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Algumas generalizações imperfeitas

4. O RITMO DA BATUCADA

4.1 TEORIA E BATERIA NO RITMO

4.1.3 Algumas generalizações imperfeitas

Nossa análise da rítmica do samba mostra que se trata de um gênero musical caracterizado pela contrametricidade e pela imparidade rítmica. Esta contrametricidade se manifesta, de forma relativamente constante, nos três níveis de atividade rítmica propostos.

Como tal efeito opera na percepção do ouvinte? A estrutura de regras de preferência (preference rules) métricas de Lerdahl & Jackendoff é importante para qualificar a questão. Pois, para que se perceba um elemento rítmico contrariando uma lógica métrica subjacente, é necessário haver algum outro elemento para estabelecer esta métrica. A contrametricidade não pode existir em estado “puro”. Se escutamos, sem nenhuma outra referência, prévia ou simultânea, uma sequência de articulações rítmicas equidistantes, a interpretação preferida será a de perceber esta sequência como estabelecedora e coincidente com uma estrutura métrica, e não como contraposta a uma métrica inexistente. Dito de outro modo, a tendência – para ficarmos na definição de Sandroni de 1ª e 3ª versus 2ª e 4ª semicolcheias – a ouvirmos

   

é maior do que a de ouvirmos

       

. Lerdahl e Jackendoff (1996, p. 76) chamam a atenção para esse princípio em sua regra de preferência

métrica 3. Para que a segunda interpretação seja favorecida, é necessário que algum outro elemento estabeleça com clareza uma métrica que conflite com a sequência.

Se nos ativermos somente à proposição dos autores em relação a essa regra de preferência e outras semelhantes (que – como no caso de Sandroni – propõem a acentuação e – diferentemente deste – a duração dos eventos sonoros como capazes de estabelecer uma estrutura métrica), o resultado final é que a contrametricidade nunca poderá ser superior à cometricidade. Caso esse fosse o caso, permaneceria o mistério sobre como tal preferência no estilo poderia construir-se. Entendemos que a resposta a esse ponto passa por duas questões.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar a importância de um conhecimento prévio do estilo para o estabelecimento eficiente de uma estrutura métrica, mesmo com poucos elementos perceptíveis auditivamente. Realçamos esta questão na medida em que entendemos que isto significa dar um peso maior a fatores culturais operando na percepção mesmo em níveis relativamente “baixos”.

Assim, quando um ouvinte entra em contato pela primeira vez com um estilo musical no qual coexistem informações contraditórias sobre o metro, o mesmo pode, ao invés de perceber o resultado como síncope, ficar, na linguagem popular, “sem chão”, incapaz de estabelecer onde está o metro ou qual o metro “certo”. Trazemos como um exemplo para ilustrar tal afirmação o caso de um gênero musical no qual tal sensação talvez já tenha ocorrido a nossos leitores – e que ocorreu ao autor: o do maracatu de baque virado. Nele, a obstinada ênfase das alfaias na segunda semicolcheia – na repetição de padrões como por exemplo

 . . .

– pode fazer com que se ouça esse ponto como constituindo o tactus, tendo como resultado um conflito entre as informações rítmicas oriundas de outras fontes do conjunto. Nesses casos, é necessário um aprendizado para que se processe o imput rítmico corretamente.29

Em que pese a existência de certa quantidade desse primeiro aspecto no caso do samba – qual seja, a necessidade de recorrer ao contexto cultural para decodificar corretamente as informações métricas que chegam ao ouvinte –, acreditamos que o samba resolve a questão de

29 É certo que Lerdahl & Jackendoff levam o aspecto do aprendizado em conta, e o resolvem na figura genérica

do “ouvinte experiente”, isto é, treinado no idioma musical ocidental. Entretanto, acreditamos ser importante dar-se maior ênfase ao aspecto cultural, já que este ponto parece, aos autores, estar mais relacionado com o aprendizado de noções harmônicas (cadências, tensão e relaxamento) do que propriamente métricas. Nestas últimas, os autores tendem mais à universalidade, por exemplo, ao apontar a coincidência entre elementos utilizados na percepção métrica e na distinção entre sílabas fortes e fracas nas diferentes línguas (Lerdahl & Jackendoff, 1996, p. 85).

conseguir sustentar uma estrutura mais contramétrica que cométrica sobretudo a partir de um segundo ponto relevante: o que se percebe na relação entre os diferentes níveis rítmicos é que, em cada um deles, é estabelecido um padrão por si só contramétrico, mas que representa batidas fortes no nível imediatamente inferior. Batidas fortes que serão contrariadas pela atividade rítmica existente naquele nível, mas que são capazes de fornecer a sequência de batidas fortes do nível imediatamente inferior a este, que por sua vez serão também contrariadas. Deste modo, cada nível rítmico seria idealmente representado não por todas as batidas que o compõem, mas apenas pelas batidas pares. Dito de outro modo, as articulações no samba tenderiam a preferir, em cada nível rítmico, assumir as posições relacionadas ao o nível rítmico imediatamente superior, porém deslocado em relação a si mesmo.

