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CAPÍTULO 3 A GERAÇÃO DE UM MERCADO ASSISTENCIAL: AS GENTES

3.3 Modestos, mas presentes: os guaranis e a assistência aos expostos

Além das africanas e suas descendentes, outro setor da população que encontramos em nossos dados é referente aos indígenas. É preciso salientar que se as fontes apresentavam certos desafios quanto à presença dos libertos, no que se refere à população indígena os desafios são ainda maiores. Maiores devido a toda política populacional implementada em Portugal, como já mencionamos em alguns momentos, aqui especificamente a política pombalina, que procurou integrar e homogeneizar as populações indígenas.

A política imperial de Pombal visava aproveitar as riquezas coloniais e racionalizar e padronizar a administração, a organização militar e o treinamento educacional sob a alçada do Estado; onde fosse necessário para a defesa e o bom governo, as diferenças de raça e etnia não seriam

456 SWEET, James H. op. cit., 2007, p. 69.

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barreiras para se manter um cargo ou uma promoção, e a participação local no governo era encorajada457.

A ideia era de “civilizar” os índios, integrando-os à sociedade portuguesa, ao contrário da política anterior de segregação, que havia caracterizado a administração missionária, principalmente a jesuítica. As medidas tomadas nesse intuito incluíam a demarcação de fronteiras, principalmente na região norte, com a criação do Diretório dos Índios (1757); a lei da Liberdade dos Índios (1755), que declarava a proibição da escravização indígena; e a lei dos casamentos (1755), que incentivava os casamentos mistos entre brancos e indígenas sem que esses matrimônios fossem considerados de estatuto inferior, ou como uma “infâmia”458.

Para o caso de Minas Gerais nos setecentos, Maria Chaves de Resende já constatou que as mulheres indígenas não serviam apenas para a exploração dos colonos, mas havia também casamentos estáveis entre brancos e índios. Em contrapartida, muitos casamentos mistos entre índios, forros e escravos também foram uma solução para garantir sua servidão: “o atrelamento dos indígenas ao plantel escravo, quando criavam, por meio do enlace matrimonial, um vínculo profundo entre os nubentes, evitando, assim, qualquer enlace com a propriedade senhorial”459.

É de se ressaltar que essa política do século XVIII é de extremo interesse no que tange ao território sulino, visto a preocupação de assegurar seu território frente à coroa castelhana. Entretanto, apesar do incentivo dessas uniões, o estudo de Eliza Garcia mostra

457 MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 139.

458 Maria Celestino de Almeida sintetiza essas medidas a partir de um apanhado de estudos recentes, mostrando que essas “novas leis visavam, essencialmente, promover a assimilação dos índios, acabando com os costumes indígenas ainda existentes nas aldeias e com as discriminações contra eles, de forma a transformá-los em vassalos do rei, sem distinções em relação aos demais, pois deixavam de estar sujeitos aos estatutos de limpeza de sangue que os excluíam da obtenção de títulos honoríficos e do acesso aos cargos públicos e eclesiásticos”. ALMEIDA, Maria Celestino Regina de. Política indigenista e políticas indígenas no tempo das reformas pombalinas. In: FALCON, Francisco; RODRIGUES, Cláudia. (orgs). A “Época Pombalina” no mundo luso-

brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 178. Mesmo para os pesquisadores da América espanhola,

esses desafios são presentes. O processo de homogeneização na sociedade, “dependia de la integración y estatus social del individuo”. Assim, no caso de Buenos Aires colonial, a denominação dada aos indígenas era uma rotulação em que prevalecia o destaque deles perante o restante da sociedade. Portanto, daí provém “la ambiguidade de las fuentes”, quando se referem aos registros de indígenas e africanos. DAVIES, Geraldine. Rescates o compras de indígenas em Carmen de Patagones (1795-1836): um fenómeno particular de mestizaje. In: FABERMANN, Judith; RATTO, Silvia. [coord.]. Historias mestizas en el Tucumán colonial y las

pampas (siglos XVII-XIX). Buenos Aires: Biblos, 2009, p. 136.

459 RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos. Índios coloniais em Minas Gerais setecentista. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p.258.

168 que, no caso do Diretório de Índios, no extremo sul meridional, uma das preocupações eram os maus tratos às mulheres indígenas nestas uniões mistas460.

