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DO MONÓLOGO AO DIÁLOGO: UMA DIFÍCIL TRAVESSIA

1 Vozes masculinas: lei e contestação

1.6 Hermínio

Hermínio é o amigo íntimo de Fernando já morto – no nível diegético – quando este o refere em seu relato ao psicanalista. A caracterização de Hermínio, portanto, é feita do ponto de vista do amigo, que se ocupa longamente em descrevê-lo, salientando o modo como as coisas tomavam um aspecto fluido, escorregadio, à sua presença ou ao seu contato:

Pois em Hermínio a roupa escorria. [...] tudo o que lhe era aposto ganhava uma qualidade, uma textura como que fluida. E isso era ainda certo com a facilidade com que parecia flutuar por entre as coisas. [...] as coisas arredondavam-se, flectiam, perdiam inteireza. Ele dizia ‘vens?’ e não ir, não poder ir, tornava-se grotesco, a banalidade de matérias, e como era embaraçante, o interessamento duma classe, ruíam com o seu ‘o senhor acha?, a banalidade do meu quotidiano ensimesmado na escola, o tijolo do internato eram risíveis, frouxo tudo. (p. 127)

Hermínio aparecia aos olhos do amigo como sendo ele mesmo fluido e escorregadio, com o seu ondular de corpo constante, sua capacidade de contornar objetos (ou seria capacidade de contornar situações?). A rigidez de Fernando aparece desde já contraposta à frouxidão de Hermínio. Ao apontar tais aspectos, Fernando marca uma distinção entre o amigo e as demais pessoas, distinção essa acentuada pela reiteração do nome próprio, o que ressalta o valor distintivo de suas ações, as quais aparecem como próprias dele e não de outros, singularizando-o: “Hermínio vestia-se de azul”, “em Hermínio a roupa escorria”; “Hermínio saberia contorná-la”, “Hermínio saltitava” (p. 127). Essa singularização de Hermínio já aponta para o quadro de anomalia no qual Fernando irá situá-lo. Nesse sentido a personagem se aproxima de Maina Mendes e também de Cecilly, apresentando, do mesmo modo que essas, um caráter anômalo.

A imagem de Hermínio já doente faz lembrar também a de Maina anciã:

Havia uma enfermeira que ele ignorava até no momento de lhe abrir a boca aos medicamentos.

[...] ele sentava-se na varanda, aureolado da verga marfim do espaldar da cadeira que rangia. Tinha enrouquecido muito, [...]. Mais que nunca [...] ele parecia um caule, um acidente histérico e final [...]. (p. 159)

A mesma postura de Maina é retomada: o descaso com a enfermeira, o sentar-se na cadeira de balanço. A alusão à rouquidão e à histeria também remetem a Maina Mendes – a menina de voz rouca e, segundo os médicos, histérica. Ao fim da narração de Fernando, essa sua percepção se altera, e Hermínio, tal como Maina, revela-se portador de um saber a que as pessoas comuns não têm acesso, algumas de suas falas assumindo mesmo um caráter profético.

São de Hermínio algumas reflexões instigantes sobre questões sociais e políticas, como o nazismo: “Louco, o pequeno Adolf? Crês que a loucura ou a doença ou o crime são alguma vez coisa de um homem só?” (p. 159); o caráter humano: “Somos criaturas de desejo, não de necessidade” (p. 159); o futuro da humanidade: “l’avenir de l’homme c’est la femme” (p. 189), frase dita por Maina e que Fernando atribui a Hermínio.

De modo geral, entre os homens do romance, Hermínio se apresenta como o mais próximo das mulheres de caráter transgressivo, manifestando não apenas afinidades comportamentais e afetivas, mas sobretudo uma compreensão acerca da psicologia feminina não observada nas demais figuras masculinas. Por essa razão, Fernando o alinha com Maina e Cecily, considerando as três figuras igualmente enigmáticas.

2 Algumas considerações

Diferentemente do que ocorre entre as figuras femininas, as personagens masculinas representantes de concepções assimiladas a uma visão oficial, conservadora, patriarcal, ou lógico-científica (o médico, Álvaro e Henrique) não encontram em nenhuma outra figura masculina uma decidida contraposição. O que se verifica é uma reflexão sobre essas concepções (Ruy, Fernando e Hermínio), com uma gradativa aproximação à postura assumida por aquele grupo feminino desviante da ordem vigente. Assim, com Ruy Pacheco, temos primeiro o espanto diante do absurdo, o que, se ainda não é consciência crítica, é já uma inquietação frente à realidade. Em seguida, vemos um sujeito reflexivo, mas cindido – Fernando, que interioriza o conflito entre duas ordens opostas, a do pai e a da mãe, embora não consiga superar a primeira, nem se inserir na segunda. E finalmente a figura masculina

mais desviante, Hermínio, que é quase um teórico social e que apresenta afinidades tanto com Maina quanto com Cecily, e por extensão também com Matilde.

