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CAPÍTULO 3 A GERAÇÃO DE UM MERCADO ASSISTENCIAL: AS GENTES

4.1 Algumas notas sobre raça, cor e qualidade no Antigo Regime

Estudiosos da temática da escravidão de africanos cada vez mais têm como foco em suas pesquisas a racialização das relações que envolviam os vários segmentos sociais de livres e escravos. Nesse viés, essas pesquisas procuraram, na historicidade das concepções de raça, compreender as designações de cor como construções sociais. Outros, também, partem da desconstrução do conceito de “raça” em voga no final do século XIX, a partir do racismo científico, com base no determinismo biológico. Nesse caso, esses estudos geralmente tratam de contextos dos anos finais do Império, atravessando a República, até início do século XX, buscando compreender como esses sujeitos históricos construíram suas cidadanias após a emancipação494.

A tese do historiador Marcus Vinicius Rosa é um exemplo historiográfico voltado para o contexto de Porto Alegre na virada do século XIX para o XX. O autor preocupou-se em entender como foi construída a ideia de raça a partir da relação entre negros e brancos, em determinados espaços geográficos da cidade ao longo do tempo. Uma das conclusões do autor é que houve uma invisibilidade dos negros em relação aos brancos, na tentativa de

494 Alguns exemplos desses estudos para a região sulina podem ser representados pelos seguintes trabalhos: WEIMER, Rodrigo de Azevedo. A gente da Felisberta. Consciência histórica, história e memória de uma família negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação (c. 1847-tempo presente). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.; ROSA, Marcus Vinicius de Freitas. Além da

invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-Abolição (1884-1918). Tese

180 construção de uma identidade regional e mesmo parte de um projeto nacional racialmente excludente. Assim, quando se facilitava a entrada de imigrantes brancos (europeus) para trabalhar no lugar de negros, configurava-se um projeto político que objetivava: “construir uma província e uma nação modernas, civilizadas e desenvolvidas” 495. Esse projeto se moldava a partir de uma legislação que não se declarava racista, mais barrava e desqualificava a presença negra em Porto Alegre. Nesse sentido, retomemos o pioneiro estudo de Hebe Mattos, que já alertava que a noção de raça é, antes de tudo, uma construção social elaborada e reelaborada na sociedade brasileira496.

Entretanto, quando recuamos a um passado mais remoto, a noção de “raça” e mesmo sua extensão, o “racismo”, podem não ser tão explicativos para aquele contexto social e exige-nos uma problematização. É relativamente consensual que a ideia de racismo, construída a partir das teorias das raças como fatores biológicos, é anacrônica para o Antigo Regime, ou seja, essas teorias antecedem o racismo.

Nossa reflexão parte da ideia de raça nesse período, que está atrelada mais a fatores sociais e culturais do que propriamente fenótipos. No já citado Vocabulário Latino, de Raphael Bluteau, o verbete “raça” fala em “casta” e inicia explicando que se “diz de certas espécies de raças de animais, como cavalos, cães & etc”. O verbete ainda segue explicando que raça também pode se referir que: “falando em gerações, se toma sempre a má parte” ou ainda “ter raça de mouro ou judeu”497. No vocabulário de Antônio de Moraes Silva, o verbete é muito semelhante e se refere a “casta” e a animais “cão, cavalo de boa ou de má raça”, bem como “ter raça, ter sangue de mouro, ou judeu”498.

Ambos os dicionaristas, em seus verbetes, fazem referência a uma ideia de “castas” e “raça de animais”. Mas também fazem referência ao texto do Compromisso da Misericórdia de Lisboa para complementar o verbete com a ideia de “raça” de judeus ou mouros (nesse caso também, cristãos-novos). O Compromisso reformado de 1618 previa que os irmãos fossem cristãos-velhos, ou seja, “limpos de sangue sem raça alguma de judeu

495 ROSA, Marcus Vinicius de Freitas. op. cit., 2014, p. 15.

496 Cf. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, (Brasil, século XIX.). 3ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

497 BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez e latino... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721, p. 86.