Um reflexo desta política que visava à mistura biológica e à homogeneização social foi justamente a diluição desse setor populacional nas fontes administrativas, como, por exemplo, os mapas populacionais. Em seis mapas disponíveis, de 1791 a 1810, a população indígena de ambos os sexos representou a média de 2,8% do total da população arrolada461. Entretanto, esses números provavelmente são mais elevados. Para termos ideia, Gabriel Aladrén realizou um exercício interessante no rol de 1807, percebendo a disparidade entre “pretos forros” alforriados e aventou para a possibilidade de que não apenas os livres de cor, mas também os indígenas estivessem assimilados aos pardos. Nesse sentido, o autor constata, cruzando os mapas de 1807 e 1809 com outras fontes, que, se a população indígena era primeiramente arrolada como “índio”, nos anos seguintes, o foi como pardos ou mesmo pardos forros462.

Mas mesmo frente aos desafios e com uma representatividade muito menor no mercado assistencial comparada às forras, ignorar a presença dos indígenas seria uma perda para nossa reflexão, não foi por menos que se tornaram um dos objetivos propostos. Assim, temos primeiro que deixar claro de que indígenas estamos falando, estabelecer as categorias de nossa análise. Nesse sentido, é importante mencionar que, em meio às diversas etnias indígenas existentes no Rio Grande de São Pedro, nos referimos especificamente aos guaranis, que já passaram por um processo de cristianização pelas missões jesuíticas463.

460 GARCIA, Elisa Frühauf. As Diversas Formas de Ser Índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no Extremo Sul da América Portuguesa. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 87-88.

461 Os dados foram contabilizados a partir das tabelas 2 e 4 do estudo de Dario Scott. Cf. SCOTT, Dario. op.

cit., 2017, p. 625-627.

462 ALADRÉN, Gabriel. op. cit., 2009, p. 138.

463 Especialistas na temática, como Eduardo Neumann, identificam um processo que denominam de “guaranização” durante a expansão ao sul dos guaranis, ou seja, a partir do processo missionário jesuítico houve um predomínio da cultura, língua e práticas guaranis sobre outras etnias indígenas existentes, concomitantemente, nesse mesmo território. Cf. NEUMANN, Eduardo. Fronteira e identidade: confrontos luso-guarani na Banda Oriental 1680-1757. In: Revista Complutense de Historia de America. n. 26, pp. 73- 92, 2000. Ressalto ainda que, na tentativa de perceber o papel social desses indígenas na sociedade sulina, buscamos outros aparatos metodológicos, mas não consideramos aplicáveis a esse espaço, por exemplo, a ideia de “índios coloniais”, de Maria Leonidas Chaves para Minas Gerais, que, segundo a autora, se tratava de indígenas integrados à sociedade colonial, mas “descaracterizados e distantes de um padrão tradicional em função de seu isolamento decorrente do processo de destribalização dos diversos grupos de origem”. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. op. cit., 2003, p.3. Entretanto, no espaço sulino, teses recentes têm reafirmado que as missões se caracterizaram por um processo identitário para essas populações e mesmo com a sua dissolução e integradas à sociedade colonial, esses indígenas tiveram autonomia para escolhas e negociações com ambas as coroas ibéricas. Cf. GARCIA, Elisa Frühauf. op. cit., 2007.; RIBEIRO, Max Roberto Pereira. “A terra natural desta Nação Guarani”: Identidade, Memória e Reprodução Social

169 Além disso, nosso esforço encontra outro desafio, a escassez de trabalhos referente à temática da exposição de crianças em relação aos indígenas. Um levantamento bibliográfico realizado pela Coordenação de Estudos e Pesquisas sobre Infância, da Universidade de Santa Úrsula (CESPI/USU), apontou um total de 268 trabalhos referentes à História da Criança no Brasil, de 1800 a 2000464. Os anos de 1990 tiveram o grande boom de estudos, representando cerca de 60% das publicações, entretanto, desse conjunto, apenas cerca de 3% se referem (ou tangenciam) à temática da criança indígena. Nos quase vinte anos posteriores ao levantamento, ainda poucas referências são encontradas, principalmente quando se trata da questão específica da exposição de crianças e sociedades nativas465.

