2. TRÊS TESES EM ECONOMIA SOLIDÁRIA
2.4 Algumas considerações sobre as teses apresentadas
Expostas as principais teses em Economia Solidária, cabe finalizar este capítulo realizando uma síntese de suas aproximações e diferenças.
Sobre em que as teses se aproximam, pode-se perceber a existência de pelo menos cinco aspectos. O primeiro é que todas as teses vinculam a emergência e o desenvolvimento da Economia Solidária a uma ampla crise na economia, na sociedade e no Estado. Depois, todas identificam a presença de movimentos sociais no nascedouro da Economia Solidária e sua responsabilidade na adoção, por ela, da propriedade coletiva dos meios de produção e de processos democráticos como orientação e prática. Em seguida, todas as teses reconhecem que a Economia Solidária porta uma elevada heterogeneidade de arranjos econômicos, mas, em geral, de baixa densidade tecnológica; e que suas organizações e práticas diferem daquelas exercidas pelas unidades econômicas tipicamente capitalistas. As teses também identificam a articulação de agentes externos às iniciativas solidárias, especialmente as ONGs, para a viabilização de seus projetos. Por fim, as teses
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reconhecem que a Economia Solidária amplia a noção de emprego para a de trabalho e renda, o que é subjacente à sua concepção de política pública.
Quanto às diferenças, notou-se que há diversos consensos entre as teses favoráveis à Economia Solidária, de forma que elas serão apresentadas em bloco e antagonizadas com a tese de Barbosa.
A primeira divergência encontrada diz respeito ao caráter da Economia Solidária como forma de organização econômica. Para as teses que lhe são favoráveis, ela representa outra economia, com princípios, valores e finalidades diversas da economia capitalista. Sua marca distintiva é a solidariedade entre os membros partícipes das iniciativas, qual se projeta externamente em auxílio de outros trabalhadores e causas sociais. Para a tese contrária, a Economia Solidária mantém as relações de produção capitalistas mediante a subcontratação e a subsistência. Assim, ainda que portadora de características democráticas, ela não afeta a produção de mais-valia tampouco a reprodução do exército de reserva.
Em consequência, o sentido atribuído à origem da Economia Solidária também é diverso. Entre as teses que lhe são favoráveis, ela é considerada uma resposta autônoma e emancipatória dos trabalhadores à crise. Na tese de Barbosa, a Economia Solidária é uma resposta subordinada, pois as práticas que engendra respondem adequadamente às necessidades histórico-concretas do capital.
Sobre os resultados que a Economia Solidária proporciona, as teses que lhe são favoráveis apontam além do trabalho desalienante, a geração de renda, o aumento da qualidade de vida e a elevação da cidadania. Para Barbosa, ao contrário, a Economia Solidária é capaz de humanizar a vida coletiva, mas é, regra geral, economicamente inviável. Assim, a orientação para articulação com outros sujeitos sociais e instituições é bastante motivada pela dependência (estrutural) de recursos externos.
Quanto ao entendimento da tecnologia na Economia Solidária e sua repercussão na viabilidade econômica das iniciativas do campo, as teses que lhe são favoráveis pouco consideram a inscrição do antagonismo de classes nos meios de produção, afirmando ou supondo que nelas o capital está a serviço do trabalho. Logo, exercitado democraticamente, ele é o fator responsável por garantir a viabilidade econômica das iniciativas.
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Na tese de Barbosa, indica-se que na sociabilidade do capital, a viabilidade econômica depende da tecnologia especificamente capitalista, isto é, daquela orientada para a extração de mais-valia. Para a autora, nas iniciativas solidárias, “quanto mais cooperativo o processo de trabalho, maior a debilidade financeira e, quanto maior essa viabilidade econômica, menor o solidarismo, aproximando-se da empresa capitalista”(Barbosa, op. cit., p. 130).
Também se notam dissensos quanto à visão de mercado. Para as teses favoráveis à Economia Solidária, a despeito das transformações sócio-econômicas das décadas anteriores, entrevê-se a partir dela a regulação daquele em bases mais justas. Na tese contrária, pondera-se que a correlação de forças no país, assim como a posição deste na divisão internacional do trabalho, sugere a manutenção de um desenvolvimento capitalista que não conduz a um ambiente mais favorável às iniciativas solidárias.
Sobre a compreensão da Economia Solidária como política pública, entre as teses que lhe são favoráveis supõe-se que aquela ampliação da noção de emprego para a de trabalho e renda implica reconhecer que o trabalho não necessita ser exercido, unicamente, sob a forma assalariada. Abre-se, assim, a possibilidade de garantir de mecanismos públicos para o fomento e a expansão do trabalho associado.
