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2 BREVE HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO UCRANIANA NO

3.4 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NA PERSPECTIVA

Estudos sobre alfabetização na perspectiva da interculturalidade vêm sendo desenvolvidos por muitos pesquisadores no Brasil. Destacamos a obra Transculturalidade, Linguagem e Educação, publicada pelas autoras e estudiosas do campo da Linguísta Aplicada Cavalcanti e Bortoni-Ricardo, em 2007.

Esses estudos se aplicam não só às singularidades linguísticas e culturais dos povos indígenas, mas, também, às comunidades étnicas como é o caso da eslava no Brasil, tendo em vista as demandas socioculturais e linguística nessa comunidade. Transculturalidade nos remete ao termo transculturação, cunhado pelo cubano Fernando Ortiz (1983), na década de 1940, para descrever o processo de transição de uma cultura para a outra. A transculturalidade envolve dois movimentos, um de desculturação (desenraizamento parcial de uma cultura anterior) e outro de neo-culturação (criação de novos fenômenos culturais).

Os autores problematizam e ampliam a compreensão sobre a convivência entre culturas e, consequentemente, o surgimento de conflitos e implicações da transculturalidade em comunidades de minorias linguísticas. “A transculturalidade na sociedade brasileira está historicamente situada entre as culturas predominantemente orais e as culturas letradas” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 239), fenômeno enraizado nas culturas orais pelo viés da língua falada nas comunidades rurais, que aos poucos se descaracteriza, perdendo o espaço para a cultura letrada, à medida que as populações migram para as cidades e ingressam nos programas de alfabetização/letramento.

Segundo Neves (2008), a expressão alfabetização intercultural deriva do termo educação intercultural bilíngue, utilizado pela UNESCO para designar uma importante característica da educação escolar indígena, pois pressupõe o esforço do diálogo entre diferentes culturas e saberes, nesse caso a sociedade indígena e a não-indígena. O conceito está também fundamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9394/96, no artigo 7840, que estabelece critérios para a educação

escolar bilíngue e intercultural de comunidades e grupos minoritários indígenas, afrodescendente e não- índias.

Entretanto, a discussão sobre concepção de alfabetização intercultural é recente, pois a trajetória da educação escolar indígena sinaliza de maneira geral para a integração dessas populações étnicas à sociedade nacional. Nesse sentido, a tarefa da escola para a população indígena será justamente a de ensinar alunos de comunidades indígenas e outras comunidades étnicas a falar, ler e escrever em língua portuguesa, para aproximá-los da sociedade não-indígena sem desmerecer a língua materna desses grupos étnicos e, mais que isso, conforme prevê a LDB vigente, cabe às instituições de ensino, situadas nessas comunidades, conferir-lhes educação bilíngue.

Compete, portanto, a alfabetizadores e dirigentes educacionais, situados em contextos linguisticamente complexos, a elaboração e o cumprimento de programas curriculares específicos para o desenvolvimento de propostas pedagógicas que visem a alfabetizar e integrar esses grupos, considerando não somente as populações indígenas, mas estabelecendo prioridades e políticas pedagógicas de formação diferenciada41 a alfabetizadores que atuam junto a alunos com diferentes traços culturais, identitários e de bilinguismo. Cook-Gumperz (2008) afirma que:

O reconhecimento de que a diversidade está tão relacionada com o uso da língua quanto com a cultura, sugere a necessidade de estudos dos processos de escolarização que possam proporcionar um entendimento maior do papel da língua no desempenho educacional, e das maneiras como a língua entrou no ambiente social da escola. A pesquisa educacional em vários campos havia proporcionado uma variedade de

fomento à cultura e de assistência aos índios desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas com os seguintes objetivos: I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias. (Artigo 78, LDB / 9394/ 96)

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Sobre formação diferenciada, aprofundaremos a questão no capítulo IV, seção 4.2. e também, nas considerações finais.

respostas diferentes para o problema que causa a chamada diferença cultural no desempenho escolar. A maior parte das pessoas que cria políticas públicas tende a se basear em medidas de resultados da escolarização como desempenho insatisfatório em testes de leitura e outras habilidades de alfabetização. [...] A língua, quando mencionada, era citada como apenas um desses fatores. (COOK- GUMPERZ, 2008, p. 59- 60).

