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Na ginga do tempo, as lutas: uma análise das disputas por sentidos e usos da capoeira enquanto patrimônio cultural imaterial do Brasil (2004-2008)

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(1)1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA. LINO EDUARDO MONTEIRO PEDROSA. NA GINGA DO TEMPO, AS LUTAS: UMA ANÁLISE DAS DISPUTAS POR SENTIDOS E USOS DA CAPOEIRA ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL (2004-2008). DELMIRO GOUVEIA-AL AGOSTO DE 2019.

(2) 2. LINO EDUARDO MONTEIRO PEDROSA. NA GINGA DO TEMPO, AS LUTAS: UMA ANÁLISE DAS DISPUTAS POR SENTIDOS E USOS DA CAPOEIRA ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL (2004-2008). Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Curso de História como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado em História. Orientador: Gustavo Manoel da Silva Gomes. DELMIRO GOUVEIA-AL AGOSTO DE 2019.

(3) Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca do Campus Sertão Sede Delmiro Gouveia Bibliotecária responsável: Renata Oliveira de Souza – CRB-4/2209 P372n Pedrosa, Lino Eduardo Monteiro Na ginga do tempo, as lutas: uma análise das disputas por sentidos e usos da capoeira enquanto patrimônio cultural imaterial do Brasil / Lino Eduardo Monteiro Pedrosa. – 2019. 42 f. Orientação: Prof. Me. Gustavo Manoel da Silva Gomes. Artigo monográfico (Licenciatura em História) – Universidade Federal de Alagoas. Curso de História. Delmiro Gouveia, 2019. 1. História social. 2. Capoeira. 3. Registro. 4. Patrimônio Cultural Imaterial. 5. Cultura. I. Título. CDU: 94(81):793.3.

(4) 3.

(5) 4.

(6) 5. AGRADECIMENTOS Dedico esse espaço a todos e a todas que contribuíram de forma direta ou indiretamente para minha formação como profissional e como ser humano, sendo assim faço meus agradecimentos a: Minha mãe Lourdinha pelo amor e carinho que nunca me deixou faltar, ao meu pai Everaldo pelo exemplo de homem que sempre foi para mim, meu verdadeiro herói da vida real. Em alguns momentos da minha jornada acadêmica, onde pensava em desistir, lá estavam eles para me dá força e aconselhar a nunca desistir dos meus sonhos. Minha querida esposa Joelma pelo amor, paciência e dedicação de sempre comigo, sempre me dando força para seguir meus objetivos. A meu amado filho Ian (papai) pelos momentos de desafogo de uma rotina estressante que é trabalhar dois turnos e estudar a noite, era no seu carinho que me dava força para continuar. Meu irmão mais novo Vevé e minha irmã Juliana que mesmo distante, sempre procurou me ajudar de alguma maneira. Peço muito a Deus para que nossa amizade entre irmãos continue sempre igual, um ajudando o outro. Minhas tias e tios, primos e primas, no período que precisei morar em Delmiro, me acolheram da melhor forma possível, um abraço especial para minha tia Antônia, meu tio Adalberto e meus primos Ariston e Amanda. Ao meu primo/irmão Juninho pelo companheirismo de sempre na graduação e na vida. Aos meus amigos pessoais e amigos da graduação da turma intitulada “Os farrapões”, pelos quatro anos mais intensos da minha vida. Seguimos em frente companheiros! Ao grupo de capoeira do qual fiz parte “Pura Ginga Capoeira” onde tudo começou, da primeira ginga, do primeiro “tombo”, foi a partir dessa prática cultural que procurei desenvolver de forma mais aprofundada meu tema de pesquisa. Um abraço para todos meus irmãos capoeiristas, em especial para meu amigo e hoje monitor “Neguinho”. Salve capoeira! A todos que fazem parte do equipamento cultural da UFAL Abí Axé Egbé, onde tive o enorme prazer de fazer parte como percursionista, lugar de grandes debates científicos, éticos raciais e de luta contra o racismo e intolerância religiosa. A luta continua meus amigos. Axé! Ao meu professor e orientador Gustavo Manoel da Silva Gomes pela amizade, paciência, ensinamentos, “puxões de orelha”, sempre me instigando a buscar o melhor, um pai que a vida me deu. Obrigado por tudo!.

(7) 6. RESUMO A capoeira durante os séculos XIX e metade do século XX foi uma prática cultural perseguida e criminalizada. Somente em 2008 foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sustentada pelo decreto de nº 3.551/00. Nos últimos anos viu-se a expansão da capoeira pelo mundo, provenientes de remodelagens internas que contribuíram para esse crescimento, desmistificando assim estereótipos preconceituosos. O presente artigo objetiva analisar como se deu o processo de registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial brasileiro a fim de identificar os mecanismos utilizados que projetaram essa titulação. Tivemos como referência para esse artigo as obras de Oliveira e Leal (2009), Cid (2016), que nos auxiliam a entender a história social da capoeira no Brasil; a metodologia da análise do discurso de Orlandi (1999; 2001); Santos (2005) e Gomes (2013), que nos ajudam a pensar os conceitos de raça, cultura, subjetividade e poder. Como fontes, utilizamos documentos (inventário da capoeira, parecer técnico, certidão de titulação) disponibilizados na plataforma digital do IPHAN, que auxiliaram no estudo do tema. Palavras-chave: Capoeira; História; Registro; Patrimônio Cultural Imaterial..

(8) 7. ABSTRACT Capoeira during the 19th and 20th centuries was a persecuted and criminalized cultural practice. Only in 2008 was it acknowledge as Intangible Cultural Heritage of Brazil by the Institute of National Historical and Artistic Heritage (IPHAN), supported by Decree No. 3.551/00. In recent years there has been the expansion of capoeira around the world, resulting from internal refurbishments that contributed to this growth, thus demystifying prejudiced stereotypes. This article aims to analyze how the process of capoeira registration as a Brazilian intangible cultural heritage took place, in order to identify the mechanisms used that designed this title. We had as reference for this article the works of Oliveira and Leal (2009), Cid (2016), which helped us understand the social history of capoeira in Brazil; Orlandi's discourse analysis methodology (1999; 2001); Santos (2005) and Gomes (2013), who help us think about the creations and appropriations of the concept of Afro-Brazilian culture. As sources, we used documents (capoeira inventory, technical opinion, certificate of title) made available on the IPHAN digital platform, which helped in the study of the theme. Keywords: Capoeira; History; Registry; Patrimony Cultural intangible..

(9) 8. SUMÁRIO AGACHADO AO PÉ DO BERIMBAU, O JOGO QUE SE INICIA........................................ 9 1. “A CAPOEIRA CRESCEU, GANHOU FORÇA GIROU NESSE MUNDO” ................... 11 2. “ISSO AQUI É CAPOEIRA, É CAPOEIRA BRASIL”: A CONSTRUÇÃO DA CAPOEIRA COMO SÍMBOLO NACIONAL ............................................................................................. 17 3. “SERÁ QUE NO PASSADO PUDERAM IMAGINAR, QUE A CAPOEIRA CHEGARIA ONDE ESTÁ?”: A CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL .................................................................................................................................... 23 3.1. O Registro ...................................................................................................................... 24 3.2. Algumas ações de salvaguarda promovidas pelo Estado ............................................... 33 NO FINAL DO JOGO, UM APERTO DE MÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS ................... 36 FONTES PRIMÁRIAS ............................................................................................................ 38 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 39.