Na tese de Barbosa, a referida ampliação significa a destituição do sentido do trabalho protegido e a fragilização da solidariedade social, na medida em que se impõe o trabalho precário a trabalhadores historicamente desassistidos pelas políticas públicas nacionais.
Por fim, há diferenças quanto às concepções sobre a economia e a sociedade civil. Nas teses favoráveis à Economia Solidária, a primeira é entendida como meio de satisfação de necessidades materiais que se encontra em situação de descontrole social. O que se vislumbra é que a economia atinja uma posição de equilíbrio com outras esferas da vida. Já a sociedade é praticamente afirmada como equivalente aos movimentos sociais. Suas práticas são sinônimas, por exemplo, de reciprocidade e solidariedade, elementos estes que conformam uma atuação política na perspectiva da justiça social e da preservação do “mundo da vida”. Dito de outro modo, de disciplinamento da economia e do Estado pela sociedade.
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Na tese de Barbosa, a economia (política) é historicamente localizada na sociabilidade do capital, cuja marca é a conquista da materialidade mediante a exploração da classe trabalhadora pela burguesia; e condiciona os processos sociais, entre os quais os políticos e ideológicos. Assim, a economia não é hodiernamente desequilibrada, mas especificamente caracterizada pelas contradições e antagonismos do modo de produção capitalista. Inclusive, o que se pensa sobre ela na atualidade – especialmente no âmbito da Economia Solidária – relaciona-se ao rebaixamento das condições de vida e das aspirações políticas da classe trabalhadora provocadas pela reorganização estratégica do capital das últimas décadas.
A sociedade civil, por sua vez, é entendida como portadora de instituições que garantem a hegemonia burguesa, mas atravessada pelas contradições de classe. Dela faz parte o Estado, ao qual ascendem grupos com poder e demandas sociais diversas.
Apresentadas as teses, seus temas e questões, pode-se agora avançar na literatura empírica em Economia Solidária para que se indique o quanto elas se afastam, se aproximam ou se complementam na explicação da realidade.
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3.
AS
INICIATIVAS
ECONÔMICAS
SOLIDÁRIAS:
UMA
REVISÃO DA LITERATURA.
Discutidas as mudanças estruturais que propiciaram o surgimento e desenvolvimento da Economia Solidária, assim como as teses que buscam interpretá-la e justificá-la, pode-se agora avançar na busca de respostas aos questionamentos colocados por esta dissertação.
Como anunciado na introdução, aqui se quer investigar os determinantes da (in)capacidade de geração de bem-estar econômico das iniciativas solidárias aos seus associados, de forma participativa e articulada ao enfrentamento de problemáticas públicas. Vê-se que isso significa, em outros termos, averiguar o potencial explicativo das teses antes apresentadas.
Nesse sentido, apresenta-se a seguir uma resenha da literatura sobre as principais características das iniciativas econômicas da Economia Solidária e, depois, uma primeira avaliação das aproximações e distanciamentos que aquelas teses possuem quanto a esta realidade. No transcurso da resenha, e como meio de realizar a discussão posterior, as características elencadas serão cotejadas com as categorias marxianas “trabalho” e “salário”, e com estudos mais recentes que captam sua atualidade.
Sobre a escolha do referencial teórico, cabe uma breve consideração. Como se viu na apresentação das teses em Economia Solidária, entre todas aquelas que lhe são favoráveis, nenhuma localiza o caráter do trabalho que esta realiza no seio do processo de produção capitalista. Ponderou-se que o pensamento marxiano, ao permitir aquela localização em toda e qualquer unidade econômica, também desvenda o sentido fundamental do trabalho nesta forma social de produção: a criação de trabalho excedente, ou mais-valia, para a acumulação privada de capital. Ora, se na aplicação das categorias “trabalho” e “salário” às experiências de Economia Solidária visualiza-se que este sentido fundamental se altera ou está se alterando, abrem-se as portas para identificar seu caráter como anticapitalista e/ou socialista. Se ele não se altera, podem-se apontar os meandros da subordinação da Economia Solidária ao capital, o que também significa evidenciar os
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eventuais equívocos das referidas teses. É com essa perspectiva metodológica, portanto, que a argumentação a seguir se constrói.
Ainda nesse âmbito, considerou-se que embora a tese contrária à Economia Solidária como novidade e alternativa social referencie-se em elementos do mesmo arcabouço teórico para tecer seus argumentos, realizar outro esforço analítico poderia revelar nuances diferentes sobre aquela. Dito de outro modo, acreditou-se que não havendo divergências essenciais desta abordagem com a referida tese, o presente trabalho poderia lhe complementar.
Por último, cabe dizer que o capítulo seguinte, dedicado à análise do SIES, finaliza a análise aqui iniciada.
O presente capítulo divide-se em duas partes, na ordem das atividades anunciadas.