498 SILVA, Antônio de Moraes. Diccionário da Língua Portugueza. Lisboa: Empreza Litteraria Fluminense, 1798, p. 545-546.

181 ou mouro”499. O significado de “raça”, nesse sentido, está atrelado a questões sociais e religiosas, atribuindo uma carga negativa - “toma sempre a má parte” -, quando se refere a mouros e judeus, falando em “raças-infectas”. Ronald Raminelli, ao discorrer sobre a documentação do Santo Ofício, mostra como os cristãos-velhos ou católicos eram limpos de toda a “raça-infecta da nação” e “não compunham uma raça, como os demais grupos religiosos, ou seja, as raças ou as castas expressavam identidades religiosas contrárias ao catolicismo”500.

Apesar dessas conclusões, como mencionei há pouco, é relativamente consensual pela historiografia que a ideia de racismo seja anacrônica para o período moderno, mas há vozes dissonantes que problematizam essa questão501. Uma dessas vozes é a de James Sweet, ao defender a ideia de um “racism without race”, pois, para ele, o racismo era latente no período moderno ibérico, mesmo antes do tráfico. O argumento de Sweet é a de que o racismo enquanto discriminação étnica não é fruto do capitalismo e consolidado com a expansão marítima, mas sim, existente como um hábito muito antes desse período e tornou- se uma pré-condição necessária para o sistema escravista que se desenvolveu nas Américas durante o século XVII. Ressalta também que, por mais que a Igreja Católica justificasse a escravidão pelo viés teológico, na prática, o discurso era contraditório e as distinções pela cor da pele prevaleciam, pois a aversão aos negros africanos permitiu explorações de maneiras virulentas que os colonos nunca consideraram para escravos brancos ou servos502.

Pensando desse modo, as teorias raciais apenas legitimaram um pensamento excludente em torno da tez da pele, já existente no período moderno ibérico. Numa perspectiva um pouco semelhante à de Sweet, Francisco Bethencourt diz que a “classificação

499 BNP. Santa Casa da Misericórdia (Lisboa). Compromisso da Misericórdia de Lisboa. Lisboa: por António Alvarez, 1640, p. 28.

500 RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da cor. Mulatos no Brasil e em Portugal, c. 1640-1750. In: Varia

História, Belo Horizonte, vol. 28, n. 48, julho/dez. 2012, p. 718.

501 Não podemos deixar de mencionar aqui os estudos clássicos de brasilianistas como Charles Boxer, que, apesar de discutir as race relations no império português, não oferece um conceito definido de raça e coloca no mesmo grupo negros, mulatos, mouros e judeus. Pensando a obra no seu contexto, Boxer contrapunha, na década de 1960, a integração harmoniosa do processo colonial exaltada pela historiografia salazarista e Gilberto Freyre. Nessa esteira, também não podemos deixar de citar estudos importantes como o de Russell-Wood e Stuart Schawartz. Cf. BOXER, Charles R. Relações raciais no Império colonial português (1415-1825). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro [1962] 1967.; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil

colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1982] 2005.; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos:

engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, [1985]1988. 502 SWEET, James H. The Iberian Roots of American Racist Thought. In: William and Mary Quarterly, Third Series, vol. 54, n.1, 1997, p. 165.

182 não antecede a ação”503. No seu estudo de longa duração, numa perspectiva analítica que vai da História Social à História Cultural, se propõe a pensar em “racismos”, no plural, e entende que devem ser analisados sob o prisma das hierarquias sociais e das condições locais.

A perspicácia interpretativa de Bethencourt está na forma de como emprega o conceito de racismo. Para ele nada mais é do que o “preconceito quanto à descendência étnica combinado com ação discriminatória”504. Apesar de soar de forma simples, torna-se articulado aos contextos históricos; assim sua tese é a de que o(s) racismo(s) foram motivados por projetos políticos e devem ser percebidos de modo relacional ao contexto histórico, por isso uma análise de longa duração, para permear suas “diferentes formas, continuidades, descontinuidades e transformações” e chegar a algo próximo de sua totalidade ou pelo menos em âmbito europeu e ocidental505.