(10) 9. NA GINGA DO TEMPO, AS LUTAS: UMA ANÁLISE DAS DISPUTAS POR SENTIDOS E USOS DA CAPOEIRA ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL (2004-2008) AGACHADO AO PÉ DO BERIMBAU, O JOGO1 QUE SE INICIA Criada por escravos negros no Brasil, a capoeira foi um instrumento de enfrentamento e autodefesa desenvolvida diante do sistema escravocrata. Por se tratar de uma manifestação originalmente negra, a sua prática foi ameaçada, perseguida e, no século XIX, foi criminalizada por lei. No decorrer do século XX, os discursos sobre a prática da capoeira voltaram-se para a transformação dessa prática em esporte, uma arte marcial nacional. Os jogos de interesses relacionados a esse “novo” discurso eram diferentes pois enquanto alguns sujeitos buscaram descontruir antigos estereótipos raciais e sociais sobre a capoeira, outros desenvolveram um conjunto de interesses políticos e econômicos em torno dela, tornando-a, mais à frente, como símbolo nacional. Em 2008 a capoeira foi registrada como patrimônio cultural imaterial do Brasil, título outorgado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com base no decreto de nº 3.551/002. Ela é uma expressão cultural afro-brasileira que vem ganhando destaque na mídia nacional e internacional por ter uma grande importância histórica para a memória das populações negras como um todo, e do Brasil, em específico, mas também pela sua relevância pedagógica e sociocultural no desenvolvimento cognitivo, motor e sensível dos seus praticantes. Segundo dados do IPHAN, a capoeira vem se expandindo constantemente, sendo atualmente praticada em mais de 150 países3. Quando comecei a praticar a capoeira em meados de 2010, na cidade de Piranhas, Sertão alagoano, enxergava essa manifestação cultural apenas como esporte, uma arte marcial que me ajudaria a praticar um exercício físico. A priori não conhecia a história conflituosa que envolvia as práticas culturais de sua origem afro-brasileira. No momento em que ingressei no campo acadêmico, instigado pelas leituras e debates, reconheci outros argumentos que me ampliaram a importância da capoeira. Senti a necessidade de transformar o “meu esporte” em “meu objeto de estudo” e iniciei a aprofundar-me nos estudos sobre essa prática cultural que traz consigo importantes elementos de ancestralidade do povo negro no Brasil. Ao compreender a. 1. Termo usado pelos capoeiristas para designar o conjunto de movimentos aplicados durante a roda de capoeira, um jogo de pergunta e resposta, ataque e defesa. 2 Determinação que institui o registro de bens de natureza imateriais. O decreto foi oficializado em 04 de agosto de 2000. 3 IPHAN. Roda de Capoeira. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66>. Acesso em: 15 jun. 2019..

(11) 10. historicidade das culturas de matriz africana, pude perceber que a capoeira foi dotada de diferentes sentidos produzidos por discursos que produziam distintas relações de poder. Dessa forma, suas conotações sociais, culturais e políticas foram mudando. Motivei-me, então, a conhecer o processo de registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil, fato que é efeito das lutas travadas pela comunidade negra contra o racismo e a apropriação cultural do Estado. Mas esse registro instalou diversos significados entre conquistas e desafios, entre mudanças, permanências e alojamento de novos embates, negociações, resistências e também de novas lutas e esperanças para a compreensão e reorientação das relações raciais no Brasil. A capoeira desde sua origem foi alvo de perseguições e preconceitos, devido ao fato de ser uma manifestação de origem negra e praticada essencialmente por negros. Podemos frisar como o ápice desse episódio, o período (final do século XIX e início do século XX) pelo qual tornou-se crime no Brasil. Contudo, a partir dos anos 30 do século XX, vários processos fizeram a capoeira transitar entre discursos e práticas institucionais que paulatinamente deslocaram seu status da marginalização para uma provocativa valorização numa sociedade estruturada pelo racismo. Partindo dessa análise, fazemos as seguintes perguntas: como se construíram as lutas e negociações que fizeram a capoeira deixar de ser uma prática cultural marginalizada, para se tornar anos depois, símbolo de nacionalidade? Que jogos de interesse alimentaram esse processo? A patrimonialização da capoeira gerou e ainda gera questionamentos de grande parte dos movimentos negros sobre os mecanismos que foram aplicados pelo governo para obter a legitimidade do título, bem como a política aplicada aos grupos de capoeiristas, muitos já brancos e de classe média, após a titulação. Após o registro, juridicamente, a capoeira passou a ser salvaguardada, mas, os discursos e práticas por trás dessa ação de “patrimonialização” levam-nos a pensar como o Estado utilizou estratégias políticas buscando uma melhor valorização institucional em nível internacional, visto que a democracia racial foi inicialmente a maneira como o Estado propôs discursivamente apropriar-se das culturas de origem negras no Brasil. Nesse sentido, buscamos problematizar como a capoeira é historicamente mediada e mediadora de relações raciais e sociais no Brasil. Partindo dessa discussão, esse artigo objetiva analisar o processo de registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial, seguindo como base a metodologia da análise do discurso trabalhada pela autora Eni Orlandi4. Utilizamos como fontes o inventário (dossiê) sobre a capoeira e o parecer do IPHAN, elaborado pela antropóloga Maria Paula Fernandes Adinolfi, 4. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999; Idem. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas: Pontes, 2001..

(12) 11. documentos que construíram a legitimidade institucional do bem. Alguns mecanismos midiáticos pós registro (em especial o filme Besouro), também nos serviram como corpus de reflexão nesse artigo. Utilizamos como recorte temporal os anos 2004-2008 porque foi nesse período que a capoeira passou ser discutida incisivamente como patrimônio cultural imaterial brasileiro, embora tenhamos inserido no texto outros períodos que contextualizam a história da capoeira no Brasil. Em 2004 o então Ministro da Cultura Gilberto Gil convidou alguns capoeiristas para se apresentarem para Organização das Nações Unidas (ONU) em um show na Suíça. Essa inciativa foi de grande repercussão e estabeleceu um debate comprometido com a importância dessa prática cultural para o mundo. Os efeitos desse debate teve consequências concretas muito rápidas, pois já em 2008, foi produzido o registro da capoeira como bem patrimonial no IPHAN e, daí, sucederam as etapas que resultaram na titulação oficial. Na primeira seção deste texto realizamos uma revisão bibliográfica que nos possibilita narrar resumidamente alguns marcos temporais importantes da história da capoeira, a fim de problematizar e compreender como essa prática cultural surgiu e foi apropriada por diferentes embates e relações de poder assimétricas, sobretudo, quando são considerados os critérios raciais. No segundo tópico relatamos a forma como o Estado apropriou-se das culturas africanas e afro-brasileiras no século XX, criando símbolos de identidades nacionais. Para entendermos todo esse processo, discutiremos como o movimento negro e os planos paralelos do Estado colaboraram de formas diferentes no enaltecimento das manifestações culturais de origem negra no Brasil. Na terceira e última parte do texto, analisamos o processo de registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil considerando as metodologias utilizadas e problematizando as ambiguidades das políticas de salvaguarda criadas pós-registro, valorização e divulgação da capoeira. 1. “A CAPOEIRA CRESCEU, GANHOU FORÇA, GIROU NESSE MUNDO”5. 5. Os trechos colocados entre aspas nos títulos das seções correspondem a excertos de ladainhas de capoeira. A ladainha é o lamento cantado pelo capoeirista durante o jogo. Geralmente essas letras contam histórias de vida, episódios da escravidão, sofrimento e formas de resistência de indivíduos ou grupos negros. Nessa seção referime à ladainha Nego Forte, do Mestre Toni Vargas. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/mestre-tonivargas/nego-forte.html>. Acesso em: 23 jul. 2019..

