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Algumas notas sobre Cecília Meireles e a Literatura Infantil

4. PREFERÊNCIAS E DESEJOS DE LEITURA DE CRIANÇAS E JOVENS NOS

4.5. Algumas notas sobre Cecília Meireles e a Literatura Infantil

Nas duas partes que reúnem as 12 respostas contidas no Relatório do Inquérito “Leituras Infantis”, podemos pensar em duas idéias principais: as leituras mencionadas pelas crianças e jovens entrevistados, lidas ou lembradas e as preferências e desamor em relação às obras, autores e gêneros que lhes eram oferecidos e aqueles que desejavam ler.

No mesmo período em que Cecília Meireles aplica e lê os questionários do Inquérito, início da década de 30, várias crônicas suas são publicadas denunciando a má qualidade daquilo que era oferecido para as crianças lerem.

67 Quadro referente à pergunta 3: “Pode dizer o nome de alguns?”

LIVROS Mas. % Mos. % Total %

Fantasia 82,3 53,08 72,7 Escolares 69,01 71,5 69,8 Literatura 30,1 7,9 22,8

68 Quadro referente à pergunta 4: “De que livro gostou mais? Por quê?”

LIVROS Mas. % Mos. % Total %

Escolares 26,3 30,3 27,7 Fantasia 8,7 5,2 7,6 Literatura 4,1 3,08 3,8

Como o Relatório aponta a expressão delineada nas ocorrências com maior evidência para uma literatura legitimada, tradicional, para a leitura que instrui e que diverte, temos a impressão de que é este mercado editorial que forma esses gostos e preferências desses alunos.

De que literatura de má qualidade estaria, então, Cecília Meireles falando em suas crônicas no mesmo período: Seria aquela produção “escondida” nas respostas lidas por ela, de incidência menor que dez?

Quando Cecília Meireles, em suas crônicas, critica a literatura infantil marcada pelo tom patriótico e moral, estaria ela se referindo aos gostos e preferências citados pelas crianças e jovens do Inquérito? A crônica “Educação Moral e Cívica” traz o posicionamento marcado da pesquisadora sobre uma literatura que “incrustou-se na alma dos professores”, mas que deve ser extinta, conforme colocado nos seguintes fragmentos:

Estas considerações provêm da leitura de um livrinho destinado às crianças. De um livrinho que se propõe orientá-las justamente em assuntos de moral e de civismo, desejando, assim, influir na parte mais delicada da formação de uma personalidade: a sua parte espiritual

Mais uma vez sentimos necessidade de repetir aqui o que já temos dito e repetido sobre literatura infantil. Porque é preciso que fique, afinal, na convicção de todos a compreensão da responsabilidade de escrever para a infância, e em todos se estabeleça essa verdade mundial de que não há coisa mas difícil, mais delicada, mais grave, mais sutil.

(...)

Reflitamos agora: os assuntos de moral e civismo serão, realmente, para a criança livre de influências deformadoras, a criança que aparece à tona da vida perfeitamente isenta de atuações propositais, - tema de interesse, de satisfação, de beleza?

Incrustou-se na alma dos professores – talvez através da retórica que quanto mais patriótica se chama, na verdade, menos o é, - que as coisas mais importantes para uma criatura são: “amar a pátria”, “respeitar seu sacrossanto pavilhão”, “cultuar os heróis que morreram lutando, ou que mataram muitos inimigos”, e “inflamar o fervor dos homens de amanhã para serem dignos servidores da pátria, nas fileiras militares...

Tudo isso é da velha pedagogia. Da pedagogia que não conhecia a criança. Que se exercia como uma prepotência a mais, neste mundo fecundo em prepotências. (...)

Que dizer, agora, dos temas de moral acondicionados em livros segundo o critério sectarista dos autores? Servirão, talvez, para escolas também sectaristas, isto é, aquelas que, escapando a todos os conhecimentos modernos da pedagogia e da psicologia, ainda estão torturando a alma indefesa das crianças – e, às vezes, também o corpo – dentro de princípios ainda quase medievais...

