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O ritmo da palavra e o ritmo do samba

5. VOZ, PALAVRA E O SAMBA DE PERRONE

5.2 SAMBA E ONOMATOPEIA

5.2.3 O ritmo da palavra e o ritmo do samba

A rápida análise que efetuamos acima nos mostra que os termos onomatopaicos são utilizados de forma ritmicamente consistente nas composições, o que evidentemente não exclui usos criativos que extrapolam a rítmica básica das figuras 68 e 71. Mais do que isso,

percebemos que é graças a essa consistência das categorias utilizadas que se torna possível, por exemplo, o tipo de permutação que encontramos no “Samba do Ziriguidum”. Nossa conclusão é a de que, mesmo quando alçados ao status de palavra, teleco-teco e ziriguidum mantêm muito de suas origens percussivas. Este fato nos leva a pensar que, se tais palavras adquirem significados profundamente associados ao samba, os ritmos que trazem consigo são também significativos deste gênero musical.

Desta maneira, um forte indício dessa significação rítmica está no fato de as duas palavras estarem relacionadas a ritmos muito semelhantes:

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no caso de teleco-teco,44 e

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no caso de ziriguidum. Se invocarmos a regra de contagem de sílabas poéticas que exclui tudo o que vem depois da última sílaba tônica – e que o faz por razões rítmicas –, o ritmo de ambas fica idêntico:

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. Isso nos faz pensar que o segmento [a] que encontramos na figura 77 acima, representando “teleco-teco” apresenta parentesco com [z], que vem aparecendo em nosso material de análise desde a seção 4.2.2. A diferença que persiste é a de que o teleco-teco diz respeito a um ciclo de oito semicolcheias, e o ziriguidum, a um ciclo de quatro semicolcheias.45

A coincidência de ritmos mesmo em se tratando de onomatopeias originadas em diferentes funções do acompanhamento percussivo (marcação, condução, fraseado) nos leva a propor que este ritmo tem um papel importante na percepção do acompanhamento musical do samba. Entendemos que existe uma tendência a perceber os agrupamentos rítmicos neste caso não como nosso sistema notacional visualmente propõe (figura 79A), mas de forma anacrústica (figura 79B):

Figura 79 – Agrupamento de valores rítmicos no samba

44 Não podemos também deixar de chamar a atenção para o fato de que, no teleco-teco, o hífen da palavra

encontra-se em posição homóloga à barra de compasso, quando transcrevemos seu ritmo característico.

45 Em que pese a diferença de acentuação da marcação nos tempos um e dois, ainda assim é possível mimetizar o

ritmo do samba apenas com a repetição contínua da onomatopeia ziriguidum. Ressaltamos que este procedimento foi o utilizado por Plínio Araújo em suas entrevistas, embora com a diferença de utilizar uma onomatopeia que não possui o status de palavra como é o caso de ziriguidum.

Essa rítmica essencialmente anacrústica, que mantém essa estrutura mesmo no encadeamento contínuo do ostinato, faz com que as notas não acentuadas apontem sempre para a marcação seguinte. Este é, entendemos, um dos fatores que contribuem para gerar uma característica do samba fácil de perceber, porém de difícil descrição: a sensação dinâmica, de movimento, que aproxima os movimentos da música e do corpo. Talvez por isso Vinicius de Moraes tenha visto o andar de sua personagem como pleno de teleco-teco.

6. CONCLUSÃO

No decorrer deste estudo, buscamos apreender nosso objeto a partir de uma série de perspectivas. Por ser um ponto de cruzamento entre diferentes práticas musicais (bateria, percussão popular, percussão erudita), e atuar em um dos postos de maior consagração da sua época – a Rádio Nacional –, Luciano Perrone torna-se um ponto focal a partir do qual é possível compreender características mais gerais do samba como um todo e de sua história no Brasil.

Como vimos, sua carreira é longa e bastante exitosa, e apresenta certo aspecto oficial, na forma de proximidade com importantes instituições, entre as quais a supracitada emissora de rádio. Destacamos desta forma sua função como mediador, que aparece no processo de consolidação de uma rítmica comum no samba, sobretudo no episódio das gravações de “Ritmo de Samba na Cidade” e “Aquarela do Brasil”. Este ponto é importante, e aqui nos aproximamos das proposições de Antoine Hennion (2003), para quem a música é, em última instância, um objeto fundado em comum acordo por seus praticantes. Apesar disso, não podemos abrir mão do conflito nesse processo de fundação e significação. Como afirmou-se anteriormente, o estabelecimento dessa rítmica comum – num primeiro momento restrita a cantores e percussionistas, músicos vistos como “mais intuitivos” e menos dependentes da partitura – é um processo complexo.