Para Cook-Gumperz (2008), as atitudes cotidianas dos membros de uma comunidade vão refletir nas suas escolhas e no seu repertório linguístico, a depender de quem são os seus interlocutores e do que sabem uns sobre os outros. Portanto, os princípios norteadores do dialeto e do repertório que será usado pelos membros de dada comunidade escolar deveriam ser selecionados e adequados segundo as decisões desses falantes/ouvintes em sala de aula. Assim, a autora afirma que o processo de alfabetização é claramente limitado por forças socioculturais que emergem das expressões linguísticas e das práticas linguageiras dos grupos étnicos. A nosso ver, o isolamento das línguas, a atitude monolinguística adotada na escola cristaliza ainda mais a fissura entre o ato de ensinar e os domínios da criança, ignorando que ela seja portadora de infinitas possibilidades de linguagem para compor o processo de alfabetização, como é o caso do ucraniano-português.

Oliveira (2000) considera que o fenômeno de mistura das línguas pode ocorrer em qualquer sociedade e causar a morte da língua considerada minoritária, “num processo de geotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento linguístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa” (OLIVEIRA, 2000, p. 85 apud FRITZEN e EWALD, 2011, p. 150). Isso pode ocorrer em qualquer sociedade e causar a morte da língua considerada minoritária, mas também pode ocasionar sua ampliação por criar novas palavras, o que depende da situação sócio-histórica vivida pelas sociedades em contato e da informação que a comunidade tem em relação à consciência da importância de sua língua e da imposição da língua de prestígio. Na comunidade pesquisada, nesta tese, esse fenômeno tem caminhado em duas direções: ora para a perda da língua materna ucraniana, em se tratando do contato desta com a língua portuguesa na escola, ora para a sua manutenção/revitalização, considerada a sua presença na família, na igreja e em outros lugares que não a escola. Compete-nos nesta

discussão problematizar o papel da alfabetização e do letramento como processos interculturais e, para isso, trouxemos a conceituação de letramento na perspectiva de autores brasileiros que apresentam densos estudos e contribuições sobre a questão.

Soares (2006) define letramento como sendo o resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita, como o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo em consequência de ter se apropriado da escrita e de suas práticas sociais. Pelandré (2002), com base em Soares (1998), apresenta definição de letramento em torno de duas dimensões da existência humana, a dimensão individual e a social, que compreende os fenômenos de ordem cultural. Para a autora:

A dimensão individual de letramento compreende os processos fundamentais de leitura e escrita, que, embora considerados em muitas pesquisas como processos únicos, guardam diferenças básicas entre as habilidades e os conhecimentos que são empregados na leitura e aqueles que são empregados na escrita. Sendo assim, a atividade de ler na perspectiva dessa dimensão, ler como

uma tecnologia [grifo da autora] é um processo de

relacionar símbolos com unidades sonoras (fonemas), associado a um processo de construção de sentido, o que chamamos de alfabetização. Inclui, portanto, uma grande variedade de habilidades, tais como decodificação de símbolos escritos, obtenção de significados, evoluindo para o que se denomina letramento. Com o desenvolvimento de habilidades mais complexas, como as de interpretação, de sequência de ideias ou eventos, estabelecimento de analogias, de comparações, de inferências, de uso de linguagem figurada, de anáforas e habilidades de raciocínio cognitivo aplicáveis a uma diversidade enorme de materiais, que podem variar de tabelas de horários de ônibus ou preços de supermercados a textos literários (PELANDRÉ, 2002, p. 85).

E, na dimensão sociocultural, a autora considera as práticas de leitura e escrita de que a pessoa dispõe para seu uso em determinado contexto social, dizendo estarem associadas ao que a pessoa faz com as

capacidades e as habilidades de leitura e escrita que tem desenvolvido nas múltiplas situações de letramento.

Pelandré (2002) corrobora a posição de autores que advogam o processo de alfabetização na perspectiva do letramento como produto da participação dos sujeitos em práticas sociais, somando-se a isso o domínio da leitura e escrita como sistema simbólico e de tecnologias disponíveis no mundo letrado. O letramento acontece quando, além da apropriação do código gráfico, faz-se uso dele no cotidiano, em práticas sociais de leitura e escrita.