E como há uma reforma, tudo tem de estar a seu serviço. Desde os que a fizeram, até os que escrevem livros para crianças... Pobres das crianças, se não for assim...” (Educação Moral e Cívica – 14 de setembro de 1930)

São ideias que, segundo Soares (2002), Cecília Meireles comungava com a corrente da Escola Nova, propondo uma imagem de criança mais autônoma, criativa e ativa. Diferentemente dos meios católicos, que viam a criança como ingênua e enfatizavam a necessidade de guiá-la numa base moral religiosa e com a autoridade do educador, Meireles acreditava que

na infância repousavam “mistérios que, com a maturidade, acabavam por se perder. Nessa perspectiva, em lugar da austeridade, cabia ao escritor e ao educador enriquecer com delicadeza e fantasia as experiências a que as crianças se predispunham, atentos mais às possibilidades da própria infância do que as exigências da vida adulta futura. (SOARES, 2002, p. 123)

Em várias crônicas, Cecília Meireles chama a atenção para a tarefa do escritor voltado ao público infantil: escrever com poesia. Para ela era preciso um olhar atento para o que se oferecia à infância. A crônica “Livros para crianças [II]”, de 4 de novembro de 1931, por exemplo, traz um trecho do que a poeta não acredita ser adequado, mostrando um trecho de um livro que representa aquilo que considera ruim, contudo não cita o autor ou o título da obra:

Uma criança de 11 anos retirou da biblioteca escolar um livro para ler em casa. Nesse livro encontram-se os seguintes trechos, que transcrevo contrafeita, pedindo desculpas ao leitor:

E curvou-se sobre a mão sem luva que, marfinada, perfumada, esguia, brincava com as pregas de cetim da capa. Seus lábios cobriam-na de doces beijos que, insensivelmente, subiam para o braço, quase nu, em obediência à moda.

(...)

Nem por um só momento admitia que a jovem viúva, nascida para o amor, se confinasse na solidão da viuvez. De certo que, mais dia menos dia, - se é que isso não havia acontecido já – arranjaria um amante ou encontraria um marido, tanto mais que ela não se deveria ter enamorado muito do primeiro...

(...)

... a elegante graça do seu corpo, a harmonia dos movimentos, o tom aveludado das carnações, cujo contato deveria ser adoravelmente doce. E, brutal, assaltou-o a tentação de fazer sua aquele mulher que parecia não ser de ninguém... Teve, no entanto, a intuição de que ela nunca se entregaria sem amor... Mas estava já preparado contra a resistência que temia por instinto...

(...)

...viu entreabrir-se a boca deliciosamente fresca que apetecia colada à sua num clarão...

(...)

Nele, que um surdo desejo constrangia, passou em torrente a visão dela, despida, aninhada nos seus braços, ao passo que a sua boca beijava as pálpebras cerradas... (Livros para crianças [II] – 4 de novembro de 1931)

Mas se a literatura para crianças pode dispensar valores ligados ao patriotismo e civismo tradicionais, não pode se escusar de atender a todo e qualquer valor. Nesse trecho de um livro não identificado, podemos ver traços de erotismo, descrito no texto com desejos e insinuações, o que é desaprovado pela poetisa, porque tido como inadequado para uma criança.

Na mesma crônica, a autora destaca claramente a necessidade de mediação do adulto, que deve analisar e escolher o que os pequenos leitores irão ler:

Constituir uma biblioteca escolar não é coisa fácil. Corre-se o risco de ser deficiente com critério ou abundante sem ele. Tudo só porque, como dissemos antes, não temos livros para crianças. Mas os poucos que lhe pareçam servir, convém sejam lidos pelos responsáveis, antes de irem parar às suas mãos. Parece que, entre deficiente com critério e abundante sem ele, melhor será continuar deficiente. O leitor não está vendo o exemplo transcrito? (Livros para crianças [II] – 4 de novembro de 1931)

Nesta direção, pelas crônicas e não pelo Relatório, podemos acessar uma visão de literatura para jovens defendida por Cecília Meireles. Uma representação de Literatura Infantil que vai além da função estética, de predominância da linguagem poética. Uma Literatura Infantil também educativa, formativa segundo outros valores, orientados por uma educação nova, não-tradicional: a criança vista como ser em formação, trazendo a ideia de direitos iguais para todos. Uma literatura que tem como bons modelos mulheres escritoras, como Selma Lagerlöff. Nas crônicas, Cecília Meireles parece defender uma “nova” literatura, bem distante, bem diversa da apresentada no Inquérito.

Entre o desejo, a demanda e a oferta, as leituras infantis vão se constituindo, entre livros escolares, livros de literatura do século XIX, livros de fantasia, em especial contos de fadas, populares e fábulas. E Cecília Meireles, durante os anos 30, vai delineando a Literatura Infantil como um gênero que se firma como diferente da literatura adulta na linguagem, no estilo e na temática, uma literatura apropriada à psicologia da criança, uma literatura que ensina através do adulto que tem sabedoria, e também uma literatura que alimenta o espírito.