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VOZES: UM TENSO DIÁLOGO

2 Algumas considerações

A análise das personagens femininas mostrou que há diferentes formas de conformação ou inconformação diante da realidade circundante. Maina Mendes, por exemplo, pode ser considerada um elemento destoante no meio em que vive, devido ao não cumprimento do papel social que lhe cabe na sociedade. A não-ocupação do lugar próprio revela-se, assim, como tática de resistência frente a uma ordem instituída, o que contribui para a construção de uma “identidade de resistência”, definida por Manuel Castells como aquela

criada por atores sociais que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de

resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos.57

Maina Mendes aceita a sua marginalidade, fazendo dela um espaço de diferenciação e de resistência. Assim, a subtração do direito à palavra é convertida em mudez voluntária, assim como é voluntária a sua exclusão do convívio social. Desse modo, Maina se nega a praticar o jogo das convenções – em que a mulher é necessária como presença figurativa, mas não atuante –, entrando em choque com as regras estabelecidas, segundo as quais à mulher não é permitido jogar, mas muito menos sair de campo.

Já o inconformismo de Hortelinda assume características diferentes. Ela também ocupa sua posição marginal como espaço de resistência, mas nesse caso não há omissão explícita quanto ao papel social: a cozinheira está na cozinha, no seu lugar. No entanto, é dali que ela dissemina o “seu grão”, através da senhora que “amanhou”, menos senhora que seguidora. É, assim, na relação com Maina Mendes que se dá o inusitado: a ligação que se verifica entre elas rompe com a norma vigente, não condizendo com o padrão de comportamento normalmente observado entre patrão–empregado.

O conformismo também se manifesta diferentemente na mãe de Maina Mendes e em Dália: enquanto a primeira se ocupa em manter a ordem familiar, perfeitamente ajustada ao seu papel, a serviçal se mostra insatisfeita com sua posição na escala social, almejando a ascensão; mas em nenhum momento há uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade. Dália não pretende mudar a ordem das coisas; deseja apenas ascender, pela mão de um homem que assim deseje, a uma posição mais confortável, ainda que igualmente marginal e secundária. Ambas se caracterizam, portanto, pela passividade, pela submissão. As próprias atividades com que se ocupam em momentos de distração (o bordado, o crochê) são marcadas pela quase inércia. Mesmo no caso de atividades de utilidade prática, como a organização da casa, essa se apóia na necessidade de deixar ou recolocar as coisas nos seus devidos lugares, limpas e certas (veja-se, a propósito, a descrição de Dália em serviço). Esse cuidado em pôr no lugar, em conter, se estende também aos cuidados com a aparência pessoal, o que pode ser verificado no asseio da mãe de Maina Mendes.

Os dois pares analisados representam, respectivamente, duas maneiras diferentes de se inconformar e conformar à realidade, cada uma das personagens podendo ser igualmente contraposta a outra. Observando Maina Mendes e a mãe, vemos que elas são essencialmente diferentes, assim como Hortelinda e Dália. Veja-se, por exemplo, o descompasso de Maina

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CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. vol. 2. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 24.

com relação às convenções: a personagem não demonstra vaidade, nem asseio, nem qualquer preocupação quanto à sua imagem pessoal. Esse despojamento voluntário de Maina Mendes marca sua recusa a esse papel ornamental imposto à mulher. Registre-se, porém, que, enquanto a atitude de Maina implica uma consciência crítica acerca de sua real condição, na mãe, “o pensamento ali não é” (p. 24), evidenciando que não há consciência acerca dos atos já involuntariamente praticados, de tão repetidos e solidificados na tradição. Em oposição à “mansidão” da mãe vemos a “ira” da filha. Também o ódio a Dália nutrido por Maina é significativo dessa ira contra a falta de consciência feminina diante de sua realidade social.

A cozinheira e a serviçal por sua vez, embora pertençam ambas a uma classe social e economicamente desfavorecida, diferem radicalmente quanto ao seu caráter. Contrariamente à terna e servil Hortelinda – a “serva ancestral” –, Dália é marcada pela cobiça e pela hipocrisia burguesa, pois é à “imagem e semelhança de seus patrões”. No que se refere à cobiça de Dália, o que à primeira vista poderia parecer um impulso da serviçal no sentido de uma mudança, revela-se, na verdade, como conformidade com o que é imposto às mulheres: a submissão e a passividade. Dália não é agente de seu destino, por isso espera que “a tornem” dona; a decisão é masculina, e à mulher cabe a atitude passiva da espera. Neste aspecto, Dália é tão “cordata” quanto a mãe de Maina Mendes, pois aspira não à independência e autonomia feminina, mas simplesmente à ascensão a esse “lugar medido” que cabe às mulheres.