(13) 12. Para os pesquisadores, não há como precisar com exatidão o surgimento da prática cultural da capoeira pois não existem documentos que comprovem objetivamente a sua primeira aparição. A identidade desta prática cultural ainda é atravessada por questionamentos e mitos fundadores por parte de alguns pesquisadores memorialistas e dos mestres tradicionalistas baianos. As narrativas sobre essa origem propõem, resumidamente, três supostas hipóteses. A primeira fala que a capoeira nasceu na África e foi trazida ao Brasil por meio dos escravizados. Segundo o inventário6 da capoeira, essa possibilidade é proveniente de algumas danças guerreiras que aconteciam em algumas regiões do continente africano, como por exemplo a dança da zebra ou N’Golo7. A segunda suposição é menos aceita, em que a criação da capoeira é atribuída aos indígenas, apoiando-se em argumento linguístico, pelo qual remete à terminologia da palavra “capoeira”, do tupi: “mato ralo”8. Já a terceira tese é a mais reconhecida pelos pesquisadores. Nela explica-se que essa prática cultural teria surgido no Brasil como estratégia de reinvenção das tradições dos negros africanos e seus descendentes diante da condição social na qual se encontravam: no cativeiro; “ela é fruto da combinação de tradições africanas dispersas com invenções culturais crioulas”9. Oliveira e Leal10 comentam que apesar das diferentes interpretações sobre a capoeira, essa prática sempre atravessou diversas discussões. Contudo, pela sua origem étnica e social, a maioria dos discursos que a traziam como tema associaram-na, durante muito tempo, ao mundo da desordem e do crime. A possibilidade da capoeira ser originalmente brasileira é consideravelmente relevante. Estudos sobre outras manifestações culturais afro-brasileiras identificam idiomas africanos originalmente banto e yorubá nas próprias nomenclaturas dessas práticas. Contudo, na capoeira, não conseguimos encontrar essa mesma origem. Vale ressaltar que alguns mestres capoeiristas baianos como por exemplo o Mestre Pastinha em viagens à África em 1966, não constatou nenhuma prática semelhante à capoeira.. 6. Documento publicado em 2007, elaborado por uma equipe organizadora do IPHAN que tinha como objetivo registrar a história da capoeira pelo Brasil. O documento foi um dos requisitos para que a capoeira recebesse o título de patrimônio cultural imaterial do Brasil. Cf.: IPHAN. Inventário para registro e salvaguarda da capoeira como patrimônio cultural do Brasil. Brasília: IPHAN, 2007. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66>. Acesso em: 16 abr. 2019. 7 Dança do Sul da Angola, ocorre durante o período de puberdade dos jovens. Na dança, os mesmos formam uma roda e se diferem coices e cabeçadas lembrando a zebra no período de acasalamento. 8 RÊGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968. 9 SOARES, 1999 apud OLIVEIRA, Josivaldo Pires de; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009. (p. 34). 10 OLIVEIRA, LEAL, Op. Cit..

(14) 13. Durante os séculos XIX e parte do século XX, a capoeira era uma manifestação cultural oficialmente desvalorizada, perseguida e criminalizada 11. No discurso do Estado e das elites que o comandavam e faziam as suas leis, os capoeiristas eram classificados como arruaceiros, violentos e vadios, entre outros adjetivos pejorativos12. Vale destacar que a maioria dos capoeiristas daquela época eram negros, sendo assim, a sociedade reforçava ainda mais esses estereótipos, afinal, estamos falando de uma sociedade profundamente estruturada em critérios raciais para distribuição de bens e privilégios 13. Portanto, discutir as memórias e história da capoeira é discutir a história das relações raciais no país. Essa história é composta como um jogo entre diferentes óticas e narrativas, idas e vindas, altos e baixos, golpes e defesas, perguntas e respostas. Desde finais do século XIX até o início do século XX, os projetos políticos de modernização das cidades brasileiras estavam apoiados em discursos médicos e sanitaristas embasados na eugenia (busca em estabelecer a pureza e a hierarquia entre as raças) e nos grupos de líderes políticos católicos. Nessa perspectiva, havia um compromisso em “higienizar”, “limpar”, “expurgar” tanto em níveis biológicos quanto psíquicos e culturais, a presença de povos considerados “inferiores”. Foi neste contexto que espaços, comunidades e práticas culturais negras começaram a ser classificadas pelos discursos médico-sanitaristas, estereotipados pelos discursos midiáticos, perseguidos e encarcerados pelas forças policiais14. O “salto” para que a prática da capoeira deixasse o status de “doença moral” 15, deu-se quando começou a ser valorizada e reconhecida publicamente. Para Vidor e Reis16, essa valorização iniciou na década de 1930 com a modalidade chamada de “capoeira regional” e a reestruturação do estilo angolano. Se havia as heranças das discussões eugenistas, de um lado, de outro havia as discussões nacionalistas, selecionando símbolos para compor a tela miscigenada a que chamar de cultura e identidade nacional, da qual o povo brasileiro deveria BRASIL. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil-1890. Capítulo XIII – Dos vadios e Capoeiras. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 jun. 2019. 12 Os discursos condenavam os populares, os capoeiristas, mas sem necessariamente explicar os motivos e contextos daquilo a que chamavam de “arruaça”. Em seus estudos Carvalho (1987) percebeu que muitas vezes as arruaças e agitações populares eram motivadas por políticos durante a Nova República que contratavam os capoeiristas como capangas para causar confusões e desordens em dias de votação, provocando assim distrações para possíveis alterações de resultados. Cf.: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 13 FRY, Peter. A Persistência da raça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 14 GOMES, Gustavo Manoel da Silva. A Cultura Afro-Brasileira como Discursividade: histórias e poderes de um conceito. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife-PE. 15 VIDOR, Elisabeth; REIS, Letícia Vidor de Sousa. Capoeira: uma herança cultural afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2013. 16 Ibidem. 11.

