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2.2 As implicações estéticas da Neue Sachlichkeit na fotografia

2.2.3 Algumas reflexões sobre a transparência e o fotojornalismo

Comparados entre si, imagens fotográficas e pictóricas de outros tipos parecem ser acreditadas fundamentalmente diferentes quanto se trata de realismo. Fotografias podem ter credibilidade científica e, por exemplo, pinturas não costumam ser utilizadas como provas, por mais realistas que possam ser. Esta precisaria da mediação da mão do pintor que supostamente retrataria muito mais um olhar sobre a realidade, mantendo uma certa distância por mais próximo que estivesse, enquanto que a primeira deixaria o próprio mundo impregnar-se em si, sem mediação, como se a câmera-filme entre o mundo e o espectador sequer existisse.

Alguns autores contemporâneos como Kendal Walton em seu artigo

Transparent Pictures: On the Nature of Photographic Realism (1984, p. 249,

tradução nossa223) apontam alguns caminhos sobre o realismo fotográfico e a transparência

Quando um pintor falha em alcançar tal realismo de padrões fotográficos, a dificuldade é meramente tecnológica, uma que, em princípio, pode ser superada por uma atenção maior aos

222 “To the extent that life became more hectic, and the individual was less prepared to leaf through a magazine in a quiet moment, to that extent it became necessary to find a sharper, more efficient form of visual representation […].”

223 When a painter fails to achieve such realism up to photographic standards, the difficulty is merely technological, one which, in principle, can be overcome by more attention to details, more skill with the brush, a better grasp of the "rules of perspective." Likewise, photographs aren't necessarily very realistic in these sort of ways. Some are blurred and badly exposed. Perspective "distortions" can be introduced and subtleties of shading eliminated by choice of lens or manipulation of contrast. Photographic realism is not essentially unavailable to the painter, it seems, nor are photographs automatically endowed with it. It is just easier to achieve with the camera than with the brush.

detalhes, maior habilidade com o pincel, uma maior compreensão das ‘regras de perspectiva’. Do mesmo modo, fotografias não são muito realistas nestas formas. Algumas são borradas e mal expostas. ‘Distorções’ de perspectiva podem ser introduzidas e sutilezas de tons eliminados pela escolha das lentes ou manipulação do contraste. Realismo fotográfico não é essencialmente indisponível ao pintor, parece, nem fotografias automaticamente dotadas dele. Apenas é mais facil alcançar com uma câmera que com o pincel.

Realismo, como vimos (Cf. Subseção 1.2), não se trataria de naturalismo. Além disso, não havendo um consenso sobre o que se compreende como realismo e realidade, ele permanece um termo em disputa. Se apresentar a realidade por uma fotografia é atender com excelência a nitidez, de uma certa geometrização, com detalhe, de uma presença fotográfica que não coloca ao espectador quem a fotografou, “como se visse cara-a-cara” o fotografado, como seria a alternativa da Neue Sachlichkeit, então teríamos um caminho. Mas se ser realista for como dizia Brecht “A realidade muda, para representá-la, os modos de representação também devem mudar”, então à fotografia será adicionada outra coisa para tornar-se “realista”, e o percurso seria um pouco diferente. Um parece tomar o fenômeno da realidade como passível de ser acessado imediatamente por um meio neutro, o outro parece apontar que nem o saber sobre o fenômeno e nem o meio seriam neutros, haveria em certa medida uma alienação a ser considerada.

Mas ambos parecem apontar direções a uma estética da transparência (ou da opacidade), pensando que se é afetado e se vê algo fotografado num determinado passado. Poderíamos pensar a transparência como a virtude (qualidade, predicado, característica) de um meio que organiza representações da realidade para além do aparente, por exemplo, um cuja “visão social” do mundo pretende-se evidente e correta. Na fotografia, de acordo com André Rouillé,

“A transparência da imagem ou a indiscernibilidade da distância entre a imagem e a coisa fazem parte dos enunciados do verdadeiro que acompanham a fotografia-documento desde seus primórdios, porque eles se escoram na maneira como ela vê e como ela mostra.” (ROUILLÉ, 2009, p. 73)

De tal maneira, o que Rouillé chama de ‘fotografia-documento’ parece basear-se na concepção de que seria possível diminuir a distância entre o

mundo material e a percepção deste mundo através do meio fotográfico criando um efeito de verdade. À percepção do que atravessa o meio nada da realidade objetiva seria oculto, desde que estivesse registrado.

