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IMATERIAL DO BRASIL

3.2. Algumas ações de salvaguarda promovidas pelo Estado

Para o IPHAN, salvaguardar um bem cultural de natureza imaterial é “apoiar sua continuidade de modo sustentável, atuar para melhoria das condições sociais e materiais de transmissão e reprodução que possibilitam sua existência”95. Além disso, o decreto de lei

3551/2000 faz com que o Estado se encarregue da função de proteger o patrimônio cultural imaterial, assim como documentar e colaborar com o projeto de inventário. Como salientamos, o dossiê foi elaborado pela equipe técnica, e nele, foram solicitados alguns projetos que contribuíram para o desenvolvimento da capoeira pelo Brasil.

Uma das primeiras ações governamentais pós-patrimônio foi o projeto chamado

Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira (Pró-Capoeira). Essa plataforma

foi construída com objetivo de preparar e lançar editais que ajudassem no desenvolvimento da capoeira pelo Brasil, uma continuação do programa Capoeira Viva destacado anteriormente, promovendo encontros/seminários em todos os estados do país. Nessas reuniões, os capoeiristas participavam das decisões que estavam para ser tomadas. Em virtude da participação dos capoeiras, foi criado pelos mesmos grupos de trabalho Pró-Capoeira (GTPC) conduzidos por mestres que lutam pelos direitos dos capoeiristas.

Um dos editais produzidos ao longo do programa foi o Viva Meu Mestre, tinha como propósito conceder prêmios para mestres com idade acima de 55 anos. No total foram distribuídos 100 prêmios no valor de R$10.800,00 líquidos segundo dados do IPHAN. Apesar de ser um valor meramente atrativo, não conseguiu atender todos os mestres e os que foram

94 Disponível em: <https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/em-2009-cinema-brasileiro-teve-o- melhor-desempenho-dos-ltimos-cinco-anos>. Acesso em: 05 mai. 2019.

95 IPHAN. Apoio e fomento de bens culturais. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234>. Acesso em 27 jul. 2019.

premiados, o dinheiro não durou por muito tempo. Vale destacar que no momento do inventário, um dos projetos solicitados ao Estado foi a aposentadoria para os antigos mestres em vulnerabilidade social. O IPHAN informou que houve uma consulta ao Ministério da Previdência Social e ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), entretanto, colocaram obstáculos recorrendo a inconstitucionalidade do ato. É importante frisar que a capoeira foi reconhecida em dois livros de registro e um deles é o livro dos saberes que reconhece “Ofício dos Mestres de Capoeira”. Infelizmente vários mestres por não terem o apoio adequado, estão sendo abandonados pelas autoridades públicas, muitos deles com idade avançada e não por possuírem condições financeiras, não conseguem participar dos encontros promovidos pelo IPHAN para reivindicar seus direitos96.

Outra demanda produzida pelo programa foi o mapeamento dos grupos de capoeira, assim como o cadastro de capoeiristas. Esse levantamento está sendo realizado através de plataformas digitais97 do IPHAN com o propósito de documentar o número de grupos e capoeiristas no Brasil. Apesar de ser uma ferramenta importante para caráter de informação, o site apresenta algumas falhas na apresentação dos dados obtidos, podemos citar como exemplo a vaga demonstração de resultados. Não conseguimos constatar na plataforma atalhos/filtros para pesquisas mais específicas (países, estados, cidades), ficando a mercê de outros caminhos para conseguir obter as fontes necessárias.

Observamos que os seminários promovidos pelo Ministério da Cultura em parceria com o IPHAN voltaram a acontecer. Recentemente foi lançado mais um documento que busca criar planos de salvaguarda da capoeira (ainda em discussão), contudo, esse processo é focado apenas nos grupos do estado da Bahia. Analisamos que o processo de salvaguarda da capoeira caminha em passos lentos, salientamos que o pró-capoeira por alguns anos parou de funcionar, em virtude de troca da ingerência administrativa e falta de recursos financeiros.