(15) 14. se orgulhar. Não podemos esquecer que em 1933, havia sido publicado o livro Casa Grande e Senzala do sociólogo Gilberto Freyre. Nesse texto, o autor buscou demonstrar, mesmo que de forma hierarquizada e estereotipada, algumas práticas culturais de origem negra na cultura nacional e com isso forjava o mito da democracia racial 17. Ao contrário das teses de Nina Rodrigues18 e de Arthur Ramos19, a tese de Freyre afirmava que havia algo da negritude em nossa miscigenação que deveríamos reconhecer e nos orgulhar. O que não estava claro no discurso de Freyre é como as suas metáforas suavizaram a hierarquia na leitura sobre a cultura afro-brasileira em comparação com a cultura portuguesa. A primeira se difundia com força na formação do Brasil, mas vinha de “lugares menores”, do instinto, dos sentidos do corpo e não de uma racionalidade consistente. Portanto, não ofereceria riscos à ordem e ao progresso nacional, daí poder ser símbolo admirável. Depois de inúmeras perseguições e prisões, a capoeira apenas foi retirada do código penal brasileiro em 1937 durante o governo de Getúlio Vargas. Mesmo com a sua retirada do código penal, essa prática cultural ainda era vista como “coisa de preto”, portanto, como malandragem e violência. As academias de capoeira que foram fundadas durante esse período, eram sempre vigiadas pela polícia, não possuíam total liberdade20. Nesse contexto, reestruturou-se a capoeira angola, uma modalidade de jogo que se aproxima mais das antigas tradições e formas de capoeira elaborada pelos escravos 21. Esse estilo é caracterizado por ser um jogo lento e rente ao solo, porém, muito eficaz no combate. Temos como principal divulgador dessa modalidade Vicente Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha, 18891981). A mandinga22 do angoleiro23 é uma das principais características dessa modalidade de jogo. Para muitos espectadores, os angoleiros aparentam estar “dançando” em um diálogo de corpo baseado em perguntas e respostas, ataque e defesa. A música/ladainha cantada neste estilo não é acompanhada de palmas, pois os capoeiristas presentes demonstram respeito à letra. O ritmo dos instrumentos (berimbau, pandeiro e atabaque) são identificados por serem lentos, fazendo com que os capoeiristas apliquem os golpes na mesma sintonia.. 17. GOMES, Gustavo Manoel da Silva. A Cultura Afro-Brasileira como Discursividade: histórias e poderes de um conceito. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife-PE. 18 NINA RODRIGUES, Raimundo. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008. 19 RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2002. 20 VIDOR, Elisabeth; REIS, Letícia Vidor de Sousa. Capoeira: uma herança cultural afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2013. 21 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negrada instituição: os capoeiras na corte imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: Access, 1999. 22 Nome dado às habilidades dos capoeiristas na hora do jogo de estilo angola, mostrando sempre sagacidade e alegria nos movimentos. 23 Capoeiristas que praticam da modalidade da capoeira angola..

(16) 15. Vicente Ferreira Pastinha, mais conhecido no cenário da capoeira como Mestre Pastinha, foi um importante mestre. Ele procurou diferenciar o estilo de jogo angolano da modalidade regional exercida por mestre Bimba. Pastinha exercia outros serviços profissionais em Salvador, costumava pintar quadros a óleo24, pois a prática da capoeira ainda não garantia o sustento da família, além de que durante uma parte de sua vida ela ainda estava criminalizada. Mesmo como toda a sua contribuição para o cenário da capoeira e sendo conhecido internacionalmente como referência cultural negra da Bahia, Mestre Pastinha, ao final dos seus dias, sofreu com o descaso e abandono dos poderes públicos, falecendo em 1981. A capoeira regional foi um estilo de jogo criado por Manoel dos Reis Machado (Mestre Bimba, 1900-1974) caracterizado por ser uma modalidade mais rápida no combate em pé, ou seja, diferente do estilo angola que é mais rente ao chão. Bimba, como era chamado no meio da capoeira, foi inicialmente praticante da capoeira angola, mas considerava que esse estilo precisava de algumas modificações para efetivar golpes “mais contundentes” em uma possível luta. Com isso, criou os sete toques da capoeira regional (Iúna, Amazonas, Cavalaria, Santa Maria, Benguela, Idalina e São Bento Grande de Bimba). Nesses toques ficaram marcantes as variações rítmicas e as sequências dos estilos no momento do jogo25. O mestre relatava que a capoeira estava perdendo espaço para outras modalidades de luta (artes marciais estrangeiras) e que a capoeira precisaria de uma “reestruturação” para que não fosse esquecida26. Ele elaborou sequências de ataque e defesa de forma que utilizasse mais o jogo em pé e que fossem rápidos e contundentes em uma luta corpo a corpo. Inicialmente a capoeira regional foi nomeada por Bimba como “luta regional baiana”, e em seguida como capoeira regional. Para Assunção 27, àquela época, outros mestres tradicionalistas baianos não concordavam com essa “modernização” da capoeira. Eles afirmavam que a capoeira perdia a ancestralidade africana. Mestre Bimba divulgava a capoeira de uma forma que ela se tornasse conhecida como uma arte marcial brasileira. Ele constantemente aparecia em manchetes de jornais desafiando outros lutadores a fim de demonstrar a aplicabilidade da capoeira em combate. As lutas de que Bimba travava publicamente, convocava em forma de desafios, ficaram cercadas de curiosos. O público lotava o local, visto que alguns dos lutadores que compareciam eram estrangeiros,. 24. VIDOR, Elisabeth; REIS, Letícia Vidor de Sousa. Capoeira: uma herança cultural afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2013 25 CAMPOS, Hélio. Capoeira Regional: A Escola de Mestre Bimba. Salvador: EDUFBA, 2009. 26 VIDOR, Op. Cit. 27 ASSUNÇÃO. Matthias Röhrig. Ringue ou academia? A emergência dos estilos modernos da capoeira e seu contexto global. Reino Unido: University of Essex, 2012..

(17) 16. praticantes de outras artes marciais28. As vitórias de Bimba acabavam sendo também a vitória dos regionalismos e nacionalismos da época. Contudo, além das lutas reconhecidas que venceu, o Mestre aparecia também nos jornais em cenas de luta contra a polícia, pois ela ainda era considerada crime. Em 1937, o Mestre conseguiu uma licença oficial e criou a primeira academia, o Centro de Cultura Física e Capoeira Regional29, onde passou a atuar de forma vigiada. “A capoeira de Bimba, restrita a espaços fechados e representada como esporte nacional, parte em busca de adesão de outras classes sociais, conseguindo inclusive atrair a atenção internacional por meio do turismo”30. Para Oliveira e Leal31, o processo de valorização e reconhecimento da capoeira foi iniciado quando o Bimba e Pastinha remodelaram, não só as formas de se jogar a capoeira, mas também os discursos sobre ela, deslocando-a para o campo da educação física, desconstruindo estereótipos antigos para que ajudasse na leitura social da capoeira como meio de construção de um “bom cidadão”. Bimba, por exemplo, só aceitava em sua academia aquele que apresentasse algum tipo de documento que comprovasse que estava estudando ou trabalhando. Neste caso, a imagem do capoeirista enquanto vagabundo ia sendo substituída pela imagem de um cidadão disciplinado, o que compactuava com a política do Estado Novo de formar “bons cidadãos”. Foi nessa nova rede de significação valorativa que a capoeira foi disputada por diferentes forças: o Estado, intelectuais e coletivos negros e diversos grupos de capoeira. As culturas de matrizes africanas passaram de alvos de preconceitos a símbolos nacionais, mas durante o século XX, sendo disputadas estrategicamente pelo Estado a fim de conquistar maior visibilidade e confiança internacional, reforçando o estereótipo de que o Brasil vivia uma “democracia racial”. Neste sentido, o Estado “colaborou” com práticas culturais de origem negra, tais como a capoeira, mas essa forma de colaboração sempre foi submetida às críticas e disputas com os coletivos e intelectuais negros, bem como os grupos de capoeiristas que se embatiam justamente contra a tutela governamental sobre as culturas africanas e afrobrasileiras. Eles ratificavam a ancestralidade e a representatividade negra. Para Santos, tratavase de uma "disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil” 32.. 28. VIDOR, Elisabeth; REIS, Letícia Vidor de Sousa. Capoeira: uma herança cultural afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2013 29 Ibidem. 30 Ibidem, p. 53. 31 OLIVEIRA, Josivaldo Pires de; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009. 32 SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005..