Como diz Walton (1984, p. 251, tradução nossa224)

Pintura e desenho são technicas para produzir imagens. Assimtambém é a fotografia. Mas a natureza especial da fotografia permanecerá obscura a menos que a pensemos de outa maneira assim como um empreendimento do ver. A invenção da câmera nos deu não apenas um novo método de fazer imagens e não apenas imagens de um novo tipo: nos deu uma nova forma de ver.

Para Walton parece importar na fotografia em contraste à pintura é que suas causas são diferentes, não uma suposta semelhança enquanto imagens. A experiência de ver através de fotografias teria uma característica mecânica - apesar de não se resumir a isso a sua transparência-, aparentemente sem a intermediação do artista como aconteceria na pintura. O argumento de que ainda assim as fotografias seriam feitas por fotógrafos e incluiriam um viés subjetivo “expressivo” é respondida como

Pode não ser inapropriado falar de ver coisas ‘através de seus olhos’. Além disso eu vejo aquelas coisas por mim mesmo. A fotografia pode ser um enorme meio expressive – Distorção #157 de André Kertez é certamente expressivo – mas esta expressividade não torna fotografias opacas. (WALTON, 1984, p. 262, tradução nossa225)

Ainda que se colocasse as crenças do fotógrafo como um impedimento à transparencia fotográfica, diz Walton (1984), ela coloca o espectador em contato perceptual com o mundo garantido um realismo fotográfico.

A transparência na fotografia surgiria através de seu próprio meio, isto é, do dispositivo fotográfico. Entendendo-o como meio que figura entre os objetos e a percepção das fotografias destes objetos. Assim, enquanto dispositivo, ele seria transparente enquanto não ocultasse à percepção da

224 “Painting and drawing are techniques for producing pictures. So is photography. But the special nature of photography will remain obscure unless we think of it in another way as well-as a contribution to the enterprise of seeing. The invention of the camera gave us not just a new method of making pictures and not just pictures of a new kind: it gave us a new way of seeing.”

225 “It may not be inappropriate to speak of seeing things "through their eyes." Yet I do see those things myself. Photography can be an enormously expressive medium - Andre Kert6sz's Distortion #157 is certainly expressive - but this expressiveness does not render photographs opaque.”

fotografia um equivalente à percepção do mundo dos objetos; situação que não significaria dizer que o que se vê na fotografia é a própria “coisa”, mas sim sua fotografia.

Parece um caminho similar com uma afirmação de Rosalind Krauss, a saber, que se apresentaria certo reconforto ao encontrar a fotografia após os estudos sobre a modernidade artística,

“Depois de ter frequentado o modernismo de modo intenso e por vezes movimentado, chegar à fotografia é sentir um singular alívio. É como voltar de trás da cortina de ferro ou chegar à terra firme depois de se perder em um brejo. Porque a fotografia parece propor uma relação direta e transparente com a percepção, mais precisamente com os objetos da percepção.” (KRAUSS, 2012, p. 133)

Uma outra possibilidade ser a de que o dispositivo transformasse a percepção e a percepção transformasse o dispositivo. Isto é, a fotografia poderia trazer elementos que a percepção humana sozinha não seria capaz de reconhecer e por outro lado a percepção humana pode exigir do dispositivo alguma adequação. Ver através de uma fotografia não seria como ver diretamente, mas com a fotografia auxiliando a visão de algo passado. Por exemplo, ver através de um telescópio ou microscópio agrega-se à percepção humana o mundo do distante e o mundo do muito pequeno; através da fotografia um aumento de velocidade no obturador permite ver movimentos de uma nova forma. Isto é, como Walter Benjamin diz, a fotografia nos revela uma outra natureza, pois

“A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.” (BENJAMIN, 2008, p. 94)

Enquanto produtora de documento, ela poderia ser vista como capaz de cristalizar instantes, de modo que com a transparência haveria uma maneira cândida de imortalizar o presente. Como no efeito de vitrificação que Jean Starobinski diz

“Obter belos vidros ou belos cristais é muito frequente o objetivo em vista do qual toda uma experiência se organiza. E a especulação vai mais longe ainda: em uma ciência cujos conceitos fundamentais ainda estão sujeitos ao capricho da “imaginação material”, a técnica de vitrificação é inseparável de um sonho de inocência e de imortalidade substancial.