Enquanto a mãe e a serviçal vinculam seus destinos à proteção masculina, Maina e Hortelinda renunciam a essa proteção em favor de sua autonomia. Contudo, para ser “sem dono”, é preciso renunciar a todas as convenções e talvez, como Maina Mendes, chegar à loucura, ao espaço em que impera uma outra ordem, que jamais obedece à ordem legítima. O silêncio de Maina é também uma outra ordem de discurso. Tanto a loucura como o silêncio não podem ser dominados ou manipulados, podendo, por isso mesmo, ser utilizados como táticas de resistência. “Tática” é definida, aqui, a partir de Michel de Certeau, como “a arte do fraco”, determinada pela “ausência de poder”. “A tática é o movimento dentro do campo de visão do inimigo [...] e no espaço por ele controlado”58. Segundo de Certeau, o indivíduo que se acha submetido a uma lei imposta pode subverter essa lei, tirando proveito dela, sem no entanto contrariá-la. Da mesma forma que há estilos ou maneiras de utilizar uma língua, por exemplo, há o que o autor chama “maneiras de fazer”.

Esses estilos de ação intervêm num campo que os regula num primeiro nível [...], mas introduzem aí uma maneira de tirar partido dele, que obedece a outras regras e

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constitui como que um segundo nível imbricado no primeiro [...]. Assimiláveis a modos de emprego, essas “maneiras de fazer” criam um jogo mediante a estratificação de funcionamentos diferentes e interferentes.59

Desse modo, usando o silêncio, Maina Mendes não contraria a norma imposta, mas a subverte: faz do silêncio imputado à mulher um uso que distorce a sua função própria, transformando-o em protesto sem palavras. É pelo silêncio que Maina se afirma. Diante de uma sociedade em que a mulher é figura ornamental e sem voz, Maina Mendes, obedecendo à norma até o extremismo da mudez, chama a atenção para a posição marginal e secundária da mulher dentro da estrutura social. Quando há conformidade com a norma, essa marginalidade geralmente passa despercebida, pois é escamoteada pelas estratégias do poder hegemônico. Ao contrário das táticas de resistência, as “estratégias”, segundo de Certeau, são

ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugar e visam dominá-los uns pelos outros.60

Ignorando os “lugares teóricos”, Maina Mendes instaura uma “antidisciplina”, utilizando-se de procedimentos sub-reptícios que acabam por minar as estratégias do poder. A figura de Maina representa, assim, mesmo permanecendo à margem, um espaço de resistência que sinaliza a necessidade de uma tomada de consciência crítica frente à realidade incontestável da exclusão da mulher.

A antidisciplina instaurada por Maina Mendes renderá frutos mais tarde, na figura de Matilde, que antes de si teve não só a avó, mas também a mãe. É importante assinalar a diferença do último par de personagens femininas – Cecily e Matilde – em relação aos demais. As duas, ao contrário do que ocorre com Maina e sua mãe, não se contrapõem uma à outra: não há hostilidade por parte da primeira, nem cerceamento por parte da segunda; ambas circulam nos mesmos espaços (a praia, a sala onde se contam histórias), acompanhadas por Maina, sem animosidade ou ruptura entre elas; ao invés de confrontação, há cumplicidade.

Contudo, observando os momentos em que as personagens interagem no romance, vemos que as filhas aparecem juntamente com as mães numa parte para na subseqüente aparecerem sozinhas: a mãe vai sendo assim suprimida, permanecendo somente o fruto que gerou. Porém com Maina Mendes (a única a gerar um filho varão), isso não acontece: é o filho que é suprimido, enquanto a mãe permanece (veja-se a propósito que, na última parte, a

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Idem, p. 92.

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única com apenas dois blocos e duas personagens – Maina e Matilde –, não há presença masculina.).

PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE

Maina Mãe Hortelinda Dália Maina Cecily Matilde Maina Matilde

Unindo as três personagens – Maina, Cecily e Matilde – podemos perceber uma linha de progressão que vai da ira contida sob um mutismo protestatório (Maina); passa pelo gozo inconseqüente da liberdade (Cecily); e chega na consciência crítica aberta e livremente expressa (Matilde). Nesse percurso, Cecily adquire importância não só pela atitude não- cerceadora em relação à filha, mas sobretudo pelo fato de representar o elemento externo, a alteridade que irá intervir na constituição híbrida de Matilde.

CAPÍTULO IV