(18) 17. 2. “ISSO AQUI É CAPOEIRA, É CAPOEIRA BRASIL” 33: A CONSTRUÇÃO DA CAPOEIRA COMO SÍMBOLO NACIONAL No século XX o governo brasileiro utilizou da tese da democracia racial para conquistar, ou como descreve Santos34, “namorar” os países do continente africano que estavam acabando de se tornar países independentes. O discurso de que o Brasil era um país mestiço e igual para todas as raças, fez com que essas estratégias de internacionalização da política econômica utilizassem como instrumento de poder as culturas africanas e afro-brasileira mais próximas, como foi o caso do Candomblé, o samba, a capoeira, o frevo... transformando-as mais à frente em símbolos de identidade nacional35. A capoeira figurou como símbolo das identidades culturais negra, baiana e nacional em contextos voláteis em que se cruzam os interesses políticos e econômicos do Estado Brasileiro, das elites, dos intelectuais e artistas e dos segmentos negros que praticam a capoeira. Santos 36 afirma que, num primeiro momento, durante os anos de 1960/70, a capoeira figurou no hall das práticas culturais afro-brasileiras contempladas por algumas políticas públicas, enquanto alvo de valorização e publicidade porque isso poderia potencializar os ganhos políticos e econômicos dos governos, inclusive, em nível internacional. No segundo momento, durante os anos de 1980/90, ela foi deslocada no interior dessas políticas públicas pelos discursos e práticas de sujeitos negros que, adentrando nos órgãos oficiais do poder público e representando os segmentos populares negros, passaram a instituir suas pautas políticas, econômicas, sociais e culturais em programas políticos de caráter contínuo. As histórias e os costumes da África passavam a ser destaques nos meios de comunicações da época, propagando um cenário que fizesse com que a sociedade brasileira se “habituasse” em ver divulgações constantes de costumes e tradições dos povos africanos. Além disso, o Estado brasileiro seduzia as massas populares africanas divulgando uma igualdade racial que não existia no Brasil. De acordo com Santos, era comum que nas mesmas manchetes de jornais fossem divulgados algum tipo de preconceito para com pessoas ou grupos negros,. 33. O PÉ PASSOU - Ladainha do Grupo Capoeira Brasil. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/capoeirabrazil/513198/>. Acesso em: 01 jul. 2019. 34 SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005. 35 Ibidem. 36 Ibidem..

(19) 18. logo, a democracia racial que até então era a ideologia de “namoro” do Estado brasileiro, tornava-se mito para quem de verdade sofria o descaso do racismo estrutural37. Obviamente o Estado não tinha monopólio do poder na discussão e na prática política sobre a cultura negra. Em 1978 surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU) em defesa dos direitos da população negra, criticando e combatendo o racismo em suas diversas formas de realização, inclusive, as apropriações38 estatais sobre as práticas culturais de origem negra no Brasil. Gomes39 afirma que o MNU teve como fortes referências os movimentos negros dos EUA e autores latino-americanos e africanos. Os estudos sobre as culturas africanas e afrobrasileiras pelo MNU se deram com o objetivo de valorizar e potencializar a negritude, criticar politicamente e desmitificar estereótipos racistas. Ao ler Santos40 percebemos que diferentemente do MNU, o Estado brasileiro procurava “conhecer” as culturas africanas a fim estabelecer futuras parcerias econômicas entre diferentes países que estavam acabando de se tornar independentes, mas o fazia a partir do estabelecimento de novos estereótipos racializados sem as devidas críticas políticas. Por diferentes interesses, os símbolos culturais orbitavam em práticas discursivas opostas. Isso nos remete à noção de interdiscursividade de Orlandi41 para quem “o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos”42. Outro exemplo de interdiscursividade foi quando o Estado se apropriou de ordens discursivas dos mestres capoeiristas, mas as utilizou se distanciando da perspectiva de valorização da ancestralidade negra e das identidades dos capoeiristas. Os Mestres Bimba e Pastinha, quando na década de 1930 procuraram remodelar a capoeira trazendo-a para o campo da Educação Física, tinham como propósito desmistificar estereótipos agravantes na imagem dos capoeiristas (arruaceiros, violentos, criminosos, etc.), tornando-os “bons exemplos” para a sociedade. Contudo, durante a Ditadura Militar o Estado fomentou deliberadamente não somente a nacionalização, mas também o embranquecimento das práticas culturais afro-. 37. SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005. 38 Para Chartier (1990) o conceito de apropriação cultural está ligado às lutas de representações. Representação é o instrumento pelo qual um indivíduo ou um grupo constrói/cria/produz significados numa cultura. A disputa (cultural e política) por esses sentidos acarreta em um conjunto de interesses pela legitimação. É nessas intereções que ocorrem as apropriações dos instrumentos ou produtos que produzidos por outrem. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. 39 GOMES, Gustavo Manoel da Silva. A Cultura Afro-Brasileira como Discursividade: histórias e poderes de um conceito. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife-PE. 40 SANTOS, Op. Cit. 41 ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. 42 Ibidem, p. 33..

(20) 19. brasileiras, deslocando limites, formas, conteúdos e objetivos no desenvolvimento de algumas manifestações culturais negras no Brasil. Exemplo disso foi o caso da exigência de diploma de curso superior em Educação Física para poder abrir academias de capoeira. Isso ocorrido num país em que, consideravelmente, a maior parte da população negra não tinha acesso ao ensino superior. Deste modo, as normas do Estado impuseram limites institucionais e raciais a essa prática cultural, criando um contingente com novo perfil social (classe média) e racial (branco) como referências de capoeiristas. Durante a década 1970, o discurso para capoeira a enfatizava como esporte originalmente brasileiro, uma arte marcial nacional. Visto a aplicabilidade dos seus golpes e a eficácia no combate corpo a corpo, aos poucos ela deixava de ser considerada apenas como uma prática folclorista. Com o propósito de efetivá-la como prática desportiva, inicialmente foi vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo, fato esse bastante reivindicado pelos capoeiristas, tendo em vista a total diferença dos estilos e das regras do esporte43. Vale ressaltar que a confederação de boxe durante aquele período foi coordenada por militares. Deste modo, entendemos que a capoeira passava a ser monitorada e regida de forma autoritária. Já no final dos anos 1970 e no decorrer dos anos 1980, observamos que foi mais um período caracterizado por tensões políticas entre os capoeiristas e o Estado Brasileiro. À medida que a capoeira ganhava proporção com discurso de arte marcial nacional, percebemos que as práticas culturais de origem africanas e afro-brasileiras passaram a ser utilizadas como objetos turísticos. Na Bahia, era comum encontrar apresentações de capoeira em forma de espetáculos. Em decorrência disso, a mobilização dos capoeiristas, com apoio de Mestre Pastinha, organizaram reuniões com a prefeitura local, com a finalidade de retirar a capoeira dessa circunstância, atestando que muitas academias estavam sendo fechadas por esse tipo de atitude44. Ainda na década de 1980, e de forma mais incisiva na década de 1990, o discurso de esporte nacional se ampliou ainda mais, possibilitando que grupos de capoeira do Brasil fundassem filiais em outros países45. Podemos citar como exemplo disso o Grupo Abadá Capoeira46. Outro fator determinante para essa difusão foi a criação em 1992 da Confederação Brasileira de Capoeira, organização criada com objetivo de regulamentar o esporte em todo 43. SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005. 44 Ibidem. 45 IORIO, Laércio Schwantes; DARIO, Suraya Cristina. Educação Física, Capoeira e Educação Física: possíveis relações. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 04, n. 04, 2005. 46 Fundado em 1988 pelo Mestre Camisa, O grupo Abadá capoeira atualmente encontrasse representado em mais de 60 países. Cf.: <http://www.abadacapoeira.com.br/mundiais2017/>. Acesso em: 15 jul. 2019..