Estar alfabetizado na perspectiva do letramento é mais que saber relacionar símbolos escritos a unidades sonoras (fonemas) e vice-versa. Significa ampliar essa competência associada a um processo de construção de sentido. “[...], o que inclui grande variedade de conhecimentos que possibilitam o uso da leitura e da escrita em diferentes situações sociais” (PELANDRÉ, 2002, 85-87). Para a autora, ensinar a escrever é possibilitar à criança a passagem do simbolismo concreto à abstração, associada a um processo de construção de sentido/significado. O ato de escrever pressupõe além de conhecimentos do código linguístico a ação do sujeito sobre esses conhecimentos para agir ativa e responsivamente. Demanda que esse sujeito tenha consciência da estruturação sonora das palavras, sequência das palavras na frase; uso de convenções ortográficas; domínio das regras de acentuação entre outros conhecimentos.

As proposições dos autores Soares (2006), Bortoni-Ricardo (2004), Kleiman (1995), Pelandré (2002), Leite (2006) e outros nos desafiam a refletir sobre o letramento na perspectiva intercultural e entender como esse processo de ensino deve ser desenvolvido junto às crianças de todos os contextos e, sobretudo, de grupos étnicos bilíngues. Leite (2006), visando redimensionar a compreensão de alfabetização, diz que as práticas de leitura e escrita vão além do ler e escrever, é preciso que a pessoa passe a compreender o seu papel na sociedade letrada.

Essas reflexões provocadas por educadores e linguistas fizeram emergir nos centros de formação de alfabetizadores a adoção de novas práticas pedagógicas e, consequentemente, têm provocado novas atitudes em sala de aula, seja nos programas de educação de adultos ou nas salas de alfabetização de crianças. Esse movimento, se por um lado desestabilizou a escola na sua moldura tradicional de ensinar, que não considera as práticas sociais dos sujeitos, por outro impulsionou gradativamente o surgimento e a utilização de novas metodologias, com

vistas ao desenvolvimento de práticas de letramento.

Em que pesem as discussões sobre o conceito de letramento, tem- se o “reconhecimento da necessidade de que os alunos – e todos os cidadãos – se envolvam com as práticas sociais de leitura e escrita, ou seja, o reconhecimento de que o letramento é que dá sentido para a alfabetização” (LEITE, 2006, p. 453). Entendemos que letramento e alfabetização são processos distintos e um não exclui o outro, mas complementa.

Nossa reflexão em torno do ensino da língua, numa perspectiva dialógica e histórico-cultural e intercultural, tem o propósito de compreender o processo de alfabetização em língua portuguesa de crianças monolíngues do ucraniano e bilíngues do português e ucraniano. Apoiando-nos em Bakhtin e Vigotsky, sustentamos a tese de que, para alfabetizar em comunidade de imigrantes ou de falantes de outras línguas que não a oficial, o alfabetizador necessita conhecer uma pedagogia de formação diferenciada que o instrumentalize para interagir em sala de aula, didática e linguisticamente, com as crianças, na língua com a qual chegam à escola. Assim, a escola estará contribuindo para combater a diáspora,42 no nosso caso, dos descendentes do povo

42 [...] A questão da diáspora é colocada aqui principalmente por causa da luz que ela é capaz de lançar sobre as complexidades, não simplesmente de se construir, mas de se imaginar a nação [nationbood] (grifo do autor) e a identidade numa era de globalização. [...] Entre os povos caribenhos, por exemplo, na situação da diáspora as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que as ligam a uma ilha de origem específica, há outras forças centrípetas: há a qualidade de “ser caribenho” (grifo do autor) que eles compartilham com outros migrantes do Caribe. [...] Existem as semelhanças com outras populações dita de minoria étnica, identidades “britânicas negras” emergentes, a identificação com os locais dos assentamentos, também as (re)identificações simbólicas com as “culturas africanas” e, mais recentemente com as “afro-americanas” (grifos do autor) – todas tentando cavar um lugar junto, digamos, à sua “barbadianidade” [Barbadianness]. [...] Os entrevistados de Mary Chamberlain também falam da sua dificuldade de se religar as suas sociedades de origem. Muitos sentem falta dos ritmos da vida cosmopolita [...] Muitos sentem que a “terra” (grifo do autor) tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são vistos como se os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem Sido interrompidos por suas experiências diaspóricas. Esta é a sensação familiar e profundamente de deslocamento, a qual [...] não precisamos viajar muito longe para experimentar. (HAAL, 2011, p. 26-27). Segundo o autor, diáspora é a perda simbólica e material da naturalidade, da identidade do lugar de origem, da língua, dos costumes e da própria existência.

ucraniano que, há mais de um século, resistem ao apagamento da língua e da cultura trazidas da Ucrânia.

3.5 LÍNGUA E IDENTIDADE: ALGUNS ACHADOS PARA A