Assim, o que teríamos no caso do samba, não seria a estrutura esperada da figura 21:

Figura 21 – Níveis métricos segundo Lerdahl & Jackendoff (1996)

Ao contrário, o que vemos é o efeito do deslocamento generalizado, no qual cada nível rítmico é realizado sobretudo de maneira contramétrica, ao mesmo tempo em que deita as fundações do nível inferior, que também se realizará de maneira preferencialmente contramétrica:

Tal efeito nos dá como resultado o que vemos na figura abaixo, equivalente à anterior, porém mostrando somente os pontos de chegada dos deslocamentos operados:

Figura 23 – Deslocamento de níveis métricos (resultado final)

Retomemos momentaneamente as ideias de Jones de que a rítmica europeia é divisiva, e que a africana é aditiva (noções, como vimos, bastante problemáticas). Numa mesma linha de raciocínio, poderíamos propor a partir da figura 23 acima, que o samba opera – ao menos no nível do acompanhamento percussivo – numa lógica distinta de ambas, uma lógica anti- divisiva (já que as batidas acentuadas de um determinado nível não estão representadas no nível imediatamente inferior).

Evidentemente, tal afirmação apresenta uma série de problemas, e se a expomos aqui, é modestamente com o intuito de propormos um exercício de reflexão sobre o tema. O primeiro problema está relacionado às próprias noções de Jones, a que já aludimos anteriormente. A existência de uma suposta rítmica aditiva entra em contradição com a existência de diferentes níveis de atividade rítmica, ideia que, acreditamos, está suficientemente embasada.

Outro ponto que limita a afirmação que fizemos acima é a diferença entre a estrutura métrica subjacente e os pontos onde ocorrem as articulações rítmicas. De fato, a figura 21 diz respeito a essa primeira instância, e a figura 23 à segunda. Se usamos, propositalmente, os mesmos símbolos para ambas é com o intuito de mostrar de forma visualmente mais clara o fato de as articulações da figura 23 de um nível estarem ausentes dos níveis inferiores, ao contrário do que ocorre na figura 21, além da possibilidade de usar a figura 22 como operadora de uma transformação entre ambas. Finalmente, é preciso também apontar o fato de que estamos tratando de um (suposto) caso ideal. Como vimos, a realização do mesmo nos exemplos analisados é bastante imperfeita.

Voltando, assim, à realização da estrutura acima proposta na bateria, percebe-se que a virada do samba de batucada para o samba de prato, que acarreta o domínio quase completo

do uso do bumbo “a dois”, menos contramétrico, foi acompanhada de uma maior sistematização do uso dos pratos de choque, mais contramétricos.

Em relação a esse ponto, cabe destacar que a distinção mais característica entre os dois estilos de samba diz respeito à execução das mãos: a realização da condução com uma mão ou com ambas as mãos, a diferença de timbre entre caixa e prato. Entretanto, podemos afirmar que, grosso modo, no que se refere à execução dos membros superiores, tanto o samba de batucada quanto o samba de prato compartilham de um mesmo repertório rítmico. Desta forma, a mudança rítmica mais profunda ocorre nos pés, e em níveis distintos do da semicolcheia.

Duas linhas de raciocínio poderiam ajudar a lançar luz sobre o fenômeno. A primeira, de caráter estrutural, está relacionada à manutenção no gênero de um certo grau de contrametricidade, perdido no bumbo mas compensado nos pratos de choque. Este tipo de argumentação segue na seara da grande lista de musicólogos que caracterizam o samba, e a música brasileira de maneira geral, através da síncopa. Entretanto, uma diferença importante está no fato de que a noção de síncopa, embora algo vaga a esse respeito, está relacionada principalmente ao que ora caracterizamos como nível das semicolcheias. A este respeito, um exemplo que aponta nessa direção é o de Menezes (2012) que, ao realizar um estudo sobre a interpretação sambística de João Gilberto, denomina os deslocamentos de mais de uma semicolcheia realizados pelo intérprete de “síncopa da síncopa”.

Outra explicação poderia estar numa maior aproximação do samba de prato – e da Bossa Nova como um todo – com o jazz norte-americano. Em relação a este ponto, a própria condução no prato é um fator de convergência. Cabe notar uma importante diferença entre o

jazz e o samba: o primeiro é usualmente grafado como quaternário, e os pratos de choque

localizam-se nos tempos dois e quatro. Desta maneira, por um lado, mantemos a questão da contrametricidade; por outro lado, num primeiro momento, os pratos de choque parecem estar localizados em níveis distintos: o das colcheias no samba, o das semínimas no jazz.

Figura 24 – Padrão rítmico do prato de condução e pratos de choque no jazz30

Essa diferença, entretanto, pode ser diminuída ao notarmos que o ritmo do jazz é grafado em colcheias e não em semicolcheias como no caso do samba. Assim, o uso no jazz dos pratos de choque ocorre um nível acima da menor unidade, análogo às metades do tempo no samba.

Num primeiro momento, podemos perceber ambas as linhas esboçadas acima como mutuamente incompatíveis. Isto porque a primeira fala da manutenção de uma característica do samba, enquanto a segunda refere-se à entrada de um elemento estrangeiro. Entretanto, é preciso lembrar que o uso dos pratos de choque nas metades do tempo é corriqueiro nos arranjos de banda de músicas brasileiras aparentadas ao samba – particularmente polca, choro e maxixe. Desta forma, nesse caso, a influência de fora não traria um elemento estranho, ao contrário: a mesma é filtrada de elementos a princípio mais afastados do samba – por exemplo, a interpretação com swing tercinado –, mantendo aqueles que entram em ressonância com as características do estilo – no caso, o uso contramétrico dos pratos de choque.