Entre os raros trabalhos que se referem a indígenas e exposição de crianças, temos o de Diane Valdez, que se refere a diversas localidades da Província de Goiás, nas primeiras três décadas do século XIX. A autora demonstra que, apesar de se verificar um crescimento populacional nesse período, a exposição de crianças equivale a 0,9% dos batizados. Naquele contexto, a pobreza era uma constante, bem como a ilegitimidade, assim, a interpretação da autora frente ao reduzido percentual dessa prática aponta para o fator populacional. A sociedade estudada por Valdez era composta predominante por indígenas, “os quais mantinham relações harmoniosas com suas crianças”466.

Essa premissa pode ser pensada também para Cuiabá, onde se soma também outro fator: o de fronteira. O estudo de Maria Peraro, apesar de apenas tangenciar a questão da exposição em sua pesquisa, mostrou que, na segunda metade do século XIX, em Cuiabá, 70% da população é classificada pelos censos como mestiça. É interessante mencionar que, pelos dados de batismos da Paróquia de Senhor Bom Jesus de Cuiabá de 1853 a 1890, enquanto 43% das atas são referentes a crianças naturais, apenas 0,7% delas são referentes a expostos467. Nesse contexto fronteiriço foi criada uma roda dos expostos em 1834, sendo

Indígena No Vale Do Jacuí (1750-1801). Tese (Doutorado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2017.; MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. Histórias indígenas em contextos de

formação dos Estados argentino, brasileiro e uruguaio: charruas, guaranis e minuanos em fronteiras platinas

(1801-1818). Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.

464 Cf. RIZZINI, Irma; FONSECA, Maria Teresa da. Bibliografia sobre a história da criança no Brasil. Marília: Unesp Marília Publicações, 2001.

465 RIZZINI, Irma; FONSECA, Maria Teresa da. op. cit., 2001, p.iv.

466 VALDEZ, Diane. Filhos do pecado, moleques e curumins. Imagens da infância nas terras goyanas do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Feral de Goiás, Goiânia, 1999, p. 36. Ver também: VALDEZ, Diane. “Inocentes expostos”: o abandono de crianças na Província de Goiás no século XIX. In: Inter-Ação: Revista da Faculdade de Educação, UFG, 29 (1), p.107-129, jan./jun. 2004.

467 PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade no Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001, p. 126.

170 extinta décadas depois, pois não tinha uso social pela comunidade. Até 1850, apenas três crianças tinham sido enjeitadas na instituição468.

Em um contexto totalmente adverso, em Tula, no México, entre os séculos XVII e XVIII, ao analisar o comportamento dos indígenas, Elsa Malvido percebeu que aqueles que expunham crianças o faziam devido a “situaciones anormales, epidemias y crises agrícolas”469. Tratava-se, naquele contexto, de um critério demográfico, no qual, as comunidades indígenas conseguiriam ajustar a quantidade de componentes familiares a suas condições de sobrevivência. Tal deliberação era uma forma de controle que em momentos de prosperidade agrícola, por exemplo, não ocorria devido à demanda de alimentos e força de trabalho necessária para a agricultura470.

Como já salientamos, a exposição de crianças ocorre de diferentes formas e sob circunstâncias bem distintas. No caso mexicano, a pergunta é: se, além dos aspectos demográficos, dinâmicas culturais também não interferiram na prática da exposição de crianças. Nesse sentido, é importante frisar que tanto a população com ascendência africana quanto a indígena possuíam lógicas familiares que as distinguem da do europeu branco.

Frente a isso, é importante saber que os enlaces familiares guaranis constituíam-se de entrelaçados grupos macrofamiliares, que tinham projeções para além da própria aldeia. Em outras palavras, era “a "família extensa", teýy, na língua guarani. Várias dessas famílias formavam as aldeias, ou amundá. Um conjunto de aldeias formava um tekí'á, que unidos eram uma região ou guará”471. Temos que pensar num modo de vida no qual a coletividade era fundamental para a sobrevivência, portanto, os vínculos familiares extrapolavam aqueles de consanguinidade, tal como compreendidos pelos europeus.

