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CAPÍTULO I - CONTEXTOS HISTÓRICO E TEÓRICO

1.2. CONTEXTO TEÓRICO

1.2.3. Alguns casos: Lesoto, Egito, Papua Nova Guiné e Kosovo

O antropólogo Ferguson (1994), por exemplo, discutiu a transposição internacional da ontologia e o encaminhamento dos interesses dos doadores nas políticas de desenvolvimento para Lesoto, denominando-a de “Aparelho Anti-Político”, pois formalmente as políticas de desenvolvimento unificam as diferenças políticas em universais comuns – não há uma divisão partidária quando se visa ao desenvolvimento. Para o autor, “a despolitização das dinâmicas sociais é fundamento e ao mesmo tempo efeito dos discursos produzidos pelo campo do desenvolvimento” (FERGUSON, 1994 In: Silva 2012).

Similarmente, Mitchell (2002) observou a autoridade do saber e dos especialistas em desenvolvimento, que carregam em si uma realidade própria sobrepondo à realidade social.

Nas observações do autor no caso do Egito, as políticas de desenvolvimento são “princípios verdadeiros em qualquer país”. Contudo, estes não obtiveram sucesso no Egito. As políticas neoliberais da USAID foram “distorcidas” pela estrutura patrimonial local, resultando no favorecimento da elite.

Entretanto, esses autores sugerem que, sob a suposta metodologia despolitizada, a cooperação para o desenvolvimento encaminha interesses dos doadores. Ferguson (1994) observa que as políticas de desenvolvimento, da comunidade de 27 doadores internacionais, inventaram a nação de Lesoto, isolando-a e traçando suas fronteiras por oposição à África do Sul, efetivando a unidade nacional, ignorando a realidade da interação e dependência do país em relação ao seu vizinho que o circunscreve.

Mitchell (2002), por sua vez, analisou como a cooperação para desenvolvimento da USAID favoreceu o escoamento das armas norte-americanas para o exército egípcio, qualificando a USAID como “uma forma do apoio estatal à indústria corporativa

norte-americana, enquanto trabalha no Egito para desmantelar o apoio estatal deste." ( Idem:240 In SILVA 2012, tradução nossa).”

Hawksley (2006), por exemplo, analisou a dinâmica política da construção nacional da Papua Nova Guiné (PNG), salientando a participação da cooperação australiana para o desenvolvimento. Legado da colonização britânica, a PNG foi colônia australiana desde 1906, até que em 1975 o país veio a declarar a independência. Contudo, esta foi uma decisão política da Austrália, que veio preparando desde 1945 o modelo da nação e do Estado de PNG – com um regime democrático, uma economia liberal e um sistema de serviços públicos básicos em saúde, educação e agricultura.

Como não havia um movimento nacionalista organizado, a independência foi mais

“concedida” pela Austrália que conquistada pela elite local. Como consequência, mesmo depois da independência, o país via-se em dificuldade para a consolidação. Em 1997, insatisfações pela divisão de lucro das minas de cobre de Bougainville fizeram nascer o movimento de secessão, resultando em conflito armado e a morte entre 5.000 a 20.000 pessoas. À época, a empresa anglo-australiana Rio Tinto detinha quase 54% do lucro, enquanto o governo PNG 19%.

Com a intervenção internacional da Organização das Nações Unidas – principalmente do seu membro Austrália, o conflito ganha relativa estabilização. Em 2005, criou-se o Governo Autônomo de Bougainville – até hoje formalmente parte do Estado PNG.

Além disso, a diversidade linguística e cultural, falta da identidade unitária e da legitimidade nacional e baixo desempenho socioeconômico somam-se para agravar a fragilidade da nação papuana.