(21) 20. Brasil (vale ressaltar que capoeira anos antes estava vinculada à Confederação de Boxe). Para Queiroz47, essas ações afirmativas na política cultural tinham como discurso uma melhor valorização internacional, mas para que isso ocorresse, primeiramente o Estado teria que averiguar as práticas antigas. Diante disso, enxergamos que mesmo com toda essa expansão da capoeira, é perceptível os ganhos materiais e simbólicos do Estado sobre as práticas culturais negras, passando a utilizá-las como forte instrumento de divulgação política, econômica e social48. Queiroz afirma que na década de 1990 aconteceram novos incentivos políticos, passando a concretizar a importância cultural no desenvolvimento do país, a exemplo disso foram os programas de patrimônio histórico e a política de patrimônio imaterial. Mas foi a partir do início do século XXI que ações sobre políticas de patrimônio imaterial se consolidaram de forma mais visível. Vele destacar que as práticas culturais negras no Brasil foram sendo disputadas politicamente de diferentes formas em cada momento histórico do país. O “Estado ditatorial” assumiu o discurso de democracia racial para manipular as práticas culturais negras no Brasil, visando uma política externa de cunho internacional, mas reproduzindo deliberadamente as estruturas de segregação racial internas ao país. Por outro lado, enxergamos que as ações se tornam diferente levando em consideração o período do “Estado democrático”, que, paulatinamente e em diferentes tons e formas, a partir de 1985, procurou se modernizar frente às exigências dos órgãos internacionais para o combate ao racismo e xenofobia, assumindo o compromisso público em promover políticas de ações afirmativas que proporcionassem a valorização, o reconhecimento e a divulgação das práticas culturais negras. Desta forma, abriuse espaços para debates políticos democráticos que possibilitaram avanços sobre a temática da diversidade e multiculturalismo no Brasil. O conjunto de ações desenvolvidas sobre os bens de natureza imaterial durante o governo Lula impactaram inicialmente no desenvolvimento da capoeira no Brasil. Foi através desses procedimentos que a capoeira recebeu mais à frente o título de patrimônio cultural imaterial. Durante esse período, foram lançados alguns editais que viabilizaram o desenvolvimento da capoeira pelo país, vale ressaltar, que anos depois, acabaram perdendo o. 47. QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Ações afirmativas no âmbito da política cultural: algumas possibilidades de ação. In: SILVA, Cidinha da (Org). Africanidade e Relações Raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014. 48 Ibidem..

(22) 21. incentivo e frustrando vários praticantes, foi o caso das duas versões 49 do programa Capoeira Viva50. Em 2004, o então Ministro da Cultura Gilberto Gil lançou em um show na Suíça o programa nacional da capoeira, uma série de projetos que auxiliariam o progresso dessa prática no Brasil. Um ano depois do ocorrido, foram anunciadas quinze atividades de incentivo no estado da Bahia. Por outro lado, esse fato fez com que muitos capoeiristas questionassem o porquê desse auxilio só ser aplicado na Bahia, uma vez que a prática cultural já se fazia presente em todo território nacional51. No ano de 2006 concretizou-se a primeira plataforma que financeiramente auxiliaria a capoeira no território nacional: a primeira versão do programa Capoeira Viva. Inicialmente causava desconfiança pelos capoeiristas por ser algo novo, como também por ser controlado literalmente pelo Estado. Segundo relata Cid 52, os editais desse programa contemplavam nas seguintes áreas: produção de pesquisa (360 mil reais anuais), estudo/ações socioeducativas (300 mil reais anuais) e publicação de livros (900 mil reais anuais), os recursos eram pagos pelo Petrobrás Cultural53. Durante esse mesmo ano, foi lançado o programa Galeria dos Mestres54, em que foram premiados 50 mestres durante seis meses com uma bolsa no valor de novecentos reais. Apesar da singela remuneração, muitos mestres que não foram contemplados no edital questionavam a metodologia de análise, pois para eles, muitos dos agraciados não mereciam estarem nessa honraria, uma vez que não possuíam a mesma representatividade e experiência na história da capoeira55. Identificamos nessa situação a existência de conflitos entre os praticantes causados pelas ações do Estado que na medida que impõe limites, acaba reconfigurando formas de segregação e induzindo a esses tipos de comentários, afinal, são inúmeros mestres espalhados pelo Brasil e todos contribuem de alguma forma para a perpetuidade da capoeira.. 49. A primeira versão aconteceu no ano de 2006 e a segunda com menos expressão em 2007. Foi uma plataforma construída durante o Governo Lula, sendo intensificada pós-patrimonialização, tinha como objetivo de preparar e lançar editais que ajudassem no desenvolvimento da capoeira pelo Brasil. 51 CID, Gabriel da Silva Vidal; CASTRO, Mauricio Barros de. Processos de patrimonialização e internacionalização: algumas reflexões iniciais sobre o caso da capoeira entre o nacional e o global. Seminário Internacional-Políticas Culturais, 4, 2013, Rio de Janeiro. Anais... Disponível em: <http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2013/11/Gabriel-da-Silva-Vidal-Cid-et-alii-.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2019. 52 Ibidem. 53 O Programa Petrobras Cultural baliza as ações de patrocínio da Petrobras em torno de uma política cultural de alcance social e de afirmação da identidade brasileira. 54 O edital “galeria dos mestres” tinha como intuito premiar mestres que fizeram parte da história da capoeira no brasil, levando em consideração os feitos pela capoeira. Para isso, teria que ser elaborados dossiê que comprovasse tais eventualidades (CID, Op. Cit.). 55 Ibidem. 50.

(23) 22. Em 2007, a segunda versão do programa capoeira viva não teve a mesma renda que no ano anterior. As áreas continuavam sendo as mesmas, porém, com modestos recursos financeiros. O movimento dos capoeiristas reclamou dos atrasos de pagamentos e da falta de continuidade de alguns editais. Diante disso, elaborou um manifesto para demonstrar o descaso em que o programa estava se tornando:. Enfim, escrevemos esse manifesto para registro de uma grande insatisfação da comunidade que assina este documento. Apesar do repasse ter começado a ser efetuado, a comunicação com os contemplados deixou a desejar. O que chamou a atenção do poder público em relação à capoeira, além da sua história e cotidiano de resistência, foi exatamente a rede informal pela qual a capoeira se espalhou pelo mundo. É comum o apoio de um grupo de capoeira a outro ou de um capoeirista ao outro, por meio de combinações informais, que passaram e passam longe de cartório e outras instituições burocráticas. Isso funciona há décadas. Essa rede auxilia capoeiristas jovens e velhos. O ex ministro Gilberto Gil, chegou a comentar que o capoeirista se colocou na sociedade sem ajuda de ninguém... Ninguém nesse caso, reforço, significa órgãos do poder público56.. O Estado ao remunerar com um baixo valor de bolsa, restringe a uma quantidade de pessoas, limita e acaba excluindo capoeiristas que poderiam usufruir desse auxílio. Vale a pena lembrar que esse benefício não garante o sustento de uma família, caso a capoeira tornasse uma prática central para o contemplado. Ao estudar a história e a trajetória dos capoeiristas pelo Brasil, é possível identificar que muitos capoeiras exerciam outras funções trabalhistas, como foi o caso de Mestre Pastinha que trabalhava como pintor para complementar a renda familiar. Mesmo com toda essa dificuldade, pareceu-lhes importante pressionar o poder público a fim de buscar uma melhoria para o programa, pois essas ações, mesmo que modestas, foram algo que eles conquistaram e que não poderia ser acabado. Apesar desse episódio, outro fator importante foi o processo de inventário da capoeira que aconteceu durante as ações do governo Lula, legitimando assim o registro da capoeira no ano de 2008, como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Antecederam ao processo de inventário três seminários que reuniram diversos capoeiristas destacando a importância sobre o tema e a suposta aplicabilidade pós-patrimônio57.. 56. MANIFESTO DO CAPOEIRA VIVA, 2007 apud CID, Gabriel da Silva Vidal. A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de PósGraduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ. (p. 110). 57 CID, Gabriel da Silva Vidal; CASTRO, Mauricio Barros de. Processos de patrimonialização e internacionalização: algumas reflexões iniciais sobre o caso da capoeira entre o nacional e o global. Seminário Internacional-Políticas Culturais, 4, 2013, Rio de Janeiro. Anais... Disponível em:.