Nas escolas, por outro lado, permanecem voluntarismos e ações ainda muito desarticuladas. Não há um incentivo oficial do Estado para a prática da capoeira nas escolas, sobretudo nas do interior. Atualmente as instituições do SCFV (Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos), os antigos PETIs98, constituem uma das poucas ações sistemáticas

96 CID, Gabriel da Silva Vidal. A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira. 2016.

Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e

Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ. 97 Cf.: <http://www.capoeira.gov.br>. Acesso em: 14 mai. 2019.

98 Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), é uma ação governamental que objetiva retirar crianças e jovens das ruas e do trabalho precoce. A capoeira no PETI é uma prática ativa de grande importância no combate a ociosidade desses jovens, por possuir uma didática e dinamismo em todas as áreas, seja: luta, dança, ritmo, filosofia, esporte, cultura entre tantos outros segmentos, resultando no crescimento e no amadurecimento do indivíduo.

que identificamos em favor da prática da capoeira de forma mais ativa em algumas cidades interioranas. Quando pensamos no Sertão alagoano, por exemplo, temos dois casos emblemáticos: no município de Delmiro Gouveia há um projeto de incentivo ao jiu-jitsu nas escolas municipais como parte integrante da educação física, formação de atletas e melhoria do desempenho escolar dos alunos. Contudo, embora existam grupos de capoeira nesse mesmo município, a capoeira não é contemplada como prática pedagógica alternativa na rede municipal. Já no município de Piranhas, o processo de valorização da capoeira nas escolas caminha em passos lentos. Ela não é uma prática oficial abraçada pelas comunidades escolares. Atualmente existe apenas um grupo nesse município sob a liderança do monitor99 Neguinho, que realiza seus treinos no pátio de uma escola municipal, três dias da semana, com a permissão da gestão escolar, mas sem o envolvimento direto desta. Nem nas outras escolas municipais, e em nenhuma das escolas estaduais ou federal presentes no município, constatamos a presença da capoeira, a não ser de maneira folclórica no mês de novembro, período de alusão à consciência negra.

A inserção da capoeira nas escolas ainda é bastante ambígua. Se de um lado ela serve para afirmar a ancestralidade e a identidade negra no espaço escolar; muitas isso ainda é feito de forma limitada e folclórica, perpetuando estereótipos raciais hierarquizados. O problema é que o objetivo intelectual e político-cultural da presença da capoeira na escola é deslocado do campo da formação crítica para o da folclorização (que esvazia o debate) quando ela é trazida apenas para uma apresentação como um elemento exclusivamente lúdico nas redes de ensino. Contra isso é preciso que professores dialoguem com os grupos de capoeira a respeito de relações étnico-raciais no país. Obviamente que isso implica numa série de desafios, pois, mesmo muitos grupos de capoeira atualmente são compostos majoritariamente por pessoas brancas e vivenciam a capoeira enquanto algo lúdico. Com a diminuição ou inexistência, em alguns casos, de pessoas que ocupem lugares de falas negras, torna-se mais difícil um debate crítico sobre as relações raciais no país. Uma proposta interessante seria inserir, além das rodas de capoeira, uma série de oficinas junto aos seus membros sobre instrumentos, ritmos e as letras das ladainhas e rodas de conversa sobre as lutas históricas dos capoeiristas e da comunidade negra contra o racismo até o presente.

Alcançando o status de patrimônio cultural imaterial, a capoeira torna-se tema de sistemático cuidado do Estado que passa a ter, por sua vez, o compromisso de proteger,

99 Existe uma hierarquia na capoeira, sendo assim, os grupos possuem uma graduação para diferenciar os capoeiristas, por exemplo: aluno iniciante, graduado, monitor, instrutor, professor, mestrando e mestre. Vale lembrar que alguns grupos seguem nomenclaturas e ordem diferentes.

salvaguardar memória e fomentar política, cultural e economicamente a prática da capoeira. Mas como vimos até aqui, não é bem isso que vem acontecendo. A pouca visibilidade na rede de ensino público ainda é fator preocupante, principalmente nas escolas. Outro fator complicador é a falta de apoio contínua das autoridades públicas sobre os editais de auxílios já lançados. Essas ações que poderiam ajudar na propagação do bem, infelizmente seguem estagnadas.

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