Se atentarmos nas relações homem–mulher, veremos que ocorre um movimento de gradual aproximação, com uma crescente interação entre os dois lados. Nessa interação observa-se a insurgência do feminino como elemento preponderante, enquanto que o masculino pouco a pouco vai perdendo espaço. Se observarmos a atuação das personagens masculinas no romance, veremos que as quatro primeiras – o médico63, Álvaro Mendes, Ruy Pacheco e Henrique – aparecem ativamente somente na primeira parte; Fernando aparece na segunda, Henrique e Hermínio atuam somente no nível metadiegético; e na última parte, nenhum deles aparece. Percebemos, assim que o romance vai gradativamente se esvaziando da presença masculina, cujo discurso vai declinando do relatado ao narrativizado, até o afastamento total.

PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE Médico Álvaro Ruy Henrique Fernando [Henrique] [Hermínio] -

Quanto ao posicionamento dos homens com relação ao centro ou à margem do sistema, verifica-se também um comportamento diferente do das mulheres. Se considerarmos dois espaços, a saber: a) o centro, espaço próprio daqueles que compartilham de uma visão oficial (falologocêntrica), e b) a margem, espaço próprio daqueles que contestam essa visão e que não são aceitos pelos primeiros, observaremos que todas as figuras masculinas ocupam o primeiro espaço, mesmo quando contestam a ordem vigente. O quadro a seguir, onde (+) indica conformidade com a ordem oficial, (-) indica contestação e (+-) indica ao mesmo tempo conformidade e contestação, mostra que, independentemente da postura adotada, nenhum homem é relegado à marginalidade. O mesmo não ocorre com as mulheres, cuja posição marginal ou central depende da aceitação de suas posturas por parte dos homens. Isso fica evidente se considerarmos a relação destes com as mulheres designadas pelo sinal (-).

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A figura do médico que aparece na segunda parte não corresponde ao mesmo ator, e nem tem uma participação ativa como na primeira, mas é referida apenas, ou se apresenta de forma implícita, no caso do psicanalista.

centralidade marginalidade pólo masculino pólo feminino pólo masculino pólo feminino

Parte 1 Álvaro Mendes (+) Médico (+) Ruy Pacheco (+-) Henrique (+) Mãe (+) Dália (+) Maina Mendes (-) Hortelinda (-) Parte 2 Fernando (+-) Médico (+) Hermínio (-) Maina Mendes (-) Cecily (-) Parte 3 Matilde (-)

O comportamento de Maina Mendes, por exemplo, é considerado anormal pelos médicos e também por Henrique. A atitude rebelde é assim neutralizada pelo estigma da loucura, como uma forma de dizer que as transgressões da ordem não podem ser aceitas dentro do sistema vigente. Relegar ao espaço da loucura é uma forma de marginalização e, mais do que isso, de silenciamento, uma vez que as palavras do louco não são consideradas num mundo onde impera o pensamento lógico.

Os hábitos de Hortelinda, dada a influência que têm sobre Maina Mendes, são vistos como fatores de corrupção das “boas maneiras” burguesas, e a negatividade que a personagem assume em vista disso, patente no discurso de Henrique, faz dela um elemento danoso à sociedade. O “dono” do lugar que ela, por assim dizer, invade e “infesta” arroga-se o direito de impugná-la e impeli-la à marginalidade.

Cecily, por sua vez, ainda que não tenha encontrado franca oposição às suas atitudes, é vista pelo marido como uma mulher inconseqüente, desviada do padrão de esposa esperado (exigido?) pela sociedade, que, se não a marginaliza completamente, a vê com condescendência cedida por consideração ao marido.

Em todos os casos, é a aceitação dos homens (representativos também do senso comum) o que determina o lugar das mulheres e a consideração que elas merecem ou não. A loucura, a má influência, a inconseqüência são fatores de marginalização quando vistos sob uma ótica falologocêntrica. Porém, esses mesmos fatores podem revestir-se de um outro valor. O louco, em certos contextos, pode aparecer imbuído de um poder visionário ou simplesmente de uma capacidade de enxergar além do real sensível. Nesse sentido, o louco (ou anômalo) pode ser visto como um ser dotado de uma sabedoria superior ou como aquele que está muito à frente do seu tempo e por isso não pode ser compreendido nem aceito. Esta concepção pode ser percebida na visão de Hermínio (e também na de Cecily) sobre Maina Mendes. Também Fernando Mendes, à medida que vai desenvolvendo sua reflexão sobre o passado, passa a considerar de modo diferente a loucura da mãe, a anomalia do amigo e mesmo a inconseqüência da esposa, a ponto de contestar a visão científica sobre a alienação.

No momento em que a contestação começa a partir de figuras masculinas, ela passa a ser aceita também nas femininas. Matilde, apesar de sua postura contestatória, é uma figura “avassaladoramente amável” (p. 220) para o pai, que não a relega à margem, mas é sim “destronado” pela filha. Para Fernando, Matilde revela-se o seu sentido, aquilo que o “prossegue”. Desse modo, o que segundo uma visão conservadora deve ser rechaçado e reputado como desvio da norma, vileza, ou loucura, quando observado sob uma ótica que aceita o diferente ou mesmo o marginal, pode mesmo ser tomado como parâmetro possível de ser seguido. Assim, o elemento transgressor da ordem pode ser visto como uma possibilidade (e mesmo uma necessidade) de se apreender a realidade de diferentes maneiras, abrindo espaço para outras perspectivas.

CAPÍTULO V