A questão é: que família se formou a partir dessas relações miscigenadas, e mesmo entre os próprios indígenas? Mesmo com o projeto normatizador da Igreja tridentina e da Coroa, por maior que tenha sido o controle que imperava sobre a vida social de seus fregueses, na prática social cotidiana, houve espaços para diversos desvios normativos ou mesmo práticas sociais paralelas às exigidas pela norma. Retomemos aqui o estudo de

468 PERARO, Maria Adenir. Expostos e ilegítimos em Cuiabá: sociabilidades, estratégias e parentesco espiritual, século XIX. In: Renato Pinto Venancio (Org.). De Portugal ao Brasil: uma história social do abandono de crianças. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2010, p. 279-280.

469 MALVIDO, Elsa. El abandono de los hijos. Una forma de control del tamaño de la familia y del trabajo indígena. Tula (1683-1730). Historia mexicana, El Colegio de México, México, v. XXIX, n. 4, 1980, p. 538- 539.

470 MALVIDO, Elsa. op. cit., 1980, p. 550.

171 Guillermo Wilde sobre os guaranis nas reduções em torno do Rio da Prata, entre os séculos XVII e XIX. O autor mostra que a prática da poligamia nunca deixou de existir e ainda era sinônimo de poder, prestígio e estabelecimento de alianças indígenas dentro e fora das reduções.

Parece aceptable que prácticas como la poligamia contianuaron siendo para los indígenas una vía altamente eficaz de adquisición de poder, tanto dentro como fuera de la reducción. Fuera de los pueblos, la poligamia permitía crear nuevas redes de alianzas que actuaban como catalizador de la movilidad de gente entre los mismos pueblos y con respecto a los diversos espacios de campaña, donde habitaba población no reducida. A nivel interno, la poligamia presentaba a los que no eran miembros da elite indígena, la oportunidad de escapar al estricto control del régimen del cacicazgo, buscando alianzas no reglamentadas dentro y fuera de los pueblos472.

Dada essa pequena reconstituição dos guaranis, cabe-nos observar suas relações com fenômenos da exposição de crianças e o mercado assistencial no território sulino. Em Rio Pardo, há uma maior presença de guaranis envolvidos com a prática da exposição de crianças, isso se dá devido ao aldeamento de São Nicolau, o mais longevo do Rio Grande de São Pedro, criado em 1757 e extinto apenas em 1860473. Contabilizando os batismos de expostos, cerca de 2% foram abandonados em portas de indígenas ou levados à pia batismal por eles. Muitos foram abandonados na Aldeia de São Nicolau, como no batismo da enjeitada Maria, ocorrido em 19 de março de 1777, “exposta na Aldeia de São Nicolau”, os padrinhos foram ambos guaranis474. Em outro caso, o pequeno José, batizado em 22 de novembro de 1809, tinha sido exposto em casa do índio Jose Flores, morador na “aldeia de São Nicolau, circunvizinha desta matriz”475. Os padrinhos de José foram o furriel Francisco Antônio de Borba e Dona Maria Josefa de Figueiredo Mena.

A predominância dos casos de batismos envolvendo expostos se refere a mulheres indígenas. Todas foram registradas como China, ou “xina”, conforme a grafia utilizada nos

472 WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones de guaraníes. Serie Historia. Americana, Colección Paradigma Indicial. SB. Buenos Aires, 2009, p.136.

473 Elisa Garcia, comparando os dois diretórios, a aldeia dos Anjos e São Nicolau, coloca que “uma das maiores diferenças de São Nicolau em relação à aldeia dos Anjos era na composição dos seus moradores. Enquanto na última foram seguidas à risca as determinações pombalinas, segundo as quais os índios deveriam conviver com moradores brancos, a aldeia de São Nicolau era composta só de índios. Esta diferença provavelmente refletia a situação administrativa de ambas, pois a aldeia dos Anjos foi transformada em vila, enquanto São Nicolau permaneceu como aldeia indígena até o terceiro quartel do século XIX”. GARCIA, Elisa Frühauf . op. cit.,2007, p.123-124.

474 AHCMPA, Freguesia Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo, Livro IV de batismos de livres, fl.45v. 475 AHCMPA, Freguesia Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo, Livro VIII de batismos de livres, fl.94v.

