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Com o fim das comunidades alternativas, uma vez que, embora fossem criadas para que não existissem hierarquias e poder, isso não aconteceu (Curtis, 2011), alguns de seus membros acabaram migrando para o Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos (Turner, 2006).

Um dos exemplos que pode ser citado é o de Stwart Brand e do ex-hippie Larry Brilliant, que tomaram como protótipo a revista Whole Earth Catalog para criar a comunidade digital The WELL (idem, p.141). A WELL era um sistema de conferência remota onde os inscritos poderiam se conectar através de um computador central e enviar mensagens em tempo real uns aos outros.

Quem estivesse conectado a esse fórum de debate dos mais diversos assuntos estaria participando de uma comunidade governada de forma não hierárquica (TURNER, 2006). Conforme descreve Figallo (1993, apud LOPES, 2015, p. 34),

princípios de tolerância e de inclusão, justa distribuição de recursos, responsabilidade distribuída, administração pelo exemplo e pela influência, uma hierarquia organizacional plana, uma formulação cooperativa de políticas e a aceitação de um espírito libertário a tender para o anárquico era tudo um resultado da nossa experiência de vida comunal.

Ou seja, os mesmos princípios de simplificação e retroalimentação que estiveram na criação das comunidades hippies dos anos 1970 serviram para criar a internet e acreditar que ela seria um ambiente livre da influência governamental e de hierarquia, tendendo sempre ao equilíbrio, sem esquecermos das questões trazidas por Wiener com a cibernética. Mas o surgimento de empresas de novo tipo como o Google, que praticamente monopolizam as buscas por conteúdo on line, faz com que a ideia de isenção da rede fique cada vez mais ultrapassada.

Essa forma de pensar a internet e as empresas é o que Barbrook chamou de “Ideologia Californiana” (2009). Conforme explicou o autor, “Californian ideology, therefore, simultaneously reflects the discipline of market econommics and the freedoms of hippie artisanship” (1996, p.4).

Em outro trabalho, Ferreira (2015) mostra como a Ideologia Californiana afeta inclusive o administrativo dessas empresas geradas no Vale do Silício. Para Ferreira (2015), ao avaliar uma série de reportagens da revista brasileira VOCÊ S/A sobre a filial do Google no Brasil, fica claro que a ideologia tenta apagar o político dentro dessa empresa, quando coloca que apenas a meritocracia seria suficiente para se ter sucesso na carreira profissional. A empresa tenta apagar em seu discurso o fato de que haja hierarquia nos grupos de trabalho, como se fosse um grupo homogêneo onde ninguém é submetido a ninguém, numa espécie de novo capitalismo (FERREIRA, 2015). O fato é que, tal discurso, segundo Ferreira (2015), acaba caindo por terra quando analisadas as matérias publicadas, e o Google torna-se uma empresa como as outras.

Esse discurso da empresa sem hierarquia faz funcionar a memória discursiva das comunidades hippies dos anos 1960 e 1970, onde não deveria haver um líder, mas, sim, todos com o mesmo poder de decisão. Tal fato mostra que esse discurso continua vivo, sendo usado nas empresas do Vale do Silício de forma organizacional.

Voltando à questão do algoritmo, na tentativa de personalizar o conteúdo das buscas que os usuários fazem, o Google traz respostas diferentes de acordo com o perfil de quem pesquisa.

Tais algoritmos, por sua vez, funcionam como simplificações da linha de pensamentos e escolhas dos usuários, algo que remete à tentativa de simplificação da natureza feita pelos irmãos Odum, tratados no início do texto. Mas será que tais simplificações são capazes de realmente trazer a cada usuário o conteúdo que ele deseja? Conseguiria o homem traduzir em linhas de código todas as sinapses que o cérebro faz para relacionar determinado assunto?

Quando tratamos do Facebook, as dúvidas não são menores. O conteúdo apresentado na timeline de cada usuário seria de fato a representação dos interesses dessas pessoas? O algoritmo do Facebook estaria restringindo a pluralidade de ideias existentes no site?

Em ambos os casos, o que pode estar acontecendo é uma reafirmação do pensamento de cada usuário. Por exemplo, se esse usuário é militante em alguma causa, pesquisa sobre o assunto no Google com frequência e curte e compartilha conteúdo desse tipo no Facebook, com o passar do tempo será inundado com publicações que reforçam suas ideias (PARISER, 2012).

