade, “a verdadeira comédia, a produção exata de uma época, a vida em ação não existe no teatro brasileiro” (p.126).

O escritor concebe sua iniciativa no teatro como uma missão, um dever patriótico: “Aqueles que Deus marcou com o selo da inteligência não devem parar diante da indiferença do presente; o homem que tem uma pena deve fazer dela um alvião [espécie de picareta, de enxada] e cavar o alicerce do edifício que os bons filhos erguerão à glória de sua pátria.”

Entretanto, tal missão mostra-se bastante árdua e decepcionante em Benção Paterna:

Todos gastam o melhor de seus anos correndo loucamente atrás de um fogo-fátuo que brilha nas noites de vigília; atrás de uma sombra que a esperança chama a glória, e que a realidade com um sorriso de escárnio diz ser apenas “a velhice prematura”.

Além disso, na Comédia Brasileira o autor demonstra os seus objetivos ao escrever a peça O Demônio Familiar:

A verdadeira comédia, a reprodução exata e natural dos costumes de uma época, a vida em ação não existe no teatro brasileiro. Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui buscá-lo no país mais adiantado em civilização, e cujo espírito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira, na França. Era preciso que a arte se aperfeiçoasse tanto que imitasse a natureza; era preciso que a imaginação se obscurecesse para deixar ver a realidade.

Tentaremos compreender essa “realidade” ou melhor essa “realidade idealizada” tão almejada por Alencar quando colocou no palco um escravo analfabeto que engana a todos e um senhor que liberta o escravo num momento em que se discutia a abolição dos escravizados.

Benção paterna não é exatamente um texto autobiográfico, mas é carregado de pessimismo e desencantamento pelo mundo das letras e mais acentuadamente pelo mundo da política do qual Alencar fazia parte.

Nesse prefácio, o escritor retoma suas idéias sobre progresso e história da literatura brasileira a partir da sua produção, e a divide em três fases. Reproduziremos um longo trecho importante para a compreensão do projeto literário do escritor:

A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou- se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização?

O período orgânico desta literatura conta já três fases.

A primitiva, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou.

Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda — alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.

O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido.

Ao conchego desta pujante criação, a têmpera se apura, toma alas a fantasia, a linguagem se impregna de módulos mais suaves; formam-se

outros costumes, e uma existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo.

É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência.

A ele pertencem o Guarani e as Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.

A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.

Neste período a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família.

Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.

O Tronco do Ipê, o Til e o Gaúcho, vieram dali; embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro.

Percebe-se que Alencar reiteradamente afirma que nossa pátria é ilustre porque recebeu influências europeias, no caso, portuguesa, e a partir de tal fato conclui que o país está preparado para receber os “influxos da civilização”. Como a literatura é a alma da pátria, Alencar expõe suas obras- incluindo Til e O Tronco do Ipê- como exemplos desse processo histórico natural do país rumo à civilização. Mas o que ocorre em O Tronco do Ipê? A família se muda para a corte e o escravo Benedito não os acompanha, ele enlouquece sozinho na fazenda; em Til, a escrava Zana, também louca, sobrevive com a assistência de Berta. Monjolo, o escravo traidor, acaba morto. Pedro é expulso da família e

Joana se suicida. Ou seja, o escravo não faz parte desse processo, algo acontece no meio do caminho que o impede de chegar e se integrar a esse estágio civilizatório.

Com essa concepção de progresso natural, Alencar afirma que o Brasil é uma “sociedade nascente [que] está naturalmente inclinada a receber o influxo de mais adiantada civilização” (p.698). Esse texto demonstra seu caráter pessimista advindo exatamente pelo progresso científico e tecnológico, ao mesmo tempo condenado e exaltado pelo escritor.

A carta Como e porque sou romancista foi um ensaio autobiográfico produzido como uma espécie de resposta a um pedido de um amigo para que José de Alencar, escritor no auge da sua carreira, escrevesse sua autobiografia e não tem o tom contundente presente em Benção Paterna. A carta saiu em resposta a esse pedido em maio de 1873 e só foi publicada em 1893 pela Tipografia Leuzinger. Em 1873 Alencar já convalescia de graves problemas pulmonares que o obrigaram a se afastar das suas atividades políticas naquele mesmo ano. Além disso, devemos levar em consideração o que o motivou a escrever esse texto. Foi um texto motivado a partir de um pedido de um editor que estava contribuindo para a edição de um Dicionário Bibliográfico de Escritores Brasileiros. Trata-se de uma pequena autobiografia literária, um “rascunho de um capítulo” (Alencar, 1872) pois, como o próprio autor assinala uma autobiografia seria “o livro dos meus livros”: “Pensei que me não devia eximir de satisfazer seu pedido e trazer a minha pequena quota para a amortização desta dívida de nossa infante literatura” (op. cit. p.125).

Essa produção torna-se relevante por trazer algumas informações sobre a carreira do escritor e sobre o cotidiano escolar vivido por Alencar. Nessa carta, ele apresenta a rotina do Colégio de Instrução Elementar, alguns colegas notáveis que estudaram com ele, descreve, de maneira pormenorizada o diretor do colégio Januário Mateus Ferreira e também fala sobre suas decepções no campo literário, ao afirmar que no Brasil a glória dos escritores é como fogo de palha pois:

Naquele tempo o comércio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo, todavia apesar de mais baratas, as obras literárias tinham menos circulação. Provinha isso da escassez das comunicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Alencar ainda cita a grande dificuldade que enfrentou com a aceitação de suas obras de caráter nacional: “Compare-se essa estrada, tapeçada de flores, com a rota aspérrima que

eu tive que abrir, através da indiferença e do desdém, desbravando as urzes da intriga e da maledicência”.

Consideraremos essa produção como fruto de invenção e recriação de si característicos das obras autobiográficas. Tal perspectiva de análise considera os relatos e as memórias como reconstrução previamente selecionada e elaborada de acordo com as intenções do autor e o contexto sócio-histórico no qual a pessoa está envolvida. Dessa forma, essa pequena produção autobiográfica nos auxilia na compreensão dos fatos narrados por Alencar tendo em vista a constituição da sua identidade como escritor e político da sociedade oitocentista.