172 documentos, grande parte delas eram casadas e algumas solteiras. Karina Melo, procurando entender historicamente as relações sociais estabelecidas pelos indígenas na aldeia de São Nicolau, mostra em sua pesquisa, a partir de documentos da Coroa espanhola, que muitos indígenas haviam migrado dos povos das missões orientais e se encontravam nas imediações de Rio Pardo. Esses índios e índias eram considerados “chinas”476. Acontece que, por vezes, não há uma diferenciação entre mulheres indígenas e “chinas” e as categorias se mesclam...

Essas supostas confusões identitárias denotam não somente uma grande mestiçagem entre sujeitos históricos e práticas sociais, como também uma noção de mobilidade espacial que ultrapassa a noção de espaço territorial477.

A constatação de Karina Melo vai ao encontro do estudo de Estela Noli para San Miguel de Tucumán, província no noroeste da Argentina, que mostra que muitas mulheres indígenas eram denominadas como chinas ou mesmo homens indígenas como chinos, termo que para a América Espanhola significava “pobre, índio y, a veces, negro o índio”478. O termo parece estar atrelado a certa identidade em trânsito e certamente a processos de mestiçagens. Nas palavras de Estala Noli, “Sin Duda, las chinas fueran fundamentales en las transferências culturales: sacadas de su mundo, estas mujeres lo llevaban con ellas”479.

Não nos foi possível acompanhar a trajetória desses expostos, saber se foram inseridos em seus universos familiares. Entretanto, há um elemento nesses batizados que é importante e que pode nos trazer alguma luz. Em 90% dos casos de batizados de expostos em portas de indígenas, as crianças tiveram como padrinhos outros indígenas. O estudo de Max Ribeiro sobre a aldeia de São Nicolau, analisando especificamente os livros de registros de índios, mostrou empiricamente que “a escolha para compadre se dava a partir de elementos autorreferenciais e identitários entre os indígenas”480. Neste sentido, indígenas escolhiam preferencialmente outros indígenas como compadre e comadre. Como o autor pôde verificar ainda nessas relações de indígenas que eram legitimamente casados, os

476 MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. A Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios guaranis (séculos XVIII-XIX). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 50-54.

477 MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. op. cit., 2011, p. 52.

478 NOLI, Estela. Mestizajes, identidad y oficio: San Miguel de Tucumán, siglo XVII. In: FABERMANN, Judith; RATTO, Silvia. [coord.]. Historias mestizas en el Tucumán colonial y las pampas (siglos XVII-

XIX). Buenos Aires: Biblos, 2009, p.75.

479 NOLI, Estela. op. cit., 2009, p.71.

173 padrinhos e madrinhas eram oriundos dos mesmos povos, esfacelados com a guerra guaranítica, em 1750: Santo Ângelo, São Miguel, São Lourenço e mesmo São Nicolau481.

No que tange à assistência, poucos foram os batizados de expostos em que identificamos indígenas após a instalação da Câmara, e nesses que aconteceram após esse período, não recorreram ou não tiveram acesso aos salários. Pelo livro de matrículas de expostos de Rio Pardo, os moradores de São Nicolau que receberam salários são, ao que nos parece, brancos, como no caso de Jozé Antonio Pereira Penna, como constatamos em ofícios trocados com a Câmara de Vereadores, em 1832, integrava parte dos administradores da localidade482. Isso reitera nossas conclusões anteriores de que, em Rio Pardo, a assistência era mais restrita a famílias de militares e oficiais da Câmara, do que à população liberta e indígena. Essas, pouco ou nenhum acesso tiveram aos salários de criação dos enjeitados.

Na localidade de Rio Grande não identificamos indígenas relacionados à exposição, seja na documentação camarária ou eclesiástica. Entretanto, no livro de matrículas de expostos de Cachoeira, os guaranis estão representados. No dia 21 de fevereiro, Comba foi enjeitada em casa de Dorotéia Maria da Conceição, esposa de Simão Carvalho. Ambos deram entrada na matrícula da enjeitada na Câmara de Cachoeira. Após receberem alguns meses de salários, a enjeitada foi transferida, sem motivo especificado, por despacho da Câmara do dia 27 de junho, a “Ama” Maria Domingas, mulher de Roque de Tal, “ambos guaranis”483.

Nesse caso é interessante verificar que Maria Domingas foi mencionada como ama, ou seja, pode-se conjecturar que exerceria ou ao menos exerceu essa atividade na criação de