Conforme Fred Turner (2013) traz em seu livro The Democratic Surround, os Estados Unidos moldaram o perfil do homem democrático com ideias opostas as que eram apresentadas pelos homens que viviam em regimes totalitários no período do entre guerras e durante a Guerra Fria. Para tal construção, foi essencial a migração de alguns pensadores europeus expulsos por regimes totalitários. Mas uma das conclusões a que o autor chega e que cabe ao nosso trabalho é o fato de que correntes de pensamento, com ramificações em instituições governamentais, que pensavam na produção do homem democrático ou autoritário/autômato, isso de acordo com certas tecnologias de comunicação empregadas, acreditavam que o homem poderia ser moldado, mesmo depois de adulto, de acordo com as informações que fossem colocadas à sua disposição.

Se observarmos os pontos tratados no texto perceberemos que a internet, considerada uma grande ferramenta de emancipação do homem, foi construída sobre ideias de funcionamento da natureza que são bastante questionáveis. Num passo seguinte, com o crescimento da internet, na tentativa de apresentar um conteúdo mais parecido com o perfil dos usuários, sites como o Google e o Facebook desenvolveram algoritmos cuja tentativa é entender as preferências dos usuários de acordo com aquilo que chamamos de economia da atenção.

Talvez, como Paul Henry (2014) afirma em seu texto “Os fundamentos teóricos da ‘análise automática do discurso’ de Michel Pêcheux”, no pensamento pecheutiano seria essencial que as ferramentas de cada ciência fossem reformuladas antes de serem levadas para outra ciência. O exemplo trazido é o uso da balança, que foi amplamente usado na ciência por Galileu, e, quando foi transportada para as ciências humanas para pesar cérebros de determinadas etnias mostrou-se um instrumento de perpetuação de preconceitos. Isso porque nas pesquisas usando cérebros, o cientista responsável acabou chegando à conclusão de que quanto maior o cérebro maior a inteligência, de forma que as etnias com cérebros mais volumosos pudessem ser consideradas superiores às demais.

Transportando tal exemplo para a teoria dos ecossistemas de Tansley, ela surgiu do pensamento freudiano sobre o funcionamento do cérebro e suas interligações elétricas, migrou para o funcionamento e equilíbrio da natureza (ANKER, 2001), e terminou por influenciar os movimentos de contracultura que idealizaram a internet (TURNER, 2006). Mas, ao que parece, em nenhum momento foi tentado readaptar tal teoria quando a área da

ciência onde ela seria utilizada mudava. Com isso tivemos um mesmo conceito servindo de formas diferentes em diferentes áreas do conhecimento humano.

Entra aqui uma outra questão, colocada por Sfez (2002), quando trata da técnica, ou tecnologia, que o autor utiliza com o mesmo sentido, como explica no início do livro Técnica e Ideologia. Para ele, “de objeto do discurso, a técnica torna-se o discurso do objeto” (SFEZ, 2002, p. 17). Se pensarmos nas consequências dessa afirmação na relação com aquilo que foi apresentado até o momento em nossa dissertação, podemos notar que, de fato, o que ocorreu foi que a técnica tornou-se o discurso dos objetos, sejam eles a ecologia ou a sociedade.

E, continua, colocando que a técnica acabou por tornar-se serva-dominadora da política (SFEZ, 2002). Em outras palavras, para o filósofo francês, houve uma inversão dos papéis e é a técnica quem dita o que será feito na política. Ela apaga a política e se coloca como verdade absoluta. Podemos observar essa sobreposição na narrativa que fizemos até agora, onde temos os sujeitos apagados e um foco latente na tecnologia e na tentativa de afastar intervenções humanas de resultados e dos processos.

A crítica que fazemos aqui, e que também é o foco de Sfez, é que mesmo parecendo algo isento e fora da ideologia, a técnica, ou tecnologia, também está inserida nela, não escapando de seus rituais, e, consequentemente, das falhas que nos fala Pêcheux, conforme citado acima.

Ou seja, mesmo com as tentativas de afastar técnica e sujeito, técnica e política, ou técnica e político, ela sempre será determinada pela ideologia, ainda que não seja sabido por quem elabora suas premissas e procedimentos. Isso ficará melhor entendido conforme dermos prosseguimento ao nosso trabalho.