(24) 23. 3. “SERÁ QUE NO PASSADO PUDERAM IMAGINAR, QUE A CAPOEIRA CHEGARIA ONDE ESTÁ?”58: A CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL A noção de patrimônio esteve ligada por muito tempo ao ato de preservação de conjuntos arquitetônicos eurocêntricos (igrejas, fortes, engenhos, palacetes), chamado de políticas de pedra e cal. Para Vassalo59, a noção de patrimônio está anexada também à ideia de propriedade privada e de herança de um indivíduo ou de um grupo social. Transformar uma prática cultural, um bem de natureza imaterial60, em patrimônio é algo contemporâneo. Inicialmente esse projeto começou a ser discutido na década de 1970, mas foi ampliado em formato de lei na Constituição de 198861. Esse processo foi proveniente das novas ações de políticas afirmativas, que procuravam aos poucos se adequar aos novos padrões que emergiam na Europa. “A renovação vinha com atraso e também se dava por conta de imperativos internacionais, que priorizavam as questões do meio ambiente e levavam em conta o debate sobre quesitos identitários que emergiam da Europa moderna”62. Esse debate é ainda mais recente se levarmos em consideração a patrimonialização das práticas culturais negras, visto que a história do Brasil foi construída por racismo e desigualdades para com a comunidade negra. Entende-se que ao construir essas subdivisões63 nas políticas de patrimônio, o Estado tende a padronizar e embranquecer essas manifestações culturais, passando a construir discursos de símbolos de identidades nacionais não mais negras.. <http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2013/11/Gabriel-da-Silva-Vidal-Cid-et-alii-.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2019. 58 QUEM SABE RESPONDER? - Ladainha do Grupo Abadá Capoeira. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/abada-capoeira/quem-sabe-responder.html>. Acesso em: 15 jun. 2019. 59 VASSALO, Simone Ponde. O Registro da capoeira como patrimônio imaterial: novos desafios simbólicos e políticos. Encontro Anual da ANPOCS, 32, Caxambu-MG, 2008. Anais... Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt29-8/2581-simonevassalo-a-capoeira/file>. Acesso em: 08 jul. 2019. (p. 06). 60 “Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas)” (IPHAN. Patrimônio Imaterial. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234>. Acesso em: 27 jul. 2019). 61 Em 1988 foi incluído na constituição federal art. 215 e 216 a definição de patrimônio cultural para bens de natureza imateriais “veio a incluir documentos, antigas tecnologias, artesanato, festas, material etnográfico, várias formas de arquitetura e arte popular, religiões populares” (BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_216.asp>. Acesso em: 08 jul. 2019). 62 MARTINS, Ana Luiza. Fontes para patrimônio cultural: uma construção permanente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de. (Orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011. (p. 287). 63 Para Le Goff, essas subdivisões são denominadas de “dilatações da memória histórica” (LE GOFF, 2003 apud VASSALO, Op. Cit.)..

(25) 24. As manifestações culturais passaram a partir desse momento, a se enquadrar nessa nova perspectiva das políticas de patrimônio. “O conceito de patrimônio cultural imaterial é, portanto, amplo, dotado de forte viés antropológico, e abarca potencialmente expressões de todos os grupos e camadas sociais”64. Do mesmo modo, entendemos também que o discurso de patrimônio passa a ser também um artefato de produção de identidade e de auto reconhecimento, pois atravessa uma barreira em que uma minoria passa a se sentir representada. Diferentemente das políticas de patrimônio de pedra e cal, em que o ato de preservação e manutenção se dá por tombamentos arquitetônicos, os bens de naturezas imateriais são caracterizados pela ação de salvaguarda65. Para que essas práticas culturais sejam salvaguardadas, inicialmente é preciso torná-las patrimônio imaterial. A salvaguarda é o conjunto de ações promovidas pelo Estado, que quando realizadas, auxiliaram na perpetuação, preservação e “salvamento” do bem em questão para que não deixe de ser praticado, nem seja esquecido. O registro de patrimônio cultural imaterial da capoeira, não aconteceu de forma fácil e harmônica para enfim ser registrada como patrimônio cultural imaterial, baseado sob decreto de nº 3.551/0066. No entanto, para entendermos como isso culminou, partimos do ponto de análise dos mecanismos metodológicos aplicados pelo IPHAN para legitimar o bem em questão. Apesar de ser uma mudança histórica significativa na forma de representar a capoeira, a maneira como foi conduzida o registro não agradou todas as partes.. 3.1. O Registro Autores como Castro67, Cid68 , Vassalo69, entre outros pesquisadores, comentam que o processo de patrimonialização da capoeira iniciou-se em 2004, quando o ministro da cultura 64. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio Imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais. Brasília: UNESCO; Educarte, 2008. (p. 13). 65 O IPHAN define a palavra como apoio e fomento de bens culturais. “Quando o bem cultural é inscrito em um dos Livros de Registro do Iphan, dá-se início a execução de um conjunto de ações estratégicas de curto, médio e longo prazo, visando à sustentabilidade dos bens culturais reconhecidos como Patrimônio Cultural”. (IPHAN. Apoio e fomento de bens culturais. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234>. Acesso em 27 jul. 2019). 66 BRASIL. Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm>. Acesso em: 08 jul. 2019. 67 CASTRO, Maurício Barros de. Na roda do mundo: Mestre João Grande entre a Bahia e Nova York. 2007. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP. 68 CID, Gabriel da Silva Vidal. A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ. 69 VASSALO, Simone Ponde. O Registro da capoeira como patrimônio imaterial: novos desafios simbólicos e políticos. Encontro Anual da ANPOCS, 32, Caxambu-MG, 2008. Anais... Disponível em:.