O governo australiano de Howard, temendo que a fragilização papuana viesse a acarretar a instabilidade regional, ameaçando com recorte assistencial, “forçou o governo PNG a aceitar um ‘Programa de Cooperação Fortalecida’(Idem:161)” em 2003. O Programa da Agência Australiana para o Desenvolvimento Internacional (AusAID) incluía $AU 800 milhões42, projetos de desenvolvimento, uma grande massa de consultores australianos no governo papuano e a imunidade soberana legal dos policiais australianos no território. Em 2005, quando a Suprema Corte de Justiça declarou a inconstitucionalidade da imunidade, o programa foi parcialmente interrompido, porém permanece até hoje o quadro civil australiano na PNG.

42 Dólares australianos, equivalente a aproximadamente US$560 milhões na época.

Para o autor, a

construção do Estado é uma tarefa difícil, ainda mais difícil se considerar a desistorização da complexa e rápida transformação social da pré-modernidade para a modernidade, e a criação e manutenção de uma regra centralizada sobre grupos e pessoas de diversas línguas e culturas que habitam o Estado da PNG. (Idem: 171, tradução nossa)

De maneira mais específica, Ingimundarson (2007) analisou o quadro das múltiplas identidades nacionais na construção da nação de Kosovo. O autor observou as diversas correntes de construção da identidade nacional, apoiadas por diversos atores. Desde 1995, a “comunidade internacional” em Kosovo — notadamente a administração interina da ONU, OTAN, União Europeia e Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) 43 — tem promovido incessantemente a identidade nacional baseada na multietnicidade, enquanto a elite local insistia na identidade nacional baseada na história de resistência.

O autor mostra que ambas são elaborações artificiais da identidade nacional, inventando uma memória aos objetivos políticos. De um lado, a “comunidade internacional,”

visando à segurança regional, promove uma identidade nacional multiétnica em um país 90%

albanês como uma tentativa de apaziguar os conflitos étnicos e diluir a história recente de guerra com Sérvia – visando à segurança regional. Por outro lado, a elite local promove a identidade étnica albanesa, baseando-se na seleção de memórias de resistência contra opressores servos e a promoção da singularidade étnica.

Do lado dos internacionais, os projetos políticos pela multietnicidade chegam a silenciar qualquer singularidade étnica de Kosovo – preferindo chamar os kosovenses de

“residentes habituais” (idem: 111) nos seus documentos oficiais, para não explicitar uma categoria étnica. Além disso, adota um método de cooperação para desenvolvimento “padrão”, tentando promover o desenvolvimento nas áreas de governança, justiça, economia e direitos humanos sem qualquer menção ao passado nem ao futuro do Kosovo, para evitar aquecer as memórias de conflito ou revelar a incerteza da comunidade internacional em decidir o futuro destino de Kosovo.

Segundo o autor, tal atitude dos internacionais é reflexo da falta de consenso entre os Estados no Conselho de Segurança das Nações Unidas e no OTAN. Paralelamente, a elite

43 Sigla em inglês pela Organization for Security and Co-operation in Europe.

local também não é grupo coeso e único. Para o autor, o Partido LDK44 prefere construir a memória nacional baseada na imagem idealizada do controverso primeiro presidente Rugova, como pai da pátria e símbolo que ilustra a viabilidade da autonomia nacional dirigida pelo próprio partido; enquanto o Partido PDK45, ligado à força armada de liberação, prefere seus próprios heróis de resistência, ao mesmo tempo que projeta uma identidade ocidentalizada e modernizada para obter a legitimação pela “comunidade internacional”.

Para Ingimundarson (2007), a política identitária – silenciadora – da cooperação internacional foi um fracasso e contribuiu negativamente para as outras correntes identitárias.

O autor argumenta, portanto, a dificuldade de definir uma identidade nacional e de coincidir a

“nacionalidade (nationhood)” nas mesmas fronteiras estatais de Kosovo (statehood). Para o autor, os atores, nacionais ou internacionais, silenciam e adaptam a história ao seu respectivo favor. Fora as diferenças, os atores analisados preferiram silenciar, por exemplo, a identidade islâmica, de constituição fundamental do povo albanês, pela mesma ser avaliada como um tabu à integração europeia e “internacional” do Kosovo.