Ao mesmo tempo – numa espécie de “mistério do samba” invertido – sua maneira de executar o instrumento deixa de ser a mais usual desde a década de 1960, havendo uma importante descontinuidade na execução do samba na bateria representada pelo surgimento da Bossa Nova e do samba de prato. Buscamos melhor compreender esse importante ponto de virada a partir da análise de premissas estéticas da Bossa Nova, e de como a mesma realiza uma reconfiguração no campo musical brasileiro.

Inaugurando uma nova leitura da noção de modernidade em música, a Bossa Nova opera uma polarização entre o tradicional e o moderno na qual o estilo do samba batucado ocupa uma posição intermediária entre a tradição (representada pelo samba “de raiz”) e a modernidade (representada pela Bossa Nova e o samba de prato). Movimentos musicais posteriores, como o Tropicalismo e a aproximação deste com a vanguarda artística, aprofundam essa nova configuração. Esta mudança importante em relação à concepção de

modernidade e nacionalismo musical anteriores ao movimento cria uma dificuldade para o estilo de Perrone encaixar-se na nova configuração, o que acreditamos ser a explicação de seu “mistério” pessoal. Ao mesmo tempo, o próprio músico mantém-se alinhado ao estilo que o consagrou, rejeitando o samba de prato associado à Bossa Nova. Isto pode ser comprovado pela ausência de qualquer referência a este último nos dois “Batucada Fantástica”. Tal conclusão é ainda mais aguda se pensarmos que “Batucada Fantástica vol. 3” é lançado quatorze anos após aquela que é considerada o marco inicial da Bossa Nova – a gravação de “Chega de Saudade” de 1958.

A seguir, do ponto de vista rítmico, construiu-se um referencial fundado originalmente no estudo de práticas musicais distintas entre si e do próprio samba, com o intuito de realizar uma análise do gênero complementar mais aprofundada. Ao mesmo tempo, a construção deste referencial objetiva refinar categorias teóricas que têm se tornado comuns no estudo do samba – os conceitos de cometricidade e contrametricidade – e que nem sempre são utilizadas de modo apurado.

Isto foi feito, sobretudo, a partir da incorporação de proposições ligadas ao estudo de aspectos rítmicos da música tonal de concerto. Tal contribuição se coloca principalmente na forma de uma multiplicidade de níveis rítmicos, permitindo uma construção analítica que opera em diferentes planos. Buscamos levar em conta a distância entre as práticas musicais que nos fornecem modelos analíticos – música de concerto, música subsaariana – em relação ao samba. Por outro lado, não podemos deixar de constatar a coincidência entre estas e as matrizes musicais tradicionalmente associadas ao gênero afro-brasileiro. Outro ponto que destacamos em nossa interpretação é o fato de que a necessidade de chaves culturais para decodificar e atribuir uma estrutura ao sinal sonoro captado pela audição deve receber maior peso no que concerne às teorias do ritmo.

A partir desse referencial, analisamos a performance do samba na bateria por Luciano Perrone e por outros instrumentistas, e o que se constata é uma tendência geral à contrametricidade nos diversos níveis rítmicos. Essa característica, entretanto, opera de maneira bastante abstrata e distinta entre diferentes estilos. Assim, no samba de batucada – particularmente nas execuções de Luciano Perrone – temos uma tendência maior à contrametricidade no nível da semínima. Já no caso do samba de prato, o bumbo a dois atenua essa tendência; por outro lado, os pratos de choque trazem maior contrametricidade ao nível da colcheia.

A análise do solo de bateria “Polca – Samba – Choro” nos fornece importantes elementos para a compreensão de seu estilo no universo do samba batucado. Por se tratar de um solo, o executante possui maior liberdade do que numa situação de acompanhamento. Ainda assim, a peça se apoia nos padrões dos gêneros presentes em seu título. Esse equilíbrio desempenha importante papel na condução da análise. Desta maneira, percebe-se que Perrone, evitando ao máximo sair da rítmica característica de polca, samba e choro, cria ainda assim um contraste entre elementos estáveis – baseados em padrões de acompanhamento – e instáveis – baseados em fraseado mais livre. Esse contraste gera uma alternância entre tensão e relaxamento que, pensamos, opera de forma próxima à noção harmônica de cadência. Outro fator que faz com que identifiquemos um esforço do executante em não afastar-se em demasia da noção de acompanhamento é a grande regularidade da peça. À exceção de sua introdução, na qual processos de extensão engendram uma irregularidade, a peça adere de forma bastante persistente a uma quadratura regular, com ciclos de dois e quatro compassos mantidos mesmo quando Perrone executa adiantamentos, extensões ou curtas seções de cross-rhythm.