Hebe Mattos, nesse sentido, até concorda que a legitimação da escravidão moderna não se fez em bases raciais, mas enfatiza que isso “não implica, entretanto, considerar que estigmas e distinções com base na ascendência deixassem de estar presentes na sociedade do Antigo Regime”506.Neste sentido, Hebe Mattos aborda a questão numa perspectiva em que, na época moderna, os estigmas pela ascendência e os estatutos de “pureza de sangue” continham uma lógica “proto-racial”, pois serviam para a manutenção das hierarquias que estigmatizavam setores da população para legitimação da nobreza e de seus privilégios 507.

Outros estudos voltados à América portuguesa, como o de Silvia Lara, ilustram como, nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e Salvador, no século XVIII, a crescente população negra e mestiça, forra e livre, teve a representação de um “incômodo social”. A partir da análise de documentos de cunho político e de intelectuais, Lara entende esse fenômeno como um processo “crescente de racialização das relações sociais”, mesmo

503 BETHENCOURT, Francisco. Racismos – Das cruzadas ao século XX. Lisboa: Temas & Debates/ Círculo de Leitores, 2015, p. 17.

504 BETHENCOURT, Francisco. op. cit., 2015, p. 21.

505 BETHENCOURT, Francisco. op. cit., 2015, p. 23. Karl Mosma é outro autor que critica o “paradigma colonial” que percebe o racismo como “consequência da expansão europeia, a partir do fim do século XV, e da dominação dos europeus e descendentes sobre os outros povos do mundo”. Segundo ele, “Entretanto, o paradigma colonial simplesmente desconsidera, ou exclui por definição, várias outras formas do racismo, ou de opressão nítida de um povo por outro”. MONSMA, Karl. Como pensar o racismo: o paradigma colonial e a abordagem da sociologia histórica. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 48, n. 2, jul./dez., 2017, p.55-56.

506 MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.148.

183 que admita “ainda que o termo ‘racialização’ possa oferecer alguns problemas analíticos e introduza certo anacronismo”508. Alguns estudos já apontam para a mestiçagem como elemento racial. Larissa Viana, ao tratar das irmandades religiosas de pardos, no Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII, mostra que a questão da mestiçagem para as autoridades portuguesas era um problema que precisava ser pensado e definido. Traçando um diálogo com a formação das teorias raciais no Brasil, aposta na identidade (reivindicada) para melhor entender a atuação desses grupos devotos de pardos, que procuravam positivar seu estatuto diante dos mulatos509.

É devido a isso que um dos pontos de maior debate historiográfico no caso da América portuguesa é a discussão em torno do “mulatismo”, ou seja, as restrições ou impedimentos que “mulatos” tinham para ocuparem cargos públicos. Para atuarem em cargos nas Câmaras, por exemplo, eram eleitos os “homens bons”, designação que se referia a uma elite local que deveria atender uma série de quesitos: ser maior de 25 anos, casado ou emancipado, católico e sem “nenhuma impureza de sangue”, isto é, nenhum tipo de mestiçagem racial. Também era necessário que fossem homens de cabedal, o que significava, de alguma forma, serem proprietários de terra510. Na Câmara de Vila Rica, nas Minas Gerais, por exemplo, o Senado tolerava vereadores mestiços que migravam de São Paulo, mas essa tolerância foi logo condenada pela Coroa, a qual, em 1725, ordenou que no futuro todos os candidatos a cargos municipais deveriam ser brancos e casados com mulheres brancas. Apesar de haver na legislação essa orientação, isso não impediu, na prática, que outros mestiços paulistas assumissem esses cargos511.

Ainda para termos ideia da questão em âmbito eclesiástico, nas Constituições Primeiras da Bahia, podemos observar certas diligências atribuídas aos candidatos ao

508 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 282.

509 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas: Unicamp, 2007.

