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4. PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ

4.4. Teoria da preferência pela liquidez da taxa de juros

4.4.2. Alguns desdobramentos relacionados

Uma outra conexão foi também expressa por Keynes (1937c) nesse artigo, originando uma série de debates posteriores sobre o papel da preferência pela liquidez no financiamento do investimento, a qual ficou conhecida como o processo de finance / funding.

“O empresário quando decide investir deve estar satisfeito sobre dois pontos: primeiramente, que ele pode obter finance de curto-termo suficiente durante o período de geração do investimento; e em segundo lugar, que ele pode eventualmente consolidar [fund] suas obrigações de curto-termo através de uma emissão de longo-termo em condições satisfatórias” (Keynes, 1937c: 664).

A interpretação de Asimakopulos (1986), como de praxe, parte do entendimento deste processo como seqüencial, em que primeiro se obtém o finance necessário para o investimento, e depois se negociam os termos do funding, quando são trocadas dívidas de curto-prazo por dívidas de longo-prazo; nessa segunda etapa, uma alocação das poupanças seria necessária. Para essa alocação, considera-se que as poupanças não estariam disponíveis senão ao término do período do multiplicador, sendo que aumentos na taxa de juros seriam inevitáveis na etapa do funding, uma vez que as poupanças seriam inferiores às requeridas num dado momento. Deste modo, confina-se a determinação da taxa de juros pela preferência pela liquidez ao ato inicial, estando considerações de liquidez ausentes numa etapa posterior, em que fatores “reais” entram em questão.

Como Kregel (1986) e Davidson (1986) deixaram claro em suas refutações a esta interpretação, a preferência pela liquidez deve ser considerada também na etapa do funding, sem a qual qualquer elucubração sobre quão grandes seriam as poupanças em determinado ponto do tempo perde o sentido, por ser também a decisão do funding, uma decisão acerca da liquidez que, como tal, envolve as preferências pela liquidez do público e do sistema bancário86.

Uma maneira de desfazer alguns mal-entendidos acerca do papel das poupanças pretéritas na preferência pela liquidez, bem como de separar definitivamente as decisões de poupança e liquidez, é a partir da explicação de um processo duplo (two-fold) de decisões, como parece ter sido o caminho adotado por Carvalho (1992: 141):

“Esta é a teoria da preferência pela liquidez da taxa de juros. Consumidores são persuadidos a manter suas poupanças em outras formas que não dinheiro quando estas outras formas pagam a eles o bastante para compensar seus sentimentos ex ante de insegurança em face de um futuro incerto”.

Logo ao abrir o capítulo 15 da Teoria Geral, Keynes explicita que a preferência pela liquidez trata da esfera da riqueza, não da esfera da renda, afirmando que é “em relação ao seu

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estoque de poupanças acumuladas, ao invés da sua renda, que o indivíduo pode exercer sua escolha entre liquidez e iliquidez” (Keynes, 1936: 194).

Talvez a expressão mais clara desse processo, enunciada num contexto no qual Keynes evidencia que o primeiro passo se trata de uma escolha na esfera da renda, enquanto o segundo se encontra na esfera da riqueza, seja a partir do seguinte trecho do Tratado:

“Quando um homem está decidindo que proporção de sua renda nominal poupar, ele está escolhendo entre o consumo presente e a propriedade de riqueza. Uma vez que ele decide em favor do consumo, ele precisa necessariamente comprar bens – pois ele não pode consumir moeda. Mas uma vez que ele decide em favor da poupança, resta ainda uma decisão ulterior a ser feita. Pois ele pode possuir riqueza retendo-a tanto na forma de moeda (ou o equivalente líquido de moeda), quanto em outras formas de empréstimo ou capital real. Essa segunda decisão poderia ser convenientemente descrita como a escolha entre ‘entesouramento’ e ‘investimento,’ ou, alternativamente, como a escolha entre ‘depósitos bancários’ e ‘securities’” (Keynes, 1930a: 127).

Também na Teoria Geral, Keynes (1936: 166) examina estes “dois conjuntos distintos de decisões”:

“O primeiro é concernente àquele aspecto da preferência temporal que eu tenho chamado a propensão a consumir, que [...] determina para cada indivíduo quanto da sua renda ele irá consumir e quanto irá conservar em alguma forma de comando sobre o consumo futuro” (Keynes, 1936: 166, grifos no original).

O segundo conjunto trata de decidir “em que forma ele reterá o comando sobre consumo futuro que havia conservado, tanto sobre sua renda corrente quanto advindo de poupanças pretéritas” (ibid). Trata-se de questionar, portanto, “qual o grau de sua preferência pela liquidez” (ibid):

“Ele pretende retê-lo na forma de comando imediato, líquido (i.e. em moeda ou seu equivalente)? Ou ele está preparado para se separar do comando imediato por um período específico ou indefinido, deixando às condições futuras de mercado determinar em que termos ele pode, se necessário, converter comando deferido sobre bens específicos em comando imediato sobre bens em geral?” (Keynes, 1936: 166).

Deste modo, a determinação da taxa de juros, enquanto recompensa pela renúncia à liquidez, se dá quando o segundo conjunto de decisões está em jogo. “A taxa de juros se origina somente após a escolha para uma dada renda entre consumo e poupança [...] ter sido feita. Esta se origina da escolha pela forma na qual as poupanças são retidas” (Heinsohn e Steiger, 2005: 71). Isso não exclui, entretanto, a influência que uma variação na renda exerce sobre os motivos transação e precaução, apenas separa as decisões de gasto das de liquidez.

Curiosamente, porquanto inversa à argumentação de Asimakopulos (1986), existe uma outra interpretação parcial da teoria da preferência pela liquidez que parece admitir a validade da mesma somente na determinação das taxas de juros sobre as dívidas de prazo mais longo, sendo a

taxa de juros de curto-prazo fixada pela autoridade monetária. Tal interpretação, oferecida por Mott (1986) no mesmo ano desta rodada do debate finance / funding, pode ter suas origens demarcadas por Kaldor (1939), e considera a preferência pela liquidez como uma preferência por reter ativos de curto-prazo contra ativos de longo-prazo, estando ausente a escolha entre moeda e um outro ativo na determinação da taxa de juros, esta exogenamente fixada87 (Kaldor, 1960: 63- 64; Mott, 1986: 230-231).

Apesar de não considerar a taxa de juros de curto prazo como exógena, também Wells (1983: 533) parece tomar a interpretação de Kaldor de que as expectativas “somente podem induzir mudanças no rendimento de papéis de longo-termo e não podem afetar a taxa de curto- termo” (Kaldor, 1960: 64). Na perspectiva apresentada por Wells (1983), da qual é excluída a função de reserva de valor da moeda, encontra-se a idéia de que a preferência pela liquidez não tem papel algum na determinação da taxa de juros de curto-prazo, somente “estabelecendo a diferença [spread] entre as taxas de juros de curto e longo [prazos]” (Wells, 1983: 535).

Portanto, no primeiro caso se trata de restringir a preferência pela liquidez à determinação da taxa de juros de curto-prazo, estando a precificação dos demais ativos circunscrita a fatores “reais”, enquanto que no segundo caso é a taxa de juros de curto-prazo que é definida (exogenamente) sem considerações acerca da preferência pela liquidez, sendo que a mesma pode atuar na precificação dos demais ativos88.

4.5. Demanda por moeda e preferência pela liquidez: uma breve comparação taxonômica