Identificamos também grande riqueza motívica na peça, na qual Luciano Perrone se vale, entre outros, de fragmentos relacionados ao paradigma do Estácio [e], tresillos deslocados [t’], elementos oriundos da polca [p1], [p1’], derivações que acreditamos estarem relacionadas ao maxixe [m’], além de figuras representadas pelas onomatopeias teleco-teco [tlc] e ziriguidum [z].

Estes últimos elementos terão importância para confirmar a centralidade da onomatopeia na concepção sambística de Luciano Perrone – fato apontado em nossa análise de seu solo de bateria e, de forma independente, por fontes no campo. Além disso, temos o caso excepcional do “Samba Vocalizado”, no qual a onomatopeia é o principal agente estruturante da peça. A partir da constatação dessa centralidade, buscamos comparar o uso de recursos semelhantes ao do “Samba Vocalizado” em gravações de samba e em outras práticas musicais, tanto de caráter artístico quanto didático. A utilização deste procedimento por compositores de samba de diferentes estilos e trajetórias nos permite tecer algumas conclusões com validade para além de nossa amostragem, em busca de elementos característicos do gênero. A própria atuação de Perrone é elucidativa neste sentido, na medida em que pudermos compreendê-la sob o prisma de um processo de transcrição da rítmica do estilo para a bateria e a voz.

Desta maneira, o compartilhamento de uma mesma rítmica entre voz e percussão permitiu que analisássemos o uso dos termos teleco-teco e ziriguidum, que aparecem de

forma consistente quando são utilizados por diferentes compositores. Partindo desta investigação, constatou-se a manutenção de fraseados ligados ao paradigma rítmico do tresillo em sambas relacionados ao paradigma do Estácio. Dito de outra forma, este último não opera uma substituição dos elementos rítmicos anteriores, mas se sobrepõe a eles. Este dado deve ser realçado, na medida em que a popularização da terminologia de Carlos Sandroni no estudo do samba faz com que caracterizações do estilo sem o necessário apuro técnico ignorem essa importante mudança, a de uma atenuação da oposição entre os dois paradigmas rítmicos.

O presente trabalho de pesquisa está longe de esgotar o assunto. Portanto, apontamos aqui para duas lacunas que podem ser preenchidas por estudos futuros. A primeira delas é a necessidade de estudos que aprofundem o conhecimento acerca de outros bateristas ativos entre os anos 1920-1960. Harry Kosarin, Valfrido Silva, Sut, Sutinho, J. Tomás, Plínio Araújo, Paulinho Magalhães, Futrica, Jadir de Castro. Os nomes são muitos e o conhecimento sistematizado, pouco. Acreditamos que esse instrumento – símbolo do jazz e da modernidade na primeira metade do século passado, locus da transposição da batucada do samba – e seus executantes possuem um papel na formação de nossa música popular que ainda precisa ser aprofundado.

Avançando mais no tempo, outro objeto importante a se estudar é o conjunto de álbuns de batucada lançados a partir de meados da década de 1960, na esteira do “Batucada Fantástica” de Luciano Perrone. Trata-se, acreditamos, de material bastante rico, tanto do ponto de vista rítmico quanto social. Como eram produzidos os discos? Quais os seus expoentes, e quais as relações entre eles? A quem se destinavam? Como relacionar o interesse pela batucada com o contexto social e musical de então, de uma maneira mais ampla? Com o contexto das modificações no carnaval carioca? Seria este espaço um “refúgio” da batucada após as mudanças no campo musical operadas pela Bossa Nova? São questões que aguardam investigações futuras.

Celebrado simultaneamente sob os signos da tradição e da inovação, Luciano Perrone é um elemento chave para a compreensão da consolidação do samba no Brasil durante o século passado. Por um lado, algumas características das suas performances são hoje vistas como não usuais – pensemos no caso único do “Samba Vocalizado” –; por outro lado, sua atuação é parte de um processo do qual nosso próprio ouvir é produto (Bourdieu, 2003). Algo deste borramento de sua trajetória ecoa em sua obra, na qual voz, instrumentos, polca, samba, choro, batucada, todos possuem fronteiras pouco nítidas, passando-se de um ao outro quase que imperceptivelmente. Ao mesmo tempo, sua trajetória demonstra grande persistência em

suas escolhas estéticas. Ao completar 92 anos, ainda usava peles de couro nos tambores: “Só tenho nylon na caixa. O som é melhor.”