(26) 25. Gilberto Gil convidou um grupo de capoeiristas para se apresentarem em um show em Genebra/Suíça, para homenagear o embaixador Sérgio Vieira de Mello 70, morto em um atentado terrorista em Bagdá. A ideia principal de Gil, era formar “uma roda Internacional de capoeira pela paz”. O ato ganhou muita proporção. Conforme os autores, o ministro lançou nesse show a base para o Programa Brasileiro e Internacional para a Capoeira. Após os devidos estudos e trabalhos que envolveu muitos intelectuais, políticos e capoeiristas, o processo culminou no registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil. O ministro falou em seu discurso:. A capoeira deixa entrever em cada gesto o jogo de lendas e histórias heroicas do martírio do povo negro no Brasil. Chegou o momento de potencializar essa prática cultural milenar, vista apenas como esporte. Que possamos nós, em vez de desapropriar, valorizar essa base cultural imensurável. [...] Dizem que a capoeira engravidou em Angola, mas foi nascer no Brasil. Ninguém sabe ao certo sua história. Mas parece mesmo que é uma criação bem brasileira a partir de elementos africanos, como o samba71.. A abordagem de Gil funciona com base no discurso fundador72 trabalhada por Orlandi73. Mesmo se tratando de uma prática cultural de matriz africana, o ministro defende os mesmos discursos de pesquisadores nacionalistas e memorialistas sobre a identidade da capoeira ser brasileira. Por ser uma prática cultural antiga, sem data de fundação, o Estado brasileiro tratou logo de legitimá-la como um bem cultural, tendo em vista a expansão que estava ganhando no mundo (outro país logo poderia reivindicar a patente). Dessa forma, a capoeira passou a ser conhecida mundialmente, e de forma oficial, como esporte originalmente brasileiro. É comum, por exemplo, observar em filmes, séries, documentários, jogos de lutas, os personagens brasileiros serem representados por capoeiristas. Entende-se que os discursos de nacionalidade por trás dessas políticas externas, em suma, tendem a ser mais vantajosas ao Estado do que a própria capoeira, pois acaba potencializando as políticas econômicas e culturais do Brasil em nível internacional. Infelizmente essa lucratividade não é revestida completamente para prática <https://www.anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt29-8/2581-simonevassalo-a-capoeira/file>. Acesso em: 08 jul. 2019. (p. 06). 70 Sergio Vieira de Mello (1948-2003), trabalhava na ONU como Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Morreu em um atentado a bomba contra a sede local em Bagdá. 71 BRASIL. Ministério da Cultura. Discurso em ocasião a homenagem ao embaixador morto em atentado. Genebra, Suíça. 19 agosto, 2004. Disponível em: <http://abadacapoeiraentornogo.blogspot.com/2010/12/discursode-gilberto-gil-na-onu.html>. Acesso em: 16 abr. 2019. 72 Para Orlandi (2001), os discursos fundadores com relação a história de um país, são discursos que atuam como referências basilares no imaginário constitutivo do país. Cf.: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas: Pontes, 2001. 73 Ibidem..

(27) 26. cultural da capoeira em si, visto que grande parte dos capoeiristas não se sentem plenamente contemplados por essas políticas públicas, entendendo que o governo se beneficia muitos mais do que cede. Naquela mesma oportunidade, Gil lançou o Programa Brasileiro e Internacional para a Capoeira74, um momento importante para o processo de registro. A antropóloga Maria Paula Fernandes Adinolfi75, uma importante personagem para legitimidade do registro da capoeira, comentou no seu parecer:. Além da imensa repercussão simbólica do fato, enquanto reconhecimento pelo Estado da importância da capoeira como “um ícone da representatividade do Brasil perante os demais povos” e uma das “grandes contribuições do Brasil ao imaginário do mundo”, naquela oportunidade, o Ministro também anunciou a futura criação de um Programa Brasileiro e Mundial da Capoeira 76.. A antropóloga foi uma das responsáveis pela juridicidade do registro da capoeira junto ao IPHAN, ela reconheceu no parecer o quanto foi importante esse momento para história da capoeira, afirmando que essa prática cultural de fato é oriunda do Brasil. Diante disso, o ministro da cultura lançou em determinado momento da sua fala, os planos para o programa brasileiro e internacional da capoeira. Diante das propostas levantadas por Gil, a patrimonialização da capoeira começou a ser discutida definitivamente no cenário brasileiro. Santos77 relata que, desde a década de 1980, a comunidade negra começou a inserir-se cada vez mais nos órgãos oficiais dos poderes públicos, buscando instalar seus discursos, debates, pautas e práticas em torno da cultura negra no Brasil. Os artistas, intelectuais e lideranças sociais ativistas negros inseriam-se na política e passaram a “cobrar” internamente os avanços e a importância dessas manifestações culturais. Em 17 de fevereiro de 2006, dois anos após a iniciativa do ministro, o presidente do IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, iniciou as tratativas legais e deu entrada no processo de solicitação para o registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Mas para. 74. Programa que tinha como objetivo a preservação da prática da capoeira. Propostas lançadas pelo Ministro Gilberto Gil. 75 Antropóloga do Iphan. O parecer técnico nº 031/08 que ela desenvolveu, junto com o inventário, contribuíram para legitimação da capoeira como patrimônio cultural imaterial. 76 ADINOLFI, Maria Paula Fernandes. Parecer n° 031/08, sobre o registro da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil. Brasília: IPHAN, 2008. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66>. Acesso em: 16 abr. 2019. (p. 01). 77 SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005..

(28) 27. que essa ação fosse aprovada pelo Conselho Consultivo de Patrimônio Cultural78, seria necessário um documento que descrevesse a história e a prática da capoeira pelo Brasil, desde os seus mitos fundadores até à consolidação como símbolo nacional. Uma pesquisa de cunho acadêmico que auxiliou na fundamentação histórica do bem, resultou no inventário (dossiê) da capoeira pelo Brasil. O dossiê foi elaborado por uma equipe de pesquisa do IPHAN, era composta pesquisadores e personagens que conviviam com a prática da capoeira. O coordenador de pesquisa foi o doutor em antropologia Wallace de Deus Barbosa, tendo como assistente de coordenação o doutor em História Maurício Barros de Castro. Fizeram ainda parte do grupo os consultores Frederico José de Abreu, Mathias Rohring Assunção e o mestre em Ciência da Arte e também mestre de capoeira do Rio de Janeiro, Carlos Alexandre Teixeira (Mestre Carlão). Por se tratar de um inventário extenso, levando em consideração o ambiente a ser pesquisado (todo território nacional), a equipe decidiu focar em cidades portuárias, com maiores registros sobre a escravidão, foram elas: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. O inventário foi publicado no ano de 2007, um ano antes da confirmação do registro da capoeira como patrimônio cultural. O dossiê foi divido em seis capítulos: 1. As referências históricas; 2. O aprendizado e as escolas de capoeira; 3. Descrição das rodas de capoeira; 4. Os instrumentos; 5. Os mestres e as rodas: patrimônio vivo; 6. Recomendações para prática e difusão da capoeira no Brasil79. Segundo Cid80, o dossiê fez abordagens metodológicas em três bases: trabalho de campo, pesquisa historiográficas e abordagens multidisciplinares de temas relacionados à capoeira. No primeiro capítulo do inventário, podemos observar as narrativas míticas que circularam nos discursos sobre a origem da capoeira no Brasil, informações sobre o período em que esta prática cultural permaneceu na criminalidade, as estratégias de reconhecê-la como esporte oficial e como folclore brasileiro durante o processo de uso político da cultura negra pelo Estado, pelo qual a capoeira teve grande expansão pelo mundo. Nesse momento, os autores procuraram contextualizar os importantes momentos que a prática cultural passou no Brasil, de uma prática marginalizada a símbolo de representatividade nacional.. 78. Este Conselho é formado por 22 representantes de entidades diversas, chefiado pelo presidente do IPHAN, com nove representantes de instituições públicas e privadas, e 13 da sociedade civil indicados pelo IPHAN e Ministério da Cultura (CID, Gabriel da Silva Vidal. A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ). 79 IPHAN. Inventário para registro e salvaguarda da capoeira como patrimônio cultural do Brasil. Brasília: IPHAN, 2007. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66>. Acesso em: 16 abr. 2019. 80 CID, Op. Cit..

Referências

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