510 No capítulo “conselheiros municipais e irmãos de caridade”, Boxer ainda comenta que esses oficiais usufruíam de regalias, como a dispensa do serviço militar e recebiam a isenção do confisco de qualquer bem para uso da Coroa. Cf. BOXER, Charles. O império marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 286-308.

511 RUSSELL-WOOD. Anthony J. R. Histórias do Atlântico português. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 18-19. É somente com a Constituição de 1824 revogada a “mancha de sangue” contra os afrodescendentes, considerando como cidadãos brasileiros todos os homens livres. Hebe Mattos, entretanto, problematiza a igualdade de direitos reconhecida pela Constituição, pois não foi estendida a todos os cidadãos, uma vez que estes foram diferenciados a partir de direitos políticos por meio de critérios censitários entre: cidadãos passivos e cidadãos ativos. Para participarem do jogo eleitoral, por exemplo, era necessário ter uma renda mínima. Cf. MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

184 sacerdócio que ilustram as prerrogativas da “limpeza de sangue” no âmbito católico. No título 53 do primeiro livro, era preciso se certificar de que o candidato não “tem parte de nação hebreia ou de outra qualquer infecta: ou de negro, ou mulato”512.

De todo modo, é preciso mencionar que a discussão em torno da discriminação relativa à “multidão de mulatos” no século XVIII é também efeito do crescimento do número de alforrias nos grandes centros urbanos de grande densidade demográfica, como no caso carioca e mineiro513. A questão abordada aqui não é esgotar esse debate sobre raça/racismo, outros já o fizeram com muito mais propriedade, mas sim aproximá-lo de nosso interesse de pesquisa514.

Por exemplo, no que tange às crianças expostas, o recente estudo de Renato Franco trouxe uma contribuição importante. Ao analisar os casos dos expostos em Vila Rica, Mariana e Recife, o autor mostrou como as autoridades responsáveis pelo amparo assistencial procuraram restringir o auxílio para a criação das crianças a partir de critérios raciais (ou proto-raciais), estabelecendo limites nas noções de caridade e pobreza515. O que o autor mostra é que, até mesmo a pobreza possuía uma condição hierárquica, sendo preferencialmente digno de receber caridade aquele qualificado como branco e livre. Mas no caso dos expostos, dignos merecedores da caridade desde pelo menos o século XVI, as autoridades entravam em conflito com a legislação frente aos expostos não brancos, pois queriam restringir, ou ao menos desqualificar, essas crianças mestiças e mulatas516.

Cabe dizer, entretanto, que alguns setores da população eram de interesse para a Coroa portuguesa. No século XVIII, durante o reformismo ilustrado, houve medidas políticas que alterariam a vida social de determinados setores da população. Referimo-nos à exclusão dos estatutos de “pureza de sangue” e à incorporação de grupos ao corpo social que

512 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (Impressas em Lisboa no ano de 1719, e em Coimbra em 1720. São Paulo): Tip. 2 de Dezembro, 1853, p. 93.

513 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004 [1982].

514 Ronald Raminelli fez um profundo balanço sobre essa questão. Embora também considere que a cor da pele no século XVIII é mais um fator social do que racial, concorda que os critérios de raça/racismo, baseados no determinismo biológico do século XIX foram gestados nesse período moderno e “atuavam nas relações sociais sem contornos definidos”. RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 209.; Ver também: RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da cor. Mulatos no Brasil e em Portugal, c. 1640-1750. In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 28, n. 48, p. 699-723, julho/dez. 2012.

515 FRANCO, Renato. Discriminação e abandono de recém-nascidos mestiços na América Portuguesa. Os exemplos de Mariana, Vila Rica e Recife. In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 32, n. 59, p. 437-469, mai/ago, 2016.

185 antes eram estigmatizados no Império português, principalmente os indígenas. Como já havíamos mencionado, o Alvará de 1755 incentivava os casamentos mistos e a criação dos Diretórios, medidas como esta última diretamente ligadas ao espaço sulino517.