Transformar um cadáver em vidro translúcido é uma vitória sobre a morte e sobre a decomposição dos corpos. ” (STAROBINSKI, 2011, p. 261)

Como produto e produtora de uma certa modernidade poderíamos pensar a fotografia como a vitrificação de um presente. Talvez, partindo disso é que ela teria servido ao jornalismo como mais um elemento da produção da notícia. Pois com a imagem fotográfica seria possível ver de maneira supostamente contígua algum fato distante num tempo passado. A imagem fotográfica devido à sua percepção como transparência daria mais credibilidade ao texto jornalístico, seja como ilustração ou portadora da informação.

A transparência do dispositivo, então, se legitimaria conforme as práticas sociais historicamente constituídas o autorizariam. Isto é, se são as práticas sociais através de suas instituições que fundamentariam a percepção do mundo, de maneira objetiva, então podemos pensar que são essas mesmas práticas que deveriam legitimar a autenticidade da transparência da fotografia. No caso da fotografia documental a sua legitimação já vinha ocorrendo do ponto de vista técnico desde sua invenção, na ciência, na jurisprudência e na medicina.

Quando o jornalismo na República de Weimar passa a experimentar diversas formas de se utilizar a fotografia em revistas ilustradas para atrair mais leitores parece ter havido uma atenção editorial ao fato de as imagens estarem adquirindo valor informacional. Talvez nem tanto de maneira isolada, mas dentro uma organização visual que toma forma em um complexo: de foto-livros, revistas ilustradas, cinemas, incentivo à fotografia amadora em massa e por consequência a catalogação da vida privada em imagens.

3 A MODERNIZAÇÃO DO FOTOJORNALISMO NA REPÚBLICA DE

WEIMAR

Em meados dos anos 1920, na República de Weimar, havia disponíveis aos leitores mais de 6000 publicações entre jornais, tabloides, semanários, diários e revistas ilustradas (KAES, 2008, HARDT, 1989, LERG, 1989). Muitas dessas publicações, sobretudo as revistas ilustradas, a partir de mudanças editoriais teriam passado a explorar as interações do público leitor com suas fotografias, buscando dar conta de uma sensação de imediatismo e precisão que, em suas reportagens, as massas leitoras pareciam ansiar. Associada a essa prática, teriam surgidos os foto-ensaios e as narrativas por sequência de fotografias, com a finalidade de tornar visíveis os novos aspectos da vida moderna. Neste período que tomamos como foco em nossa pesquisa (1925-1933) o público leitor parecia haver acostumado-se a receber fortes impressões de eventos do mundo principalmente através de fotografias que relatos escritos, nos diz o editor Kurt Korff (1927 apud KAES, 2008). O relato chegava cada vez mais rápido com o aperfeiçoamento de tecnologias telegráficas, porém já não dava conta dos acontecimentos. Sobretudo na agitação dos grandes centros urbanos que, em todas as suas dimensões, parecia ser necessário produzir imagens de um mundo em constante mudança, e, mais que isso: (re)produzir o mundo em fotografias. Para o editor alemão, “Sem uma fotografia as coisas acontecendo no mundo eram reproduzidas incompletamente, às vezes implausivelmente; a fotografia transportava a impressão mais forte e mais duradoura” (KORFF, 1927 apud KAES, 2008, p. 646, tradução nossa226).

226 “Without a Picture the things going on in the world were reproduced incompletely, often implausibly; the Picture conveyd the strongest and most lasting impression.”

A história da circulação das revistas ilustradas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos – poderíamos considerar o Brasil também como seu desdobramento de sucesso a partir de revistas como O Cruzeiro227 (1928-1975) e sua recepção de fotojornalistas franceses - costuma ser frequentemente associada em seus primórdios à Alemanha de Weimar. Destas, destacam-se as revistas Berliner Illustrirte Zeitung e Münchner

Ilustrierte Presse como as principais em termos de circulação e

experimentação editorial, cujo papel teria sido fundamental em seu processo de modernização. A elas são associados os editores Kurt Korff (Berliner Illustrirte

Zeitung) e Stefan Lorant (Münchner Ilstrierte Presse), cujo compromentimento

com uma certa cultura visual teria influenciado a modernização editorial ao darem mais espaço às fotografias e fotojornalistas em reportagens. Ambos, após 1933228, buscaram exílio nos EUA (Kurt Korff) e Inglaterra (Stefen Lorant), onde contribuíram229 com a experiência profissional que teria culminado na criação de outras duas revistas ilustradas essenciais na história do fotojornalismo ocidental: LIFE e Picture Post, respectivamente.