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3. O APRENDIZADO DA LEITURA E DA ESCRITA

3.1 Alfabetização e Pensamento Conceitual

Nos anos iniciais de escolarização, duas coisas estão em jogo: a alfabetização e o domínio dos conteúdos curriculares correspondentes a cada uma das séries. Esta forma de organização curricular evidencia que o processo de alfabetização ocorre concomitante ao processo de formação de conceitos científicos, o que leva a criança a passar da reflexão pautada na percepção direto-figurada imediata para o pensamento lógico-verbal, ampliando os níveis de generalidade e abstração.

Em consonância, a alfabetização é vista por Soares (2004) como a aquisição do sistema convencional de escrita e que não deve ser desvinculada do letramento, entendido pela autora como o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita em práticas sociais.

No processo de apropriação do sistema de escrita, a criança, ao mesmo tempo que escreve árvore, aprende a deduzi-la do campo sensorial, daquela imagem específica que a sua mente evoca, incluindo-a em um sistema de categorias lógicas da qual ela faz parte e, assim, aprende a refletir o mundo com maior profundidade (LURIA, 1979b). Quando a criança aprende não só a grafar a palavra árvore, mas a usá-la como uma categoria mais genérica, dá indícios da transição de significações diretas (concretas) do objeto para a significação do conceito abstrato, "o conceito genérico, representado pela palavra que pelo grau de concreticidade pode afigurar-se

pobre, pelo sistema de ligações que ela implica, é incomparavelmente mais rico do que a representação concreta do objeto individual" (LURIA, 1979b, p. 35).

A escola tem um papel fundamental no desenvolvimento do pensamento das capacidades cognitivas, como aponta uma das pesquisas desenvolvidas por Luria (2012), em que teve, como sujeitos de sua pesquisa, pessoas com baixa escolaridade e analfabetos. Em um dos testes que aplicou, pediu para que agrupassem objetos do seu cotidiano, eles, ao invés de agruparem os objetos por suas semelhanças ou categorias, agrupavam por finalidade, "em outras palavras, rejeitavam a tarefa teórica e a substituíam por outra, prática. [...] os sujeitos começavam a avaliar objetos isolados e a nomear sua função individual. [...] não viam necessidade de comparar e agrupar todos os objetos e de enquadrá-los em diferentes classes" (LURIA, 2012, p. 48). Demonstravam, ainda que adultos, o que Vigotski denominou de "pensamento por complexos", já que as associações que faziam entre os objetos eram concretas, factuais, baseadas na experiência prática. A passagem do pensamento por complexos para o pensamento conceitual "[...] não é apenas um reflexo da experiência individual, mas uma experiência partilhada, que a sociedade pode comunicar através de seu sistema linguístico" (LURIA, 2012, p. 48), mas isso não ocorre naturalmente e de forma espontânea. Luria (2012, p. 48) constatou que:

[...] o desenvolvimento do pensamento conceitual, taxionômico, articula-se com as operações teóricas que uma criança aprende a executar na escola. Se o desenvolvimento do pensamento taxionômico depende da escolaridade formal, nós então esperaríamos ver formas taxionômicas de abstração e generalização apenas naqueles sujeitos adultos que estiveram expostos a algum tipo de escolaridade formal.

Ainda de acordo com Luria (1979b), suas pesquisas apontaram que, quanto maior o nível de escolaridade de uma pessoa e quanto maior o conjunto de conhecimentos científicos por ela adquiridos na escola, mais rico o sistema de relações e mais complexa a estrutura dos conceitos.

Esse fato sugere a profunda mudança da estrutura do significado das palavras (conceitos), experimentada por elas nas etapas sucessivas da evolução, e dá fundamento para formular uma das teses básicas da Psicologia moderna segundo a qual o significado da palavra evolui e, apesar de não variar a referência material da palavra nas diferentes fases de desenvolvimento, muda radicalmente o conteúdo dos conceitos implicitamente representados pela palavra, bem como a estrutura das relações suscitadas pela palavra [...] Essa mudança

profunda da correlação dos processos psíquicos implícitos no conceito (e, consequentemente no pensamento), em etapas particulares da evolução intelectual, é um dos mais importantes fatos descobertos pela Ciência Psicológica (p. 38).

Nos anos iniciais de educação, percebemos mais nitidamente a não linearidade da passagem do pensamento por complexo para o pensamento conceitual, visto que, inicialmente, esse processo parece ocorrer por sucessivas aproximações, avanços e retrocessos, tentativas e erros alimentados pelas elaborações das crianças, que ora abstraem uma característica que acreditam aplicar-se apenas àquela palavra e ora generalizam certa norma e passam a aplicá-la a todas as palavras. Um exemplo é o caso do plural, quando uma palavra representa uma quantidade maior dela mesma apenas com o acréscimo da letra "s", que ocorre com as palavras "mesa, sapato ou doce", ao generalizar esta regra, a qual se aplica apenas em certas palavras, a criança faz a supercorreção e pensa que, para representar o plural das palavras, basta apenas acrescentar o "s", dessa forma pão fica "pãos", pastel fica "pastels" e assim por diante. Quando a criança é questionada sobre o que é plural, responde que basta colocar o "S", demonstrando não só a generalização da regra como a não apropriação do conceito.

O processo de apropriação da linguagem escrita pela criança, que inicialmente faz um movimento de aprender a ler para mais adiante ler para aprender, apoia-se em conceitos comuns que servirão de base para o aprendizado de conceitos científicos. Vigotski (2007, p. 126) explica como se desenvolve: "o domínio de tal sistema complexo de signos não pode ser alcançado de maneira puramente mecânica e externa; em vez disso, esse domínio é o culminar, na criança, de um longo processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas”, que ocorre na medida em que as crianças avançam em sua escolarização.

Este processo envolve codificação e decodificação, mas não se limita a isto, ao aprender uma letra que seja, não é apenas uma letra que a criança aprende, mas a letra de sua mãe (do nome de sua mãe), a letra de seu pai, a sua própria letra. Enquanto aprende, a criança atribui sentido e significado ao que faz, lendo o mundo exterior a partir do seu mundo interior e, no jogo interativo, vai aprendendo os outros sentidos e significados em circulação, construindo uma complexa matriz de significados, a qual sofre mudanças estruturais provocadas pela aprendizagem.