O decreto de 1773, por sua vez, abolia também todas as formas de discriminação entre cristãos-velhos e cristãos-novos, reconhecendo esses últimos como súditos e vassalos da Coroa518. Porém, quando nos referimos ao “sangue mulato”, os princípios de “pureza de sangue” permaneceram inalterados. Larissa Viana menciona que a visão racionalizadora da política pombalina “esbarrava na centralidade da escravidão na América portuguesa; esbarrava também, e não menos, no papel jogado pela mestiçagem como relação social produtora de hierarquias”519.

Dada essa explanação, é preciso salientar que a discussão sobre raça/racialização ou racismo para o século XVIII está em aberto. O consenso perceptível existente é o de que, independente de classificar como práticas racistas ou não, existiram classificações hierárquicas dos povos, principalmente nas Américas, bem como práticas discriminatórias, seja para a manutenção dos privilégios de uma elite, ou para legitimar a supremacia de uma etnia sobre a outra.

Em nosso caso, optamos por um caminho do meio e operaremos com a ideia de “qualidade”. Eduardo Paiva, ao tentar entender os léxicos pelos quais as populações ibero- americanas se autonominavam e como também nominavam o outro, num processo social que chamou de “dinâmicas de mestiçagens”, também problematizou a noção de raça nessa

517 Medidas que incentivavam os casamentos mistos não eram inovadoras na pauta governativa. Em Goa, por exemplo, no século XVI, houve um forte incentivo aos casamentos mistos como estratégia de colonização. Mesmo que a Igreja fizesse vistas grossas a essas ações, a Coroa via nessas uniões matrimoniais entre indianos e portugueses uma forma de controle a partir da miscigenação, pois garantia a educação (cristã) da prole fruto dessas uniões. A questão suscitada é que, ao longo do tempo, se desenvolveu uma elite mestiça que queria reivindicar direitos e mercês, como cargos na administração pública, entretanto, em conflitos com os reinóis. XAVIER, Ângela Barreto. Dissolver as diferenças: Mestiçagem e conversão no Império português. In: CABRAL, Manuel Vilaverde. et al. (Eds). Itinerários: A investigação nos 25 anos do ICS, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008. pp. 709-727. É um processo semelhante ao que João Fragoso identificou para o Rio de Janeiro, quando trata da disputa pelo poder público local entre uma “nobreza da terra”, que se legitimava por ser ascendente dos primeiros colonizadores, contrapondo aos recentes comerciantes enriquecidos. FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O

Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

pp. 29-72.

518 VIANA, Larissa. op. cit., 2007, p. 83. 519 VIANA, Larissa. op. cit., 2007, p. 84.

186 mesma chave de entendimento que estamos aventando. Para o autor, em formato geral nessa sociedade, os sujeitos são classificados da seguinte forma: nome+qualidade+condição520.

A “condição” estava associada ao estatuto jurídico dos sujeitos, nesse caso, se eram livres, forros ou escravos521. No caso da “qualidade”, essa tem uma definição mais complexa, pois a essa definição se agregam outros elementos, como a própria “condição” e mesmo a “cor”. Esse termo, vindo do latim “qualitas”, também referido como “calidade” ou “calidad”, foi empregado a partir do pensador romano Cícero: “razão, que determina a própria essência da cousa”, “a qualidade que determina algum ente exterior”522. Nessa sociedade com resquícios de Antigo Regime, a “qualidade” era empregada para designar os sujeitos pela sua ascendência e fenótipo, seja por crenças religiosas (cristão, mouro ou judeu) ou por características étnicas (índio, negro, crioulo, branco); todos estes critérios que organizavam o lugar social dos indivíduos.

As “qualidades”, portanto, diferenciavam, hierarquizavam e classificavam os indivíduos e os grupos sociais a partir de um conjunto de aspectos (ascendência familiar, proveniência, origem religiosa, traços fenótipos, tais como a cor da pele, o tipo de cabelo e o formato de nariz e boca), pelo menos quando isso era possível. Quando não era possível essa conjunção, os elementos mais aparentes e/